Montes Claros-MG, anos 60… Interessante como o implodir da infância e pré-adolescência, seguindo-se avanços alquebrados de vitórias e derrotas da fase adulta, um tanto quanto sem-graça, convenhamos, nos leva a concluir que o passado era bem melhor do que a realidade atual. Época em que vivenciamos aleatoriamente distintos piques aventureiros, todos de forma descompromissada, não palpável à sua importância. Tempos em que nosso olhar inocente de criança sobrepujava eventuais medos, recalques, e cada sorriso feliz compensava mil perigos… Um velho jargão popular sintetiza isso (“Éramos felizes e não sabíamos”). De fato…
Recordo, por exemplo, as dezenas de viagens de trem realizadas rumo a Belo Horizonte, capital de MG, e cada detalhe referente ao glorioso embarque naqueles sisudos comboios de aço, hoje fantasmagórica lembrança nos trilhos abandonados da antiga Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima – R.F.F.S.A. Minha mãe, mesmo dias antes da viagem, denotava extraordinária felicidade por saber que abraçaria sua mana predileta em breve, a atenciosa madrinha tia Neusa.
Minha mala era de papelão, tamanho médio, e nela cabia tudo que fosse precisar, incluindo sandálias e cadernos escolares (as viagens sempre aconteciam no período de férias). Nunca deixava de levar algum brinquedo, geralmente uma caçamba amarela, presente do aniversário de cinco anos da madrinha. Sempre revisava cada item da bagagem de modo prazeroso, pois significava um passeio maravilhoso…
Já minha mãe, agitada como sempre foi, checava se todos os documentos estavam na inseparável frasqueira azul. Quanta coisa cabia ali dentro! Além da papelada e dinheiro, a frasqueira comportava extensa parafernália de maquiagem, a exemplo de esmalte, “pó de de arroz”, alicate de unha, lixa, acetona, algodão, espelho, etc. Por vezes, ocorria de algo sumir lá dentro, e aí minha mãe, resmungando algo ininteligível, a revirava energicamente. Quando encontrava, sorria satisfeita. “Estava aqui, tinha certeza!”
Com fisionomia compassivamente recriminadora, meu paia balançava a cabeça, consciente de que a esposa cometera mais um deslize de memória. “Vá entender sua mãe”, cansei de ouvi-lo dizer.
Era ele quem providenciava nossa condução até à estação ferroviária local, transporte efetuado por um taxista negro, amigo de longa data, dizia eventualmente. Creio que esse taxista cobrava um preço pra lá de camarada pelas corridas. Melhor ainda: “se” cobrava…
Andar naquele sedã preto também fazia parte da agenda do meu “show de férias”. Jeitão desligado, o condutor se mantinha em silêncio o tempo todo, e seus poucos sorrisos, resposta evasiva à tentativa de diálogo entabulada por minha mãe, se limitavam a movimentos quase imperceptíveis dos seus lábios finos e secos, olhar fixo à frente, concentração total. Dirigir aquele sedã devia ser muito complexo…
Pelo que deduzi nesse vai-e-vem casa-estação-casa, nada mais importava para ele do que conduzir seguramente o reluzente sedã preto. Vez ou outra, feito relâmpago, o taxista mexia rápido no rádio, aparentemente tentando neutralizar uns chiados persistentes, e nos olhava então de forma fugaz, creio que para justificar o ato extra-volante. A cada corrida, eu imaginava qual seria o momento em que mexeria naquele rádio inaudível, chato…
Eu o achava realmente muito estranho, tinha até certo medo dele, e morria de curiosidade para saber por que meu pai o considerava tão amigo. Certa vez, quando desembarcou nossas malas e nos desejou boa viagem, ele “sorriu de verdade”, momento em que exibiu uma horrenda arcada dentária irregular, composta de dentes amarelados, alguns negros de nicotina. Arfante, manteve a boca aberta enquanto alinhava as malas na plataforma da estação. Depois se despediu, cumprimentando-nos solene. Mãos de lixa.
