Criança inocente, amei estudar parte do Primário na antiga sede da Escola Normal, um dos sóbrios imóveis que compõem o corredor cultural de Montes Claros-MG, situado à retaguarda da Igreja Matriz.
Durante o recreio, os pequenos alunos faziam estardalhaço alegre no tablado do educandário, ensaiando sapateado sonoro para chamar a atenção das estudantes do Normal. Elas brincavam conosco…
Espertos, descobrimos um porão abaixo da escada de acesso ao pátio, compartimento escuro, sem porta. Aquele lugar passou a ser o nosso predileto nos intervalos das aulas.
As falhas do madeiramento acima franqueavam luminosidade total, permitindo apreciar o vai e vem conversador das normalistas pelo salão principal. Muito assunto era discutido ali.
Víamos, inclusive, mais do que a soleira dos sapatos femininos: a intimidade das moças era descerrada eventualmente a cada abertura relâmpago da saia azul sanfonada e da anágua. Uma festa quando isso acontecia…
As normalistas nem imaginavam que muitos olhinhos ávidos acompanhavam, mais abaixo, seus movimentos, e candidamente continuavam seu vai-e-vem de conversas, proporcionando show gratuito à molecada.
Devo ressaltar que, nessa época, nenhum de nós tinha a mínima noção de sexualidade, assunto tabu fora e dentro de casa. Tudo proibido ao excesso; tratava-se de termo termo rigidamente vedado a crianças.
No entanto, a despeito desse desconhecimento, sentíamos curiosidade incessante em observar os passos das normalistas pelo salão, a fim de captar a finalização de suas vestes íntimas.
CONTINUARÍAMOS frequentando esse porão se uma das moças não nos descobrisse lá por acaso. Ela nos dedurou imediatamente para os professores e, a partir daí, nenhuma criança pôde descer mais ao pátio do porão. Sacanagem…
Para nos vingar, planejamos dar um susto nessa dedo-duro, uma garota esquelética, de feições cadavéricas, cuja pele resplandecia sardas no mais autêntico estilo ferrugem.
Infelizmente, meus colegas tremeram na base quando revelei o maquiavélico plano vingativo: saltar, de surpresa, nas costas dela, esporando seus flancos com o bico dos sapatos. E assim fiz…
A moça quase caiu de joelhos ao sentir o peso súbito, e aí sacudiu o corpo nervosa, tentando se livrar daquele incômodo. Suas contorções lembravam a de um touro bravo.
Pensam que desisti?! Não, continuei a cavalgá-la como qualquer peão resiste aos sacolejos do boi nos rodeios. Meus pezinhos ainda cutucavam as laterais de sua barriga, enquanto eu gritava “SEGURAAAAA!”
Cambaleante, a normalista ensaiou novo tombo de joelhos, amparando-se rápida no corrimão da escada de madeira. Eu estava decidido a não arredar corpo de suas costas, mas desisti ao ver que suas colegas vinham em seu socorro, todas brandindo braços furiosos. Assim, pulei rápido e corri veloz para minha sala, no andar superior.
Ainda pude presenciar sua fisionomia alterada, fora de si, com os caninos graúdos exibindo farta espuma raivosa. Suspeitei de duas coisas: que fosse epilética e portasse dentadura de terceira qualidade…
Nem preciso dizer que acionaram o diretor da escola e minha professora Cleonice. Mais uma vez, lá foram meus pais receber reprimendas em meu nome. Não dava para punir uma criança tão inocente. Inocente?!
A dentuça passou a fazer cara ainda mais feia ao me ver passar pelos corredores da escola. Devia estar sentindo um ódio danado de mim, supunha. Fingi, lógico, nem perceber sua carranca, gritando para os meninos me acompanhar em alguma brincadeira.
DIAS DEPOIS, sempre conciliadora, minha mãe apareceu acompanhada dessa “noiva-cadáver”, exigindo que eu pedisse desculpas pela cavalgada não autorizada. Difícil encarar aquela bruxa de dentes de coelho!
]A dita nem quis ser simpática, postando-se desafiadora à minha frente, à espera das desculpas que minha mãe prometera. Houve um instante que quase obedeci, mudando de ideia ao ver sua figura arrogante.
– Feiosa! Vá tratar de sua feiura, dentuça enferrujada!
Nem senti o forte beliscão que minha mãe aplicou no ato dessa indisciplina verbal, pois explodi o insulto e saí em disparada pelo corredor.
Enquanto estudei na Escola Normal, e nos vários encontros que tive com essa Maria-Ferrugem sardenta (dentro e fora do educandário), ela me crivava com olhares explicitamente odiosos.
Na realidade, aquilo nunca me incomodou, incitando revides provocadores: bastava vê-la para esticar a língua em sua direção; gesto complementado pelo dedo indicador, bem esticado pra cima…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
EM TEMPO: na fase adulta, cruzei com essa “inimiga” por várias vezes na cidade, fingindo não tê-la reconhecido. Nem olhava pra trás ao passar por ela no mesmo passeio. Uma ocasião olhei: e lá estava sua figura dentuça estática, olhar de ódio crivado nas minhas costas.