Cuidado ao comemorar o Ano Novo…

1974 – Mais uma vez, retrocedo aos tempos de motoqueiro feliz em Montes Claros-MG, quando minha Yamaha GT-50 cumpria plantão madrugador pela cidade. Nunca entendi aquela falta de sono…

Os funcionários da Padaria Globo já me conheciam, pois surgia por lá no ato da abertura do estabelecimento, logo nas primeira horas da manhã. O menu do meu café da manhã nunca mudava: pão amanteigado na chapa e copada de leite morno, com farinha láctea. Dali, revigorado, saía direto para ir dormir…

Um dos pontos prediletos das inesquecíveis rondas noturnas tinha lugar no bairro Todos os Santos, próximo ao antigo orfanato, onde residia garota encantadora. Por discrição, omitirei nomes, mas os amigos da época sabem muito bem quem é…

A minha insistente idiotice é que aquela menina nunca me deu a menor trela, até sorrindo zombeteira do meu olhar babão…

Nas sessões das 16h no Cine Montes Claros, ela chegava toda imponente numa VW Brasília azul, acompanhada do pai. Juntava-se a uma amiga quase ruiva, e passavam a saracotear pelo saguão do cinema, provando bombons e sorvetes na lanchonete; se cruzássemos, captava risadinhas divertidas.

“Sou um palhaço apaixonado”, deduzi.

Ainda hoje, indago a mim mesmo por qual motivo insisti tanto nesse flerte platônico. Romantismo barato costuma acometer almas sensíveis a armadilhas do amor. Na adolescência, sentimentos do tipo machucam mais fundo. Chorei muitas vezes.

Na atualidade, quando conto que distribuía rosas e bilhetinhos alta madrugada, sem me importar com frio ou chuva, sou tachado de insano ou completo babaca. Concordo: nunca recebi um mero “obrigado” de nenhuma das musas que cobicei poeticamente.

ENTÃO…

Após depositar os mimos, rosas furtadas na Praça da Matriz, passava a efetuar giros pelo quarteirão, sem poupar estardalhaço. Queria, de fato, chamar a atenção.

Logo nas primeiras voltas, janelas escuras ganhavam luz. Na sequência, vultos nervosos surgiam no quadrilátero de cortinas, gesticulando ameaçadores. Não teriam mais uma boa noite de sono…

Numa noite de Ano Novo, não recordo exatamente qual, fui atormentar novamente os irritados vizinhos da garota. Sabia que, devido à comemoração, muita gente estava acordada, e assim havia chances dela me ver passar, entendendo o quanto estava apaixonado. Veja só quanta bobagem!

Logo nas suas primeiras voltas, surgiram pessoas brandindo os braços; clara ameaça de murros. Não liguei, lógico, confiando que a Yamaha se constituía num instrumento rápido de fuga. Inimaginável alguém se arriscar a ser atropelado…

Ria assim comigo mesmo, da cara irritada das pessoas.  Novamente, aproximei-me da curva de acesso à casa da musa. Foguetes se antecipavam à meia-noite comemorativa do Ano Novo, e eu senti que estava integrado de corpo e alma ao movimento festivo.

Perto da curva, a cerca de 60 km, acionei o freio traseiro, que não respondeu. Acontecia o quê?

A seguinte derrapada explicou tudo: freara em cima de lata amassada de cerveja. Havia várias por ali, armação sacana…

A GT fugiu do meu controle, cismando em dormitar célere no asfalto úmido. Estava caindo!

Em vão, tentei apoio emergencial ao bater um dos pés no asfalto, perpetrando dança desconexa na pista. Queda mesmo inevitável…

O choque da moto se confundiu com meu próprio corpo estatelando no manto áspero. Sentindo o impacto, a GT alardeou rápida aceleração, emudecendo em meio a ruídos metálicos do atrito inesperado.

Nesse rodopio dolorido, perigoso, deu para ouvir gargalhadas imprecisas. Certamente, das pessoas que armaram as latinhas para que caísse feio…

Meio zonzo,   consegui levantar e também erguer a moto, não sem poder evitar a aproximação de curiosos. Em cada fisionomia, flagrei satisfação mórbida por ter causado aquilo. Nem conhecia aquelas pessoas…

Uma senhora veio até mim preocupada, perguntando se estava bem. Ofereceu-se para me levar ao hospital. Expliquei que estava bem, apenas com arranhões. Agradeci a gentileza da desconhecida. Meus cotovelos sangravam, e o cinto estava rasgado na lateral. Protegeu-me de algo pior…

Foi aí que vi quantidade anormal de latinhas de cerveja espalhadas na pista, estrategicamente dispostas perto da curva. E se tivesse batido a cabeça?

À parte dos arranhões, não sofri nenhuma sequela, apesar das dores. Lamentei os danos materiais na GT, a exemplo de manete, espelho e setas quebradas. Grande quantidade de gasolina também derramou no asfalto.

Com certeza, minha aliada boêmia devia estar sentindo dores a seu modo. Relutou em reavivar o motor nas primeiras tentativas de partida. Finalmente pegou, e saí com a sensação de estar andando torto. O facho do  farol fugiu ao foco da pista.

PELA PRIMEIRA VEZ, não passei pela Padaria Globo, optando por chegar de mansinho em casa. Nem adiantou tentar disfarçar a queda, o vexame que protagonizei no bairro Todos os Santos: meu pai descobriu tudo só de ver minha roupa suja e ensanguentada. Solitariamente, ele comemorava a virada do ano…

Não recordo de ter voltado à famigerada rua da musa mal-agradecida. Cheguei a vê-la em Belo Horizonte tempos após, nas férias escolares, perto da Praça da Liberdade. A dica do endereço partiu de vizinha.

A bordo da Honda CG 125, propriedade do amigo Zeca Lopes, ousei uma paquera mais explícita. Não deu certo: esnobe, ela virou o rosto e entrou no prédio. Voltei à Rua Rio de Janeiro, endereço da madrinha, completamente desiludido. Foi o THE END desse amor platônico…

DAÍ que recomendo: cuidado ao comemorar o Ano Novo. Nem tudo pode ser festivo…

João Carlos de Queiroz, jornalista