Não tem lobisomem simpático…

Com a Quaresma no auge, o receio das pessoas de darem de cara com almas penadas e coisas similares é alto. Principalmente lobisomens, mulas sem cabeça, etc. e tal. Quaresma é um tempo libertino de “pode-tudo-que-for-esquisito-e-inexplicável”. Inclusive, propagandeia até o suspeito lado simpático dos homens-lobos, travestidos de cordeiros à parte do período sacro.

Alguns antigos dizem ter conhecido lobisomens assim, tachando-os de pessoas extremamente afáveis quando não estavam transformadas. Não acredite muito nisso…

Um dos exemplos vem de Pires e Albuquerque, antigo distrito bocaiuvense. Pires é celeiro nato de superstições e lendas pesadas. Foi tema inspirador para o longa-metragem do célebre jornalista Eduardo Brasil. Obra cinematográfica baseada num cordel de Téo Azevedo, talento consagrado na música e literatura mineira.

POIS ENTÃO… Sabe-se que um alfaiate-lobisomem residiu em Pires {hoje denominado Alto Belo} há décadas; profissional exímio, cortês. Um cavalheiro na essência da palavra.

Nenhum outro costureiro tinha o primor dos seus cortes, tornando-se o alfaiate predileto dos coronéis da época para confeccionar ternos e saiões para as madames.

Nas festas, o estilo requintado desse homem da tesoura logo se evidenciava entre os demais convidados. Mas todos sabiam ser ele o famigerado lobisomem, capaz de estraçalhar novilhas, ovelhas e gente, acaso quisesse. Mas não houve nenhum caso de morte humana, apenas de animais…

O cantor Téo Azevedo afirma se lembrar bem dele, descrevendo-o de forma elogiosa. “Pessoa educadíssima”, resumiu. Só não enfatiza seus feitos assombrosos nas obras literárias e musicais por causa dos familiares. Muitos ainda residem em Pires, diz. “É questão de respeito”, pontua o consagrado trovador norte-mineiro.

Também meu pai, Carlos Petronilho de Queiroz, salienta tê-lo visto nas duas situações: na de pessoa normal e também “transformada”. A segunda, enfatiza, ele não deseja pra ninguém a má-sorte de assistir, tão feia é a coisa…

– Bastava chegar sexta-feira de Quaresma, o homem rolava pra lá e pra cá no chiqueiro, agoniando os porcos de medo. De repente, já se apresentava com outro corpo estranho: meio-homem apenas; tamanho original agigantado em forma de lobo.

Meu velho pai, que andava armado pra se precaver de algum ataque dessa besta-fera, descreveu os próximos atos do alfaiate após assumir condição de chupador de sangue:

– Não foi durante uma Quaresma, mas em várias, que presenciei esse sujeito se erguendo rápido entre os assustados porcos, todo lambuzado de fezes suínas. Nossa casa em Pires era pertinho da dele, e, ao escutar o alarido dos animais, geralmente à meia-noite, intuía que ele estava por lá…

Transformado em lobisomem, o gentil alfaiate mostrava sua faceta de horror, exibindo caninos monstruosos e garras afiadas. Usava-as para estraçalhar suas vítimas, geralmente novilhas e carneiros, alimentação predileta, descreveu.

– Aí, já saía pulando que nem macaco rumo às matas fechadas que margeiam o Rio Verde, iniciando farta caçada noturna. No dia seguinte corria o mesmo falatório: animais encontrados sem um gota de sangue, gargantas rasgadas…

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AINDA que tais ataques causassem prejuízos, prevalecia entre sitantes e fazendeiros de Pires um acordo não oficial de proteção ao lobisomem. É que isso significava o bem-estar geral das pessoas, posto que o confesso lobisomem nunca atacou ninguém, apenas animais. E assim todos fingiam estar tudo bem, continuando a encomendar roupas ao tétrico alfaiate…

Dizia-se que vários fazendeiros flagraram o próprio atacando seus animais, e simplesmente ignoraram. Melhor perder uma novilha do que a própria vida…

Houve um cidadão local, conhecido em Pires pela alcunha de Zé Miúdo, que duvidou desse falatório, confrontando o alfaiate provocadoramente. “Não acredito nessa balela de lobisomem. Se é você, pode atravessar quando quiser na minha frente”, desafiou.

Zé Miúdo se esqueceu logo de ter provocado o homem-lobo, e ao retornar de uma festa no sítio de comadre Conceição, três dias depois, justamente numa sexta-feira de lua cheia, sentiu que alguma coisa o acompanhava arfante.

Na sequência, fosse o que fosse, aquilo saiu mastigando a mata lateral à apertada estradinha, e deduziu que tinha ido embora…

– Escutei alguns cachorros o acuando mais adiante, a uns 300 metros, acho, e aí fui ver o que era. Lá estava o maldito lobisomem, porque homem nem lobo nunca foi… – confessou a amigos.

Ao chegar no foco da confusão, ele só viu cachorros ganindo ao ser lançados feridos rumo à mata, e o bichão de olhos vermelhos pulou bem na sua frente, abrindo os braços cabeludos e as mãos providas de garras afiadíssimas.

– Consegui observá-lo bem, em decorrência da noite de lua cheia. Ele me fitou severamente, detendo meus passos por uns dois minutos. Depois, fez um gesto de que podia passar, e, percebendo minha hesitação, saiu novamente para a mata. Corri o máximo que pude até chegar em Pires…

NO DIA SEGUINTE, ao passar desconfiado em frente à alfaiataria, Zé Miúdo foi convidado a entrar. Sério, o alfaiate comentou sem rodeios:

– Ontem à noite você me viu, Zé… Deve estar lembrado dos cachorros me acuando na encruzilhada. Fiquei bem diante de você, e, se quisesse, você hoje estaria no cemitério… Só quis provar que existo, que não minto. Não duvide mais de mim; da próxima vez não serei tão piedoso…

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Todos estranharam em Pires quando viram Zé Miúdo embarcar às pressas no Trem Azul no final da tarde, nunca mais sendo visto em Pires.

O encarregado da estação disse que ele tremia visivelmente de expectativa, checando se o trem estava no horário, quantos minutos faltava pra chegar. Foi o primeiro a embarcar na composição…

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

Foto: meu saudoso pai, Carlos Petronilho de Queiroz

Direitos autoriais reservados

*Baseado em relatos de moradores de Pires, muitos meus parentes.

 

 

 

 

 

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