O ainda inexplicável “fato” aconteceu em Montes Claros-MG nos anos 80, quando perambulava com meu velho Dodge 1.800 GT à procura de alguma aventura amorosa. Pelo avançado das horas noturnas, a cidade estava praticamente deserta, já com travesseiro de sono armado. Mas, mesmo assim, resolvi continuar tentando; nunca se sabe…
Nesse roda-roda insosso, adentrei no bairro Melo e empreendi círculos a esmo pelas ruas sombrias, matutando a possibilidade de sair dali rumo ao Morada do Parque, onde residia. O solitário passeio incluiu o longo quarteirão que escondia o Colégio Polivalente, educandário onde minha mãe lecionou História durante anos.
Na época, o colégio contava apenas com uma entrada principal, bem no centro, “abrindo os braços” lateralmente com seus muros espichados, mais baixos do que o frontal. Quando ia buscar minha mãe, divertia-me ao ver a quantidade de alunos saindo rápidos daquele único portão, semelhantes a formiguinhas alvoraçadas; logo se dispersavam pela rua da escola…
Naquela noite de sábado, porém, não havia nenhum estudante em trânsito na área, mas apenas uma garota que caminhava com passos leves, sem a mínima pressa. Pelo porte, devia ser linda!
Comemorando a sorte de surgir a possibilidade de uma conquista, reduzi a marcha do carro para melhor apreciar os passos de puro glamour daquela estranha. Aproximei-me mais e percebi que tinha longos cabelos negros cobrindo parcialmente o seu rosto. A moça ignorou o meu cordial cumprimento (“Olá, boa noite!”), e continuou andando do mesmo jeito…
Quase desisti de continuar esse flerte, acelerando o Dodge para ir embora. Metros à frente, detive o veículo para uma nova tentativa, visto que a menina passaria bem a meu lado. Ela veio agora mais rápida em minha direção, e intuitivamente abri a porta do carro {sem muita esperança de que fosse entrar}. Entrou, afinal, para minha surpresa!
“Que noite linda, não acha?”, foi meu cumprimento inicial. Nenhuma resposta; a garota sequer virou o rosto para dar a entender ter ouvido algo…
Imaginei que ela adoraria ver a cidade de um lugar mais alto, e sugeri então irmos ao Ibituruna, bairro em processo de construção (ruas asfaltadas e sem iluminação, com um sem número de construções inacabadas e lotes totalmente vazios, somente murados).
Durante o trajeto, falei que nem papagaio, a fim de arrancar algumas palavras da moça. Monólogo infrutífero. “Talvez ela seja muda” – pensei.
Na época, para acessar o cume do Ibituruna havia apenas uma entrada, situada nos fundos do Melo. Passei por ela preocupado em não conseguir localizá-la novamente ao retornar…
Finalmente, detive o carro no lugar mais alto do futuro bairro, frustrado em não poder ofertar visão panorâmica noturna da cidade à garota a meu lado: o céu nublado cobriu a lua, imprimindo negrume geral. “Não temos estrelas no céu, mas eu tenho uma Estrela Dalva aqui no carro”, elogiei. E ao mover o corpo para acender a luz do carro, comentando que queria ver o quanto ela era linda, a moça respondeu com uma voz pra lá de sinistra:
– Se quer me ver, apenas olhe para mim; não precisa acender nenhuma luz!
Tais palavras me gelaram dos pés à cabeça, pois compreendi a fria que poderia ter entrado. Logicamente, nem virei a cabeça para olhar a moça, conforme ela instruíra.
– Por que não quer me olhar? Não queria tanto me ver? Olhe quem você conquistou hoje! – foram novas palavras da estranha no mesmo tom macabro.
Intuitivamente, liguei o carro avisando que estava perigoso ficar ali por causa da escuridão, sendo melhor ir embora. Ainda manobrando, a moça insistiu: – Olhe para mim! Veja como sou bonita!
Desci pelas ruas asfaltadas e escuras do futuro bairro pensando que poderia não encontrar a única saída, mas dei sorte. A garota emendou a mesma frase sem parar: “Olhe para mim;/Olhe para mim…”
Em minutos, eu consegui estacionar novamente em frente ao Colégio Polivalente. Uma vez que a moça continuava estática, estiquei o braço e abri a porta do carro. Ela saiu elegantemente e sem dizer mais nada, retomando os passos vagarosos pelo quarteirão. Quanto a mim, arranquei veloz para sair de perto daquilo…
Já quase próximo à esquina, decidi empreender guinada brusca de 180o e retornar à porta do colégio. O natural seria ver a moça esquisita circulando ainda pela calçada, pois a deixara bem no centro da extensa rua (portanto, sem tempo hábil de sair daquela área). Só que não havia ninguém por lá…
Devo relembrar a existência de muros altos em frente ao Polivalente e os próprios muros do educandário. Ademais, o único portão da escola estava fortemente trancado. Impossível alguém desaparecer tão rápido!
Recordo que circulei várias vezes pelos quarteirões próximos na tentativa de localizar aquela desconhecida; recusava-me, enfim, a acreditar que fosse um fantasma: é o que era realmente, hoje admito…
Por João Carlos de Queiroz