Minha mãe costumava chamá-lo de “seo” Zé, pelo que recordo. O homem era uma chaminé ambulante, fumava bastante. E não ligava a mínima se isso incomodava seus passageiros. No nosso caso, pitava impassivelmente fedorentas cigarrilhas durante todo o percurso de casa à praça da estação.Vi minha mãe tossir várias vezes por causa disso ao abrir a janela ao máximo, busca emergencial de suprimento de oxigênio. Mas ela nunca o recriminou pelo vício – ou o grande incômodo causado a terceiros. Talvez estivéssemos andando de cortesia…
Esse mesmo carro nos levou a vários passeios no Pentaúrea Clube, a cerca de 35 quilômetros da cidade. Ainda recordo do imenso nariz preto do veículo vencendo firme as rampas cascalhadas na divisa dos municípios de Montes Claros e Bocaiúva. O motor do sóbrio sedã {creio hoje que um seis cilindros} sibilava pura potência, sincronia de força encantadora à maciez das poltronas do carro, similares às de qualquer residência de luxo. Literalmente, ficávamos afundados nelas!
Daí estar pensando agora tão saudoso nessas idas e vindas à estação ferroviária da minha cidade natal. Já chegava ali ansioso para viajar, mesmo sabendo que o Trem Azul demoraria a partir, apesar de posicionado horas antes na plataforma, espaço repleto de malas e pessoas. Quanta gritaria de adultos e crianças, acrescido de apitos estridentes dos funcionários do terminal! Os carregadores de bagagem não paravam de andar naquela área, berrando para todos saírem da frente. “Mal-educados”, deduzi: podiam pedir isso sem gritar. Ainda flagrei, durante a espera dessas viagens, uma ou outra composição passando matreira do outro lado do Trem Azul, geralmente cargueiros em manobra.
Nas espiadelas ao longo da imensa plataforma, lá pelos meus oito anos, descobri que apenas um homem comandava o trânsito ferroviário entre Montes Claros e Belo Horizonte, via código morse. Compenetrado, ele ficava dedilhando tic-tac sucessivos. Logo vinha mais tic-tac do outro lado, mensagens inseridas nos furinhos de uma longa tira de papel. O funcionário “lia” as informações e respondia na sequência. Aquilo era fundamental para evitar acidentes no trecho.
“O trem vai partir” era o anúncio mais aguardado por todos ali. Sempre gerava corre-corre desenfreado para embarcar e despedidas chorosas e alegres…
Acomodado à janela, gentileza costumeira de minha mãe, eu torcia para ouvir o buzinaço da locomotiva anunciar o início da viagem. Primeiro, era uma buzina longa, sequenciada por um intervalo breve, cerca de um minuto e meio. Em seguida, voltava a entoar melancólica cantilena berrante, alternando sons. E aí, sim, os vagões recebiam trancos seguidos, movimentando-se devagar. Pronto: a viagem havia finalmente começado!
Após arrancar sacolejante, o trem deixava a plataforma para ingressar numa curva próxima ao viaduto da Rua Dona Tiburtina, sapateando determinado naquele par de trilhos de bitola fina. Restava agora me deliciar com a progressiva velocidade da composição e a poeira que a movimentação dançarina dos vagões levantava nesse voraz matraquear.
O denso capinzal existente ao longo da via férrea também se unia em efusivas saudações dos moradores da região dos bairros Morrinhos, Bonfim, Cintra e São Judas Tadeu; alguns deles ficavam próximos à linha, outros mais distantes, à porta de casas paupérrimas. Povo humilde, encantador…
Um dos pontos de maior agitação após deixar o terminal ferroviário era passar sob o viaduto que interligava os bairros Bonfim e Cintra: uma multidão se acomodava em ambos os lados da imponente estrutura metálica para agitar lenços e chapéus à passagem do Trem Azul, logo abaixo. O entusiasmo desse povo era contagiante, sincero… O trem passava rápido, buzina a pleno, e o grupo curioso ainda permanecia lá, saudando os viajantes. São pessoas que jamais consegui distinguir as feições, mas que levei no coração como anjos protetores de uma boa viagem…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista