Mesa posta com defunta, ninguém imaginaria aquilo…

“Morreu que nem um passarinho; mas foi de morte morrida!”. Esse foi mais um comentário que rolou em, Aparecida do Mundo Novo, Norte de Minas Gerais, sobre o passamento de dona Antônia dos Passos. O lugarejo inteiro choramingou a perda da senhora oitentona, benzedeira de mão de anjo, conforme a qualificavam.

Enquanto viveu, dona Antônia dedicou-se a fazer o bem, não discriminando credo e raça ao benzer quantos a procurassem. Detalhe: não aceitava dinheiro ou qualquer presente. E alertava séria, antes de benzer:

– Também não pode agradecer. A bênção concedida é de Deus, não minha!

Mesmo assim, muita gente a auxiliava escondido, mandando sacolões e outras coisas. Ela não disfarçava a curiosidade ao receber os mimos. Depois, concluía também ter sido providência do Criador.

– Chegou em boa hora, não há como negar. Já não tinha nada na despensa; vou rezar em agradecimento – comentava feliz.

E agora lá estava ela, guardada sem flores dentro de humilde caixão, em cima da mesa, que ainda comportava alimentos e bebidas. As pessoas se serviam sem cerimônia nesse ambiente fúnebre, seguindo antiga tradição roceira. Contam que as melhores festas acontecem em velórios da zona rural…

– Dona Antônia tinha mãos e voz de fada – diziam todos.

Dava gosto ver dona Antônia em ação, promovendo intensa esfrega-folhagem nas pessoas. Quase uma surra vegetal, o que deixava os ramos murchos, como se tivessem saído do forno.

Houve quem recordasse alguns dos seus feitos milagrosos, a exemplo da cura do vaqueiro Aristides. O rapaz ficou dias sem andar, após chutar despacho de macumba, numa encruzilhada.

– Ele abusou: chutar despacho é atrevimento grande, e isso implica em castigo – alertou dona Antônia ao receber o peão em sua casa.

Aristides só chegou lá por conta de apoio de dois amigos, que o carregaram. Ortopedistas queriam operá-lo a todo custo, descrentes de que voltasse a andar. Mas ele próprio desacreditou de ser curado pela medicina convencional: os médicos nem sabiam qual era sua doença.

Desconfiado dos sintomas estranhos que o acometiam, o vaqueiro não escondeu ter chutado macumba. A benzedeira o ouviu atentamente, muito séria.

– Veja aí: ele afrontou feio o dono daquela encomenda – comentou dona Antônia ao apontar para uma fileira de formigas operárias: em procissão maciça, elas formaram a imagem retangular de ataúde ao redor da cadeira do rapaz.

– É… o seu caso é bem mais complicado do que eu pensava – murmurou ao arrancar ramo de pequena árvore plantada na calçada. Já estava municiada para benzer…

Então, “ramalhando” sem dó seu paciente, dona Antônia proferiu rezas que ninguém entendeu nada. Vez ou outra, parava para cumprimentar algum transeunte, retomando automaticamente o pique de benzedeira.

Em dado momento, Aristides começou a tremer feio, trepidando a cadeira de plástico no cimento do alpendre. Seus olhos reviraram esquisitos, e ele esticou as pernas sem sincronia, várias vezes. Antes de ser benzido, elas estavam mortinhas da silva…

– Ele vai ficar bom. Mas precisa deixar de chutar pertences do ‘outro lado’. Tragam-no aqui amanhã novamente – disse dona Antônia ao jogar o ramo murcho na cesta de lixo.

Mas animado, Aristides já conseguiu se soerguer sem a ajuda dos amigos, e foi meio cambaleante de volta pra casa, escoltado pela dupla companheira.

Em resumo, o peão ficou completamente curado após ser benzido mais duas vezes, e nem voltou lá pra mais sessões.

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Dona Antônia descansava placidamente no caixão, narinas tampadas por algodão e queixo seguro por lenço firme. Os amigos, vizinhos, e até desconhecidos, não paravam de circular na área, e aproveitavam para beliscar algum dos petiscos acomodados na borda da grande mesa.

– Provem a farofa com carne de panela, pessoal: está no ponto, bem gostosa – propagandeou um dos comensais.

Outros, já preferiam bebericar de tudo que a mesa ofertasse: cachaça, vinho, licor ou água pura.

As horas foram adentrando na sombria madrugada de tristeza de qualquer velório, e dona Antônia deu o “ar da graça” ao liberar incontidos gases no ambiente. Foi uma novidade que assustou alguns, trouxe graça a outros e deixou a maioria sem ação.

Se os ímpetos libertinos da flatulência já são difíceis de serem controlados pelos vivos, imagine então pelos mortos…

Num dos solavancos provocados pela impetuosidade furiosa dos tufões intestinais, a defunta quase ficou sentada no caixão, enquanto uma de suas mãos derrubou o pote de doce de laranja.

Acaso alguém  estivesse lá fora, filmando tal cena, registraria o estouro de boiada humana em corre-corre tresloucado pela principal rua de Aparecida. Os primeiros a abrir fuga gritavam que a morta havia ressuscitado, e naturalmente ninguém quis ir checar se aquilo era verdade, ou não.

COINCIDENTEMENTE, a irmã gêmea de dona Antônia acabara de chegar à localidade, e descia triste pela rua em direção à casa da falecida. Assim, quem corria rumo à parte alta do lugarejo, deu de cara com a gêmea, e por desconhecer esse fato gritou ainda mais apavorado.

– Ela vem pra cima de nós! Corram!

Dona Maria Clemente não entendeu tanta correria do povo, e, sempre em passos miúdos, por causa da idade, chegou ao velório, deixando um ramo de flores para a irmã, agora mais calma no caixão. O perfume das rosas apaziguou levemente a fedentina local.

– Viu aí, minha irmã? Você benzeu tanta gente e, agora que está aí, descansando para ir ao encontro de Deus, ninguém vem prestigiá-la – choramingou ao pegar a gélida mão da defunta. Só estranhou que ela empreendeu leve tremular, resquício de um dos tufões tímidos que a morte conseguiu impedir de fugir…

Por João Carlos de Queiroz, jornalista