Por João Carlos de Queiroz – Dia de viagem de trem era sempre uma data importante e de muita alegria, ansiedade total para que as horas voassem e, de repente, lá estivéssemos, a bordo de algum vagão. E o esperado aviso de partida, duas buzinadas rápidas, significavam corre-corre geral pela plataforma da Estação Ferroviária de Montes Claros, com as últimas malas sendo embarcadas às pressas. Ouvia-ainda, em meio àquele burburinho de gente, vários apitos dos funcionários, acrescentados por gritos de “o trem vai partir!”
Ia esquecendo: desembarcávamos na praça da velha estação sempre num sedã preto, táxi de amigo do meu pai, não sei se da Ford ou Chevrolet. Mas tinha a cara bicuda, imponente, volante branco e painel metalizado, mistura de dourado e vermelho. Os bancos, que delícia, pareciam sofás, extremamente macios. Minha mãe agradecia a gentileza do transporte. Hoje, desconfio que se tratava apenas de carona gentil.
Já no interior da estação, as últimas conferências, documentos, pertences, pequenos objetos pessoais da matriarca, acomodados numa frasqueira surradinha. Foi sua bolsa de viagem durante anos…
O trem azul parecia estar nos aguardando, pacientemente posicionado ao longo da plataforma. Eu tinha uma mania esquecida ao chegar à estação: contar todos os vagões, tarefa não muito fácil. É que “Notinha” matinha vigilância cerrada, olhos atentos, temerosa de que não estivesse por perto na hora da partida.
Ainda hoje recordo, com nitidez, dos vagões perfilados da composição em sua respectiva ordem: locomotiva (às vezes duas), carro-correio, vagões da terceira classe, segunda, restaurante, leito e poltrona-leito. A cor azul do trem alquebrava na terceira classe, geralmente dois vagões com estrutura de madeira, pintados de marrom. O saudoso trem azul quase simbolizava um clube, mantendo ritmo matraqueado para algum lugar distante…
Minha mãe costumava encontrar conhecidos nesses embarques. Cumprimentava-os alegremente, trocando ideias acerca dos afazeres em Belo Horizonte, nosso destino usual. Numa dessas viagens, acompanhado do padrinho, filei sanduíche dos passageiros próximos. Adultos se sensibilizam ao ver uma criança de brilho pidão nos olhos…
“Os vagões deslizavam céleres – acoplados aos trilhos de bitola estreita – logo nos primeiros minutos após a partida; protagonizavam um pêndulo gracioso e de firmeza inacreditável; espécie de dança altiva para quem tem pressa de chegar ao seu destino; mas muitos não queriam que as viagens terminassem…”
“PARTINDO!” – grito rouco do encarregado da estação. Nas janelas, muitos acenos para quem ficava, e menos de um minutos após o último apito sonoro da locomotiva, um tranco leve e a composição finalmente iniciava seu trajeto rangente, ganhando velocidade moderada na primeira curva à frente, trilhos posicionados metros acima das casas corajosas existentes em ambas as extremidades.
O açoite da ventania causada pela passagem do trem se refletia, de forma dançarina, nos arbustos que ladeavam a via férrea, em pontos neutros de habitação popular. Ao longe, várias pessoas acenavam felizes, a típica saudação de boa viagem! Sentia-me um privilegiado por estar ali!
Agora, a buzina da locomotiva vermelha/ amarela estardalhaçava sua força sem cerimônias; um aviso bem diferente da saudação simpática das centenas de moradores que iam ficando pra trás: “Saiam da frente!” – mensagem inequívoca dos ensurdecedores tufos de som. Nem precisava olhar para saber que minha genitora sorria mansamente. Gostava de viajar de trem…
O vagão poltrona-leito, seu predileto, equivalia a uma classe de luxo das companhias aéreas, enquanto o de segunda classe podia ser qualificado como classe econômica. A poltrona se reclinava totalmente, daí seu nome de “leito”. E o chefe do trem fornecia cobertores e travesseiros ao cair da noite, quando a composição cortava gélidas regiões de Minas…
As primeiras paradas eram em Glaucilândia e Pires, então distritos. O trem estremecia a ponte ferroviária ao cruzá-la vagarosamente, enquanto, lá embaixo, as lavadeiras faziam coro de saudação. Vidinha simples, sofrida, porém feliz, já percebia… O cheiro da roça estava impregnado no ar, no expirar do dia, início da fase crepuscular.
A parada seguinte, em Pires, demorava mais um pouco, pois sempre implicava num maior número de passageiros à espera do trem. Nunca vi nenhum deles embarcar no poltrona-leito, somente nos vagões de segunda e terceira classes.
No reinício da viagem, entendi em parte o porquê disso: eles jamais se sentiriam à vontade para dar boas baforadas nos seus cigarros de palha no vagão poltrona-leito, emendando-as com cusparadas gosmentas. Também percebi que a maioria já desembarcava nas estações seguintes, de cidades igualmente humildes. Não compensava pagar luxo por um percurso tão curto.
Noite fechada, o trem demonstrava fôlego trabalhador, cruzando cidades e mais cidades. Já não era possível assistir o desempenho fumacento da locomotiva nas curvas, apenas sentir alguns trancos ocasionais e o farfalhar dos motores robustos da máquina. Tive inveja do maquinista, muitas vezes, imaginando a exposição fantástica que os trilhos descortinavam a cada quilômetro percorrido, inclusive à noite, varrida pela dupla de faróis. O imenso lagarto de aço cumpria, assim, mais uma nobre missão…
lus