Sempre que ia a BH no Trem Azul, ou mesmo a bordo dos ônibus amarelos da antiga DANIFI, cumpria ritual quase diário pelas lojas da capital. Fazia isso pela manhã e à tarde, visitando um sem número de estabelecimentos da área central da capital mineira. Detalhe: não comprava nada, pois não tinha um centavo sequer.
Duas lojas se enquadravam na minha rota preferencial: Mesbla e Americanas, ambas com setores abastados de novidades interessantes a crianças e pré-adolescentes.
Alguns funcionários deviam adivinhar isso, esquivando-se deliberadamente de me conceder a mínima atenção. Nem ligava, lógico, entendendo que a função deles era atender quem podia comprar. E, na condição de visível descapitalizado, não havia motivos para perderem tempo comigo…
As principais lojas de revenda de produtos ligados a ótica e cinema (projetores) ficavam distribuídas pela ala central, entre as ruas São Paulo, Rio de Janeiro, Tupinambás, Tamoios e na extensão da Avenida Afonso Pena.
Também a Galeria do Ouvidor, que interligava duas ruas, convergia grande número de lojas desse tipo, exibindo projetores diversos: Super-8 sonoro, 16 mm, de eslaides e filmadoras. Até mesmo as lupas me encantavam, sugerindo projeções ampliadas…
Na Rua São Paulo, descobri uma oficina de projetores no segundo andar de prédio comercial baixo. Fiquei encantado ao ver a profusão de máquinas da Sétima Arte aguardando conserto, ou outras sendo testadas em rápidas projeções.
O técnico dessa oficina não evidenciava simpatia de prosa, e mal me olhava quando detinha olhar curioso sobre o balcão, e sequenciava suas atividades como se ninguém estivesse ali.
Não me importei com isso também: meu objetivo era namorar os equipamentos de cinema.
Nessa saudável peregrinação de franca inutilidade comercial, ainda descobri distribuidoras de filmes 16 mm e 35 mm, localizadas próxima à Estação Ferroviária local. Nem sei quem me informou sobre isso; porém, marcava presença usual naquelas imediações.
Não poucas vezes, fui andando até o Viaduto Santa Tereza, bairro Floresta, e dali admirava o movimento da estação ferroviária.
Esperta, minha tia percebeu que minha ociosidade podia ser aproveitada, e passou a me levar para prestar pequenos serviços no escritório do Grupo Irmãos Pereira. Tornei-me encarregado oficial de buscar pães de queijo para o café, pagar encargos nos bancos ou ir comprar produtos básicos de higiene.
Semanas após, recebi modesto salário, admirando-me pelo dinheirinho extra. Estava empregado e nem sabia!
Corri então afoito até uma dessas lojas que visitava e comprei meu primeiro projetor, Super-8 simples, mais uns desenhos animados. Já valeu todo meu esforço de levantar cedo e acompanhar a tia.
Naturalmente, ela achou graça ao ver o projetor funcionando no apartamento, e assistiu interessada um dos filmes.
HOJE, tenho muitas saudades desse tempinho delicioso. Foram bons passeios, independente dos bolsos vazios e o suculento apetite para abocanhar produtos fora do meu alcance financeiro. Mas ficava quedado diante das maravilhas expostas nas vitrines ou estacionadas nas lojas.
Não raramente, sentia-me deprimido por querer ter e não poder, e então, sorrisinho amarelo, saía de mansinho das lojas, volteando olhares de despedida às tentações estáticas inacessíveis ao meu propósito de posse.
Mais adiante, uma outra loja de motos ou produtos óticos em geral atraía meus passos solenes para nova incursão platônica, e aí gastava bons minutos de novo namoro firme, não correspondido.
Aconteceu também de ser surpreendido pelo deslizar gritante de portas corrediças lá pelas 18h, ocasiões em que algum funcionário dizia delicadamente estar fechando. “Ah, tá bom!”, respondia desse modo matuto, indicando já estar ciente.
Na sequência, acenando despedidas, ganhava a rua frontal à loja, parcialmente toldada pelo manto da noite próxima. E em passos arrastados rumo à Rua Rio de Janeiro, endereço da madrinha, deduzia que meu gasta-sapatos rotineiro chegara ao fim.
ENQUANTO caminhava pelo longo calçadão da Avenida Afonso Pena, ia observando a movimentação de acolhida noturna: trabalhadores autônomos preparavam fogueira em tambores cortados, fogareiro de torra-amendoim.
Alguns comerciantes ficavam postados em frente às lojas com portas entreabertas, cumprimentando todos que passavam. Respondi educadamente a esses cumprimentos. Tentava óbvia de garantir clientela para o dia seguinte.
Numa outra extremidade do quarteirão, perto de Avenida Amazonas, mais vendedores ambulantes preparavam espetinhos e pastéis. Alguns cantarolavam sem parar, talvez para chamar a atenção, saltitando atleticamente para espantar o frio chegante…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista