Ainda que esteja predestinado a me tornar defunto em tempo impreciso, não gosto de velórios. Nunca gostei, aliás. Acho tais cerimônias mórbidas, pois concentra chororó ininterrupto em cima de corpos inertes, por vezes entremeando risadas incompatíveis ao ambiente fúnebre.
Há velórios e velórios, lógico, mas já presenciei, via internet, defuntos sendo velados festivamente, como se aquela morte fosse obrigatório feito comemorativo.
Inclusive, também é alardeado pelas redes sociais,além do tradicional jantar ou almoço servido aos presentes, alguns velórios terminam em animado arrasta-pé: os casais fazem rodopios dançarinos nos quatro lados do caixão, só detendo tamanho alvoroço ao raiar do dia…
Esse descompromisso ao luto, por vezes, chega a ponto de o tórax do defunto se transformar em bandeja providencial de cerveja e pizza; quando não muito, em progressiva batucada sambista…
Também é fato que alguns velórios do tipo apenas obedecem a pedido do morto em vida. Se foi cachaceiro, quer que os amigos lhe prestem a última homenagem, à base de álcool; se foi músico, quer samba…
Por motivos similares, muita gente não perde um velório sequer, ciente de que, por trás do comum aparato fúnebre de tristeza, sempre rolará noitada alegremente festiva. O morto nunca vai reclamar…
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Refiro-me, aqui, aos velórios tradicionais, sediados em sítios, ou em residências de pequenas cidades; não aos que acontecem em ambientes especialmente preparados, empresas do ramo.
Ali se concentram não apenas um defunto, mas vários. E cada sala tem nome próprio, geralmente de flores: Orquídea, Hortência, Margarida, Orquídea, etc., para facilitar a localização. Ao chegar, a pessoa já sabe em qual delas está “seu” morto…
Em síntese: estar vivo é bem melhor do que virar estátua de apreciação chorosa ou festiva de estranhos e conhecidos.
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Nos anos 80, quando residia em Montes Claros, fui convidado por um amigo para se despedir de conhecida sua, vítima de infarto fulminante. A falecida, mulher idosa, integrava família tradicional na cidade. Relutei antes de aceitar ir à cerimônia fúnebre.
Mal chegamos ao velório, ainda no alpendre da casa, senti forte cheiro de velas e aquele perfume nauseante de jasmim. Fomos entrando em passos leves, como quem não quer incomodar…
A morta jazia solene numa luxuosa urna marrom, adornada por flores multicoloridas. Os parentes convidavam as pessoas para chegar mais junto dela, não sei pra quê… Alguns comentavam, de forma desolada:
– Ela estava bem até hoje, de manhãzinha… De repente, perto do meio-dia, sentiu-se mal – Difícil…
Em atitude estática, a defunta mantinha imperioso semblante contrito, resignada ao enterro. A viagem final aconteceria horas após…
Impressionou-me ver suas mãos entrelaçadas sobre as flores, exibindo adorno florido nas unhas compridas, pintadas de vermelho-escuro. Essa cor contrastava com sua pele branca e manchas marrons, reflexo natural da idade.
Enquanto a observava dissimuladamente, eis que um dos filhos se aproximou e começou a falar das virtudes da falecida. Esse eu conhecia mais ou menos.
Certamente, deduziu, também eu estava impactado pela perda. Nunca vira aquela mulher, na verdade…
Sem perceber meu desconforto, o sujeito ficou falando e falando, e chegou a segurar meu braço para melhor se aproximar de sua mãe.
– Pode tocar nela, meu amigo! Pode se despedir à vontade da minha rainha! – disse entre lágrimas.
Eu nem soube qual reação tomar; imposição explícita.
O rapaz, creio que acreditando que talvez eu estivesse tímido para tocar na morta, pegou minha mão e a levou diretamente à testa da mãe. Toque idêntico a um bloco de gelo; meu corpo arrepiou na hora.
Em seguida, volteando o caixão, ele beijou os pés da morta, igualmente adornados por delicado trabalho de manicure {a defunta estava sem meias}. E o que eu temia, finalmente aconteceu:
– Pode beijar também os pés dela, eu consinto! Sei o quanto minha mãe era querida!
Fiquei ali, no mais completo bico de sinuca, por longos segundos, sem saber o que fazer para fugir dessa missão sinistra.
Não percebendo meu constrangimento relutante, o filho chorão me arrastou para perto dos pés da mãe, e quase forçou minha cabeça em direção aos dedos gordos da defunta, pintados de vermelhão-escuro.
Ciente de não ter escapatória, busquei coragem onde não tinha e meus lábios quentes colidiram rápidos com a pele gelada e rija da elegante defunta.
O rapaz, sempre pressionando minha cabeça levemente, quis que repetisse o beijo…
– Ela vai deixar saudades, muitas saudades – dizia sem parar, chorando.
Livrei-me de sequenciar essa ingrata função ao suspirar alto. Dei a entender estar inconsolável pelo luto repentino, desejoso de respirar ar fresco.
O rapaz soluçou ainda mais alto, francamente emocionado. Sabia o quanto sua mãe era amada em Montes Claros…
Antes que ele insistisse em outra saraivada de beijos nos pés da falecida, abri linha do velório de modo dissimulado. É quando você finge que vai ao banheiro…
Que convite sacana meu amigo arranjou pra mim!
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*Só fui beijar novamente um cadáver no ano 2000, no velório da minha mãe. Oportunidade em que constatei que a morte disfarça bem sua frieza gélida. Porque, apesar de ostentar fisionomia serena, sono de anjo, meus lábios encontraram impessoal bloco de gelo na sua testa. Lembrei-me imediatamente dos pés da defunta…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista