Difícil quem não conheça jabuticaba, uma frutinha doce e com caroços que simplesmente travam a digestão, se ingeridos em excesso. Tornou-se famosa justamente por prender intestinos, o típico empanzinamento que as pessoas tanto se queixam. Nada mais desagradável do que não conseguir evacuar; haja mau-humor…
Pois bem: já de olho numa linda jabuticabeira existente próximo à Praça Irmã Beata, em Montes Claros, meu itinerário escolar, dei como resolvido o problema anunciado por minha mãe quando saí cedinho de casa:
– Seu pai está desempregado, filho, e nem sei se teremos almoço hoje… Tome aqui uns trocados para a merenda: talvez seja sua única refeição do dia…
Olhei aquelas notas entre triste e perplexo, ciente de que, com elas, poderia apenas comprar uma empada e um copo pequeno de suco, no máximo. As coisas andavam inflacionadas na cantina da Escola Normal; a diretoria bem que podia estender a merenda escolar também para quem não estivesse no Primário…
Pensativo ao pedalar rumo à escola, invejei os pequenos alunos que, todos os dias, tomavam canecões de mingau de fubá misturado a pedaços de queixo, além de degustar generoso pão amanteigado. Foi-se meu tempo de gozo dessas regalias…
Naquela época, anos 60, meu velho trabalhava numa empresa transportadora, e seu salário era o nosso único sustento. Minha mãe ainda cursava o Normal, e nem sequer imaginava que se tornaria professora universitária anos depois, intercalando talentoso magistério nas instituições locais.
Durante o recreio, temendo que os colegas pudessem captar minhas preocupações, por pouco não guardei a deliciosa empada na mochila, reserva precavida de “almoço”. Mas o salgado ameaçou se esfarelar ao ser pressionado, motivo pelo qual o engoli quase inteiro, em franca atitude de gula.
Na verdade, voltou subitamente à minha mente a imagem do pé de jabuticaba carregado; árvore solitária, convidativa ao deleite gastronômico de quem passasse ao lado de um terreno baldio da Avenida Mestra Fininha. “Se é pra almoçar jabuticaba, vou nessa!”, decidi.
As aulas terminaram e, novamente, fui acometido de esquisitice tristonha, pois vi meus colegas saindo animados para irem almoçar, enquanto eu nada teria em casa…
Animei-me ao ver o pé de jabuticaba ao longe, parecendo dizer: “Venha almoçar, menino!”
Por sorte, não havia nenhum outro filão de jabuticaba presente naquele terreno, parcialmente coberto por muros quebradiços. Auxiliado pela magreza dos anos, em menos de um minuto subi na árvore e saboreei as irresistíveis frutinhas trava-estômago.
Não tardou pra sentir certo alívio, banindo os ímpetos da fome que, uma hora antes, impôs tímido alarde em roncos estomacais, grunhidos que dois colegas de classe perceberam. “Trovão?!”
Melhor comer mais e mais…
Nem sei dizer a quantidade de jabuticaba que meu estômago armazenou nesse dia. Tive certa dificuldade ao descer da árvore, sentindo a barriga pesada. Ou empanzinado, para ser mais explícito…
Dali em diante, novamente pedalando, não tive nenhuma pressa em chegar, preparando-me para ver panelas vazias e expressão de confesso desalento na serena fisionomia de “Notinha”, apelido de dona Maria Eny.]
Mal abri o portão de casa, avistei-a sorridente, e veio em minha direção indagar o porquê da demora. Nem, quis magoá-la ao explicar que estava “almoçando” jabuticaba, e respondi que ficara de papo com os colegas.
Dentro de casa, senti cheiro de comida fresca, e nem acreditei que aquilo estivesse acontecendo. Meu mano mais velho estava na sala lendo e almoçando, ao mesmo tempo.
– Cadê pai, mãe? – Está muito triste pela perda do emprego?
– Está é muito alegre, filho! Um amigo o chamou para trabalhar numa outra transportadora, e até já adiantou parte do salário combinado, para deixá-lo mais tranquilo. Foi providência divina, acredite!
Ela disse isso irradiando brilho feliz nos olhos, sensação irradiante na minha alma.
– Agora, vá almoçar, vá! – falou.
– Mais tarde, mãe: lanchei com os amigos, a fome passou.
O “mais tarde” nem foi almoço, mas um “acampamento” de horas no vaso sanitário. Maldita a hora que subi naquele pé de jabuticaba!
– João, ôoooooo, João?! Está passando mal, filho? Você e seus amigos andaram comendo o quê?
Por João Carlos de Queiroz, jornalista