Pedrinho. Assim todos nós o chamávamos. Um menino adorável, de sorriso fácil e inteligentíssimo. O dom para desenhos, esculturas, logo encantou quantos já o admiravam. Modesto, Pedrinho dizia que ainda estava aprendendo a rabiscar, ainda que suas produções causassem estardalhaço entusiástico, de aplauso geral.
Convivi com Pedrinho por anos e anos, assimilando parte do seu resignado calvário para se movimentar com as muletas. A poliomielite limitara seus movimentos, mas não seu otimismo com a vida. Pedrinho até zombava das próprias limitações, dizendo que sempre fazia desafios a si próprio.
– São regras que você precisa atingir. Até mesmo para aguentar ir ao banheiro; segurar as necessidades fisiológicas é importante. Você já fez tal teste?
Minha tia madrinha, Neusa, naturalmente entendia os conflitos recônditos do sobrinho, e perguntava sempre se ele queria ir ao banheiro.
– Pedro, Pedro: eu não vi você indo ao banheiro hoje… Está tudo bem?
– Tá tudo bem, tia, fique tranquila. Aviso quando quiser – respondia sereno.
Ao perceber que eu o olhava meio sem acreditar naquilo, ele complementava:
– É preciso segurar firme, primo; isso é um desafio que venho cumprindo. Já consegui várias vezes…
Também meio criança, eu pensei que ele era um herói por conseguir uma façanha tão complicada.
Somente depois, muito tempo depois, entendi finalmente que o vergonhoso primo não queria é incomodar ninguém para liberar suas necessidades fisiológicas; preferia retê-las do que anunciar urgência nesse sentido.
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Lá no quarto de hóspedes da tia madrinha, no 12o. andar do Edifício Riachuelo, apartamento 1.203, Rua Rio de Janeiro, 855, centro de Belo Horizonte, Pedro Paulo tentou ser um menino que não incomodava ninguém. Sempre ia à capital para se submeter a sessões de fisioterapia.
– Fui lá hoje e fiz o que pediram. Mas não vai adiantar nada, primo: minhas pernas estão travadas. Morreram desde que era criança. Tia Neusa está perdendo tempo comigo… – declarava.
Ouvir aquilo de um primo tão doce, que sofria muito com a paralisia infantil, realmente cortava o coração. Até tentei consolá-lo nesses momentos de confidências no quarto de hóspedes do apartamento da tia, dizendo que nossa maior alegria seria vê-lo curado, andando sem muletas.
– Olhando-me fixamente, Pedrinho evidenciava estar agradecido pelo aconchego fraterno de primo. No entanto, acrescentava não desejar ser estorvo para ninguém. E, veladamente, deixava também entrever que se sentia um fardo para todos que o amavam.
– Tia Neusa sempre faz questão de que venha aqui em BH para fazer exercícios e mais exercícios… Mas fiico com pena dela, primo, pois espera por algo que não acontecerá: jamais voltarei a andar como você e os outros… Minha vida se limita a essas muletas; e é com esse trambolho metálico que findarei meus dias…
– Pare de falar bobagens, Pedrinho! – recriminei-o.
Pedrinho me disse isso {de maneiras diferentes} não sei quantas vezes. Não queria mesmo é incomodar ninguém.
Só não percebeu que o maior incômodo era aquela sua resignação à condição de portador de necessidades especiais, paralítico.
Talvez tentando minimizar suas dificuldades, Pedrinho falava sobre ficção com facilidade. Tinha nos personagens fictícios uma inspiração constante para eclodir desenhos e mais desenhos,. Tia Neusa sempre o municiava com lápis especiais e papel.
Ao desenhar, o primo Pedro Paulo imergia num mundo em que as muletas inexistiam; ele se tornava então um dos protagonistas de cada aventura de traços firmes, marcantes, postada em páginas e mais páginas…
Fã dos personagens de quadrinhos mais famosos no mundo (Fantasma, Batman, Super-Homem), Pedrinho se divertia ao dar novo formato a esses heróis convencionais.
– Gosto muito de Clarck Kent, o repórter que disfarça sua real identidade, de Super-Homem. Olhe o desenho que fiz dele trabalhando na redação. Depois, teve que sair correndo, voando, para salvar um avião que iria cair sobre Nova York. – comentou certa vez.
Aí, eu ficava quedado ao ver seu caderno de desenhos praticamente repleto de trabalhos artísticos primorosos, todos belíssimos! Que dom maravilho tinha meu primo Pedrinho! Como conseguia retirar do seu cérebro triste tanta arte?
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Foram anos e anos de convivência de irmãos, de papos inesquecíveis. O adolescente Pedro Paulo sonhava alto: ia muito além do que qualquer um de nós poderia sequer imaginar.
Aos poucos, consegui deletar aquela persistente imagem do querido parente atrelado às muletas, conseguindo imaginá-lo andando naturalmente…
Também em Montes Claros, quando pensava estar tudo tranquilo na casa dos tios Tião e Carminha, pais de Pedrinho, eis que sou informado que ele foi internado às pressas. Aquilo me doeu fundo, incomodou. A gente se acaba quando alguém amado passa por qualquer infortúnio…
Fui dormir profundamente abalado, preparando-me para doar sangue ao primo Pedro Paulo, no dia seguinte. Num sonho confuso, avistei-o se despedindo de mim, mal tocando a minha mão direita. Esse difícil cumprimento se perdeu numa névoa que o envolveu de vez; e Pedrinho então partiu…
NO HOSPITAL, informei aos meus parentes que Pedrinho iria falecer. “Não vai sair vivo desse hospital”, disse sem rodeios. Muitos me criticaram, foram quase agressivos:
– Pare de agourar seu primo! Ao invés disso, vá lá e doe sangue! É do que ele precisa! – palavras dos demais parentes.
No sonho, eu tivera nítida impressão de que Pedrinho partia feliz rumo a algum outro lugar indefinido. Antes que meu sangue fosse colhido, informaram sobre o óbito…
AQUELE foi um dos velórios mais tristes dos quais participei, num dia em que Montes Claros estava literalmente gelada. Na missa de corpo presente, no Alto São João, difícil aceitar que o primo artista, detentor de carisma fenomenal, tivesse encerrado seu show existencial…
Observei que seu cachorrinho de estimação não arredava pé de perto do caixão, fisionomia chorosa. Dias depois, o animalzinho também partiu ao encontro do seu tutor…
Mal consegui dirigir o Dodge GT-1800 até o Cemitério do Bonfim, questionando intimamente Deus por qual motivo teria levado meu querido primo.
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AINDA HOJE, quando vejo algum garoto desenhando, é inevitável associar esse talento à maestria com que o primo Pedro Paulo dominava o lápis e a argila, gestos que geravam profusão de figuras artísticas, de impacto real.
Pelas suas mãos ágeis, e que obedeciam ao domínio de uma mente pura, criativa, repleta de ideias, Pedrinho produziu gibis e uma infinidade de historinhas. Ainda deixou muitos enigmas em desenhos até hoje questionados pelos familiares.
No geral, os trabalhos de Pedrinho externam que ele foi um garoto feliz, apesar das limitações físicas. Ao desenhar, ou esculpir, o primo artista extrapolava seu lado criança, de anjo que acena contínuo olá sereno aos desígnios de Deus.
E é justamente ao lado do Criador, com certeza, que Pedrinho deve estar agora rabiscando produções surpreendentemente impecáveis…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista