Férias escolares no sítio dos bondosos tios Ambrósio e Nina, em Pires e Albuquerque [atual Alto Belo], eram sempre prazerosos, a começar pelo embarque na Estação Ferroviária de Montes Claros, às 17h30. Admirava a imponência da locomotiva puxando tantos vagões, o que gerava ritmado mastigador de trilhos. Determinação de viajar até Belo Horizonte, deduzi; só chegaria ao meio-dia na capital mineira.
Após partir de Montes Claros, viajávamos mais ou menos uma hora, com parada inicial em Glaucilândia, cuja ponte de ferro, transposta vagorosamente, proporcionava visão abrangente da disposição das lavadeiras logo abaixo. Nunca entendi direito por que batiam com tanta força as roupas nas pedras; típico “espanta sujeira”, acho…
Dali em diante, bastava aguardar a próxima parada, que acontecia na modesta estação de Pires, terminal sempre movimentado de sitiantes e vendedores ambulantes. Poucos desembarcavam em Pires, enquanto vários passageiros com trouxas e malas imensas – subiam pela escadinha dos vagões. A maioria se aninhava nos vagões da terceira classe, cadeiras de pau. Mais baratos…
Nesse momento, eu suspirava meio infeliz, pois amava viajar de trem…
Descíamos então rápidos, mochilas nas costas, já cientes de que o trajeto até o sítio dos tios, de uns seis quilômetros, exigia esforço físico. Só de pensar no capão fantasma à frente eu ficava amedrontado…
Antes disso, teríamos de transpor o Rio Verde, pertinho dos trilhos da R.F.F.S.A.; travessia de puro equilíbrio sobre pedras escorregadias…
Na maioria das viagens, por conta do horário do trem, isso ocorria geralmente ao cair da noite.
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Apesar de manter precaução nessa travessia, certa vez terminei levando tombo memorável nas águas geladas do rio.
As gargalhadas de zombaria do mano mais velho e do primo Vinícius nunca saíram da minha cabeça; não tive outra opção a não ser marchar encharcado até o sítio, tremulando de frio..
Havia ainda, mais além, uma fazenda com um imenso touro bravo, cujas perseguições ganharam fama naquela região.
Inevitáveis, portanto, os arrepios de medo ao passarmos pelo silencioso pasto: o temor de perseguição surpresa desse bovino exigia atenção redobrada para todos os lados.
Felizmente, nunca o tal touro surgiu para nos atazanar; devia estar dormindo naquele horário…
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Depois do rio, do touro e do capão, tudo se resumia a alegria: estávamos próximos do sítio dos saudosos tios. Não raramente entabulávamos cantoria alegre durante a caminhada.
Acho que, por causa disso, os tios sempre nos recepcionaram na porteira do sítio, apesar do horário noturno, saudando-nos ao rodopiar alegremente as lamparinas a querosene.
Impressionante como cumpriram esplendidamente o papel de anfitriões dos peraltas parentes!
Tia Nina não fazia rodeios para nos convidar para comer. Em tom de quase impaciência, ela gritava alto lá pelo meio-dia, postada na soleira da porta da cozinha, cuja escadinha de barro tinha rasgos nas laterais. “A comida está na mesa, crianças!”
Era o mesmo que apertar um gatilho de revólver para alvoroçar a turba faminta, os visitantes em férias [eu, o mano e primos].
De onde estivéssemos, saíamos correndo para apreciar os quitutes expostos na imensa marrom escura. Já desconfiei, pelos anos de caduquice daquela mesa surrada, que talvez alguns defuntos pudessem ter “dormitado” ali antes de partirem para seu perpétuo lar.
Conforme se sabe, na roça as pessoas velam corpos em cima de mesa, e, por vezes, sem caixão. São enterrados em redes. Pode ser que isso tenha ocorrido por lá também, vá saber…
Um dos tios de amigo de infância foi velado dessa forma em Brasília de Minas. Só que, todas as noites, costumava zanzar pela casa, assustando quem pernoitasse nos quartos sem porta. Eu mesmo vi sua figura translúcida perambulando pela casa, como se estivesse flutuando. Chegou a puxar nosso cobertor…
Voltando a tia Nina, entre mordidas nos biscoitos de goma cheirando pequi, ou goladas generosas no café melado, algo lembrando rapadura em fase de ponto, os tios e primos mais velhos contavam causos e mais causos. Uns, para ser sincero, bem destituídos de qualquer fundamento; outros, mais aceitáveis.
Por estar exposta em cima da mesa, uma pedra lisa, retangular, sempre chamou a atenção geral. Até que explicaram ser curadora de picada de cobra. O primo Nem [Sebastião] disse isso com naturalidade, explicando que aquela pedra realmente chupava o veneno do réptil, expelido em minutos após ser deixada numa vasilha rala de leite.