Os tempos mudam as coisas, sim, e o transcorrer célere dos anos é prova disso, desvencilhando-se de costumes e histórias sem a menor cerimônia. Um dos exemplos é a série de acontecimentos sinistros registrados antigamente durante os 40 dias sacros, a quaresma. Por mais aterrorizantes que fossem, muitos os encaravam como “normais”.
Mal começava a Quarta-Feira de Cinzas, milhares de supersticiosos já benziam o corpo, preparando-se para enfrentar as coisas macabras que imaginavam estar de prontidão para sair a campo e atazanar a vida das pessoas na quaresma iniciante. Fazer sexo, então, constituía-se em pecado mortal, passível de penalizações terríveis.
Indiferente às superstições, eu varava as madrugadas de moto por MOC em plena quaresma, paquerando as garotas disponíveis na cidade. Uma delas quis conhecer o então sombrio lago do aeroporto, circundado por estrada esburacada e sem um poste de luz sequer. Fomos lá, ela gostou muito…
Dali, rumamos para as proximidades das Carmelitas, freiras enclausuradas. Mesmo na escuridão, dava arrepios olhar aquele imóvel apático e com cara de castelinho mal-assombrado. Difícil imaginar alguém feliz ali dentro…
Elétrica, a garota quis andar mais e mais pela área, e desembocamos num campo de futebol sem grama. O motel de matagal estava finalmente escolhido, pensei, sendo alertado por ela:
– Tem algo se movendo ali na frente, está vendo?
Olhei e olhei, não conseguindo ver nada. Pensei ser impressão da menina, e me concentrei em proporcionar os carinhos que ela parecia desejar. De repente, escutei a mata farfalhar, e um vulto enorme, impossível de ser humano, escancarou sua estatura de formato impreciso num dos lados da estradinha. Homem ou lobo, não pude concluir…
– Vamos embora daqui! Vamos! – gritou a menina, apavorada. O tal vulto veio em nossa direção em passos lentos.
Ainda vi uma outra coisa esquisita se contorcendo a meu lado quando passei pelo atalho estreito do campinho de futebol, tentando alcançar a saída principal. Tudo escuro e agora silencioso, à exceção de ininterruptos grunhidos roufenhos e acelerada respiração ofegante…
A GT-50 Yamaha foi convocada a sair voando daquele trecho, eu e a paquera com os pés bem levantados, pois uma matilha nos perseguia com apetite voraz; dava quase para sentir as quase dentadas nos calcanhares. Só não vimos nenhum cão ou lobo… O próprio gigantão peludo, que saiu da mata ameaçador, sumiu misteriosamente…
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Chegamos trêmulos ao Posto Esso, na Praça da Matriz, e o frentista/guarda Nestor nos olhou interrogativamente, percebendo que algo grave acontecera. Nem eu nem a garota soubemos explicar direito o que pode ter nos perseguido, ou sequer qualquer fato plausível da mínima credibilidade. Tudo muito confuso…
O saudoso Nestor nos olhou de forma recriminadora, para dizer taxativo:
– Vocês abusaram da sorte, crianças: não respeitaram a quaresma. Ainda bem que foram poupados…
Ouvimos suas palavras atenciosamente, ficando perplexos ao ouvi-lo descrever o exato lugar em que paramos para trocar carícias. Nem eu nem ela informamos isso.
– Aquele campinho de futebol que queriam utilizar como motel tem história de sangue, crime. Creio que não sabem; senão, nem teriam ido lá. Mas espero que não voltem…
A garota ouviu tudo com os lábios trêmulos, e aquela foi a última vez em que saímos. Acho que ficou traumatizada em passar por outra situação semelhante.
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Em Cuiabá, nos bairros Cidade Verde e Novo Terceiro, moradores veteranos contam que viram lobisomens e mulas sem-cabeça correndo pelas ruas altas horas da noite. Tradicionalmente, nenhum deles se atrevia a abrir janelas e nem portas a partir da meia-noite, apesar de escutar o estardalhaço de uivos e o trotar desengonçado pelas ruas de cascalho {no passado].
Foi também durante a quaresma que um deles encontrou um ônibus circulando no Novo Terceiro, repleto de moradores falecidos. Os defuntos não pouparam cumprimentos, acenando felizes com as caras pra fora das janelas. O ônibus desceu silenciosamente a rua, parecendo nem ter motor, e de repente sumiu num estalo…
– Quaresma é tempo obrigatório de recolhimento; é isso que diz a Sagrada Escritura – palavras do meu pai.
Carlos P. Queiroz, que viveu sua mocidade em Pires e Albuquerque, dizia que a época de liberdade dos lobisomens era sempre na quaresma. Um alfaiate do lugar rolava no chiqueiro de porcos toda sexta-feira para se transformar na besta-fera, responsável por abate de animais de pequeno porte.
– Eu mesmo o encontrei transformado perto do Rio Verde, mas fingi não ter visto nada, mantendo o mesmo passo calmo. No dia seguinte, sitiantes reclamaram de bezerros mortos, sem uma gota de sangue.
Também no decorrer da quaresma, relatava ele, o capão de Pires se tornava intransitável nas horas tardias da sombra noturna, e quem acaso desafiasse isso, terminava se danando…
– Se há mistérios que precisam ser respeitados, e se a Igreja avisa para rezarmos mais, buscarmos Deus com toda força, é porque o mal está solto e é preciso contê-lo fortemente, por meio de orações. Agora, vá dizer isso para a molecada de hoje: não acreditam em nada! – alertava.
– Se conselho fosse bom, ninguém dava de graça. Porém, volto a insistir: não se descuidem durante a quaresma, visto que é um período de perigosa travessia espiritual. Se atualmente inexiste qualquer tipo de fenômeno assustador, quem garante que eles não retornarão com força triplicada?
Melhor assim rezar. MUITOOOO – finalizou meu velho.
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Sitiante temente a Deus, meu pai passou por várias quaresmas incólume, sem que nenhum mal o abalasse. Inclusive, conta que seu cavalo empacou feio perto da cancela do sítio, certa madrugada.
– Meu sobrinho Nem dizia ter visto um matuto sentado na cerca, de chapelão e capa preta. No dia em que o cavalo empacou, eu não vi nada. O difícil foi fazer o animal passar pela cancela, pois recuava nervoso ao se aproximar. Devia estar vendo algo que meus olhos não captaram…]
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No mais, fica a dica para quem deseja cumprir os dias sacros sem problemas: reze sem economia. Peça proteção ao Pai Celestial, escudando-se admiravelmente contra os males.
Por João Carlos de Queiroz, jornalista