Meu velho pai, Carlos Queiroz, morador num sítio próximo dali, afirmava ter visto assombrações de todo tipo flutuando nas ruas de Pires. Ao ir ao povoado fazer compras, Carlão exibia um respeitável revólver 45, instrumento de temor daqueles que não conheciam sua veia pacífica. Vários saíam dos armazéns quando o sisudo cavaleiro tamborilava esporas no assoalho de madeira para tomar uma talagada de pinga no balcão; cena algo similar aos cowboys valentes dos filmes de faroeste…
“Carlão Rapadura”, apelido que meu pai ganhou na velhice, dizia que seu revólver era instrumento de defesa pessoal, pois andava em matas fechadas e perigosas daquela região, habitadas por animais ferozes. “Já matei muita cobra venenosa e tamanduá bandeira por aí”, dizia.
Já com os amigos mais chegados, depois de boas talagadas de cachaça com limão, ele abria o confessionário, salientando ter receio mesmo era de ser atacado por lobisomens – motivo principal do porte da arma. E um dos bichos do além, comentava, morava justamente em Pires e Albuquerque, desempenhando, no povoado, as funções de inocente alfaiate. Sujeito, aliás, conhecido por todos, tachado de “estranho”, nada popular.
O tal alfaiate em questão ostentava um horripilante nariz aquilino, de bruxa. O faz e remenda roupas devia ter entre 45 a 50 anos; homem alto, esbranquiçado, e com a face tomada por marcas de varíola. Vestia-se sempre de forma elegante. Vê-lo sem terno pelas ruas causava estranheza a quantos conheciam seus costumes requintados, apesar de sua figura cadavérica causar calafrios…
“Já topei com esse sujeito pelas ruelas de Pires uma série de vezes. Parece uma alma de outro mundo. Fingi nem vê-lo, porque podia estar em processo de transformação de homem para lobisomem” – palavras do meu pai.
O ritual de transformação só acontecia na sexta-feira à meia-noite e num chiqueiro de porcos que o alfaiate vampiresco mantinha no quintal de sua casa, segundo meu velho costumava contar nas reuniões familiares.
“Na quaresma, ele podia se transformar no “bicho” em qualquer dia, menos aos sábados. Eu mesmo já presenciei quando retornou de caçadas noturnas. Dava pra ver que as elegantes roupas estavam rasgadas e sujas de sangue. Algum pobre inocente virou jantar em suas mãos…”
Nunca se soube que esse lobisomem tivesse vitimado algum humano, apenas animais de médio porte, preferencialmente bezerros – acrescentava.
Meu velho contou mais: afirmou ter disparado, certa vez, contra o dito lobisomem, numa ponte do lugarejo, e ele voltou à forma humana na hora, apresentando o ombro dilacerado pelo projétil. “Disparei com medo de ser atacado. Ele se posicionou bem no meio da ponte. Mandei chumbo para me precaver…”
No dia seguinte, havia uma placa anunciando FECHADO na alfaiataria, e o estabelecimento permaneceu assim por quase duas semanas. Tempo que o alfaiate exibiu o ombro esquerdo enfaixado. “Justamente o lado em que acertei o tiro no lobo”, afirmava Carlão.
Também contou que o alfaiate não se transformava apenas em lobisomem: era capaz de virar qualquer coisa que quisesse, seja móvel ou animal. E se ele rezasse numa divisa de duas propriedades, os répteis o obedeciam.
“Tinha uma reza infalível para retirar cobras de um lugar e transferi-las para outro. Não matava nenhuma. Bastava pronunciar algumas palavras e as cobras abandonavam a propriedade em que viviam; parecia uma procissão de répteis na mata…”
Um dos amigos do meu velho dizia duvidar que o alfaiate se transformasse em lobisomem, e anunciava isso pra quem quisesse escutar. O lobisomem então o acuou quando regressava para o sítio, já tarde da noite. O homem/lobo se postou defronte ao cético com reluzentes olhos de fogo, uivando de forma escandalosa. Ainda empreendeu gestos agressivos, apesar de não o atacar fisicamente. Foi o bastante para esse chegado do meu velho borrar as calças. Nunca mais ousou falar nada sobre o alfaiate…
Também o falante Ambrósio, saudoso tio de consideração e morador num sítio de Pires, contava ter tido um encontro bem desagradável com esse lobisomem. “Após festar na casa de um compadre, topei de cara com o bicho na travessia do Rio Verde, próximo à linha de trem. Acho que pretendia me atacar. O mal era tanto que a água do rio borbulhava sem parar ao seu redor. Para me proteger, atravessei o facão na boca, coisa que todo lobisomem tem pavor. A besta saiu do rio toda desatinada, e adentrou rápido na mata afora. Uivou agoniada por uns bons minutos”.
(Por João Carlos de Queiroz)