Nem Pimenta: sitiante já “deu de caras” com andarilhos do além…

Meu primo-irmão Nem Pimenta, pessoa extremamente afável, sempre foi sujeito destemido, apesar de admirado pela vizinhança inteira. É desses que não abaixa a cabeça pra ninguém, respeitando a todos da mesma forma que quer ser respeitado.

Não descrevo aqui nenhum valentão, bem entendido: o primo é avesso a qualquer tipo de confusão, esquivando-se, de forma velada, quando sente indícios de clima tenso na área.

Tampouco teme algo que venha do mundo das sombras, de pessoas que já residem na “Cidade dos Pés Juntos” {cemitérios}. “De fantasmas, pra ser sincero, não tenho medo; já com gente viva, aí, sim, sou cabreiro! Fico assuntando sempre qual é a do cara…” – diz pensativo.

.Talvez isso explique seu modo sorrateiro, aparentemente tímido, ao escutar conversas visitantes…

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Há alguns anos, Nem discorreu sobre situações sinistras que enfrentou pelas bandas ermas de Pires e Albuquerque, lugar de onde jamais arredou “pé morador”. Ali nasceu, cresceu, constituiu família {com Zezé} e também quer morrer. É onde se sente feliz.

Só sai de lá de vez em quando para visitar parentes em Bocaiúva, cidade próxima. “Antes, eu ia e voltava de trem. Pena que não tem mais esse transporte tão bom…”

O amor pela terra natal se explica: seus pais (Ambrósio/Benonina) constituíram toda a prole no acanhado sítio, propriedade repleta de mangueiras e frutíferas diversas. Tinha pé de jabotá, fruta do conde, jenipapo, murici, pequi, etc…

Nem é o filho mais velho do casal. Enquanto jovem, foi festeiro inveterado, não perdendo nenhum arrasta-pé em Pires ou nos sítios das redondezas.

– Gosto daqui (Pires) não somente pelas festas das quais participei: é um conjunto de atrativos. Só de ter o Rio Verde logo abaixo lá de casa, já é bom demais. Tanto é que, para não ficar longe dos meus pais, construí barraco a poucos metros deles.

No início, a rústica construção apresentava apenas tosca cor marrom de massa no lugar de tinta. O paciente Nem investiu gradualmente nas melhorias pensadas para a propriedade. Tornou-se depois vistosa casa azul e rosa.

– Fui arrumando aos poucos, a fim de proporcionar melhor conforto aos meus familiares. Ficou bom, menino! Já faz tempo que você não vem nos visitar. Com certeza, vai ficar surpreso com as mudanças…

Com relação aos fantasmas, Nem disse que cruzou com alguns ao voltar antigamente de festas no povoado de Pires. Mas isso aconteceu raramente. “Que existem, existem; eu já vi”, afirma.

Também explicou que forrobodó dos bons é aquele que só termina de madrugada. Foi numa dessas horas ermas da noite que ele encontrou os andarilhos das sombras…

– Sabe-se que “eles” gostam de desandar no mundo dos vivos é justamente quando tudo fica quietinho. Ai de quem anda por aí altas horas…

SUFOCO INICIAL…

Certa feita, ao cruzar o capãozinho no retorno ao lar, túnel sombrio de mata úmida, Nem sentiu o cavalo empacar por várias vezes, como se estivesse descadeirado. As pernas traseiras do animal simplesmente arriaram.

– Algo pesou feio lá atrás, percebi. Nessa travessia do capão já aconteceram muitas coisas. Tem pessoas que até já viram caixão de defunto esticado no dorso dos animais… Por ali também já passou lobisomem e toda tralha das trevas…

O primo diz ter lutado bastante nessa noite para que o cavalo conseguisse avançar e saísse do capão…

– Ele ficou bem assustado: precisa ver com que facilidade subiu a ladeira em frente ao capão; trecho cascalhado, bem escorregadio. Recusou-se a obedecer ao comando das rédeas, louco pra sair dali…

Outras dezenas de metros adiante, eis que Nem Pimenta foi obrigado a se deter numa porteira, normalmente aberta à noite. Isso porque havia um sujeito de chapelão e roupas escuras sentado no lado esquerdo, justo local da tranca.

– Então, o cavalo voltou a aprontar nova birra, recusando-se a avançar rumo à cancela. Tive que puxá-lo à força. Abri a cancela, cumprimentei o desconhecido, que nada respondeu, e atravessei. Ao retornar para fechar a cancela, o sujeito desaparecera! O cavalo, coitado, já relinchava lá na frente de puro desespero…

Já em casa, Nem desceu à cozinha, situada nos fundos do corredor lateral à sala de estar, disposto a preparar um revirado de ovos com farinha, costume madrugador para banir possível ressaca.

A lamparina a querosene mal iluminava os cômodos da casa, gerando mais fumaceira do que luz. Vez ou outra, a fumaça tóxica irritou os seus olhos, e Nem assoprou forte.

Andando cuidadosamente, o primo evitou fazer o mínimo barulho para não acordar os pais. Sabia que, em mais algumas horas, o trabalhador Ambrósio já estaria por ali fazendo café, para depois ir tirar leite.

Nem jogou uns pedaços de lenha nas brasas ainda cintilantes e balançou forte a tampa do panelão, decidido a reacender o fogo. Não tardou para que as chamas crepitassem vida…

Entretido em cozinhar, o primo percebeu uma luz andando sozinha pelos cômodos da casa. “Ué, quem será?!”

Pensou, primeiro, se tratar de algum familiar. Só estranhou a rapidez com que aquela luz se movimentava pela casa inteira. Foi averiguar e não conseguiu alcançá-la de nenhum modo.

– Se eu estava na cozinha, ela surgia lá na sala, ou no quarto, podia ver pelo reflexo no telhado. Ficou nisso aí: vai-e-vem fantasmagórico pela casa…

A misteriosa luz ainda passeou pelo corredor frontal ao quarto de Nem depois que ele se recolheu. “Só não entrou”.

Esse peregrinar de lamparina aconteceu outras vezes, mas Nem não se importou mais com ele. “Não me fez mal, deixei pra lá. Quer andar pela casa? Então que ande!”

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Sobre o tesouro enterrado sob a árvore barriguda, perto do rio (episódio já relatado), Nem afirma que o pote de ouro ainda está por lá. “O encanto foi quebrado quando meu pai levou o tio Domingos para desenterra-lo. A instrução era para ele ir sozinho, à meia-noite”.

Por João Carlos de Queiroz