Prosa furada, bravatas fictícias, ou até mesmo falta de assunto…
Isso tudo poderia tentar minimizar a credibilidade de alguns “causos” contados pelo falante Jair de Viana durante as incursões semanais que realiza em Pires e Albuquerque, tradicional distrito mineiro. Jair é proprietário de sítio nas redondezas. a seis quilômetros do povoado.
Sem pestanejar, quando vai à aprazível cidadela, o matuto falador discorre por horas acerca de almas penadas, lobisomens, mulas sem cabeça, etc e tal…
Só de ouvi-lo, fica fácil imaginar o cenário de empolgada efervescência sombria que acontece no retirado distrito bocaiuvense (que há décadas sonha em ser EMANCIPADO)..
Pelos “causos” narrados por Jair de Viana em linguajar regional, Pires e Albuquerque encampa mesmo espontâneo teatro macabro a céu aberto…
– Não conto nada disso pra quem não acredita; porque, se duvidar, nem continuo – diz simplesmente.
Jair de Viana é pessoa autêntica em todos os sentidos, portador de bom coração e expressão feliz, continuamente reflexiva. Difícil concluir o que se passa na sua caraminhola…
Isso traz certa paz ao pequeno mundo em que vive o emblemático vaqueiro, permitindo inusitados voos supersticiosos.
Muitas de suas narrativas conflitam a apregoada tranquilidade do distrito rural. Quietude em excesso não é sinal de bonança, avisa:
– Se tudo está quieto demais, aí é pra você redobrar a atenção…
Ao falar, Jair sempre imprime firmeza convicta na voz, olhando a todos de forma fixa. Falar olhando nos olhos é uma lição paterna, acrescenta.
– Meu pai me ensinou a conversar sempre assim. Agora, se a pessoa evita fitá-lo, sai fora dela: é falsidade pura!
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Para os amigos, Jair não apenas é um homem bom, mas também inimigo da mentira. Enfatizam, inclusive, ser autêntica o leque de narrativas que o roceiro traz no alforge ao visitar o povoado.
– Jair, antes de tudo, é um homem rude do campo, porém saudosista dos bons tempos de Pires. Gosta de fazer amizades, trocar ideias sobre tudo. Há quem confunda seus “causos” como balela. Não é bem assim: tudo que diz conta tem fundamento – defende o amigo Feliciano Souza.
E é lá, no tradicional distrito bocaiuvense, aproado numa baixada seca de serra, que Jair de Viana gosta de passar os anos proseando à vontade. Presença forte, logo percebida pelos moradores locais.
– Jair já chegou gente, e está sentado há um tempão em frente à venda de Manoelzinho – diz um. A notícia logo se espalha…
– Pra variar, hoje ele deve ter mais “causos” para contar – comenta outro.
– Vou lá pra assuntar as novidades que trouxe…
Jair tem bagagem cultural e é respeitável portador de acervo mandingueiro. Amansa, por exemplo, qualquer animal bravo, sem adotar nenhuma atitude violenta. Ele apenas entremeia afagos e conversas amanteigadas. Os bichos ficam quietinhos…
Conforme a boataria local, Jair deve conhecer alguma reza secreta para alquebrar tão fácil a resistência rebelde de quadrúpedes indomáveis. Pois basta.se aproximar e o animal relincha feliz ou emite mugidos felizes…
Não tem nenhum segredo mandingueiro aí, “só jeito”, rebate frequentemente, ao ser questionado. E então dá algumas dicas…
– Primeiro, é preciso entender a linguagem dos animais. Sem isso, você não consegue nenhum avanço. Bois, cavalos e outros animais sabem quando alguém é malvado…
Se a pessoa já chega querendo domar à força o animal, o refugo é automático.
– Eles me aceitam porque já conhecem quem sou…
ENFIM…
O fato é que até lobisomens respeitam Jair de Viana em Pires, lenda que corre frouxa, de boca em boca.
O vaqueiro já não nega isso, limitando-se a comentar que alguns bichos peludos se escafederam de vez, enquanto outros, apenas feridos, devem ainda andar pelas matas, ou nas ruas do povoado…
– Lobisomem é imortal, bicho esperto, nunca duvide disso! É dissimulado ao conviver entre as pessoas comuns. Assume ainda diversas formas pacíficas, método pelo qual consegue enganar suas presas…
O famoso ditado – “lobo em pele de cordeiro” explica bem isso…
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Apesar de tais sutilezas, Jair afirma não temer lobisomens. E aconselha que, nesta Sexta-Feira Santa, as pessoas fiquem mais espertas ao acreditar umas nas outras:
– Seu melhor amigo pode ser um lobisomem; ou um parente próximo, seu vizinho…
O vaqueiro explica que a Sexta-Feira da Paixão é consagrada como o dia mais importante do calendário católico. Só que também abre as porteiras do mal, justamente por ser data santificada, fortíssima.
– E é à meia-noite em ponto, início da Sexta-Feira, que coisas ruins começam a acontecer. É muito alvoroço de latidos caninos por todos os lados, além de uivos esquisitos. Sugiro que ninguém saia de casa a partir daí. O recomendável é esperar o Sol surgir…
INDAGADO se lobisomens teriam o atrevimento de andar pelas ruas de Pires durante o dia, Jair de Viana empaca seu falatório supersticioso e fica em silêncio por dois minutos, antes de prosseguir.
– Terminei de dizer agorinha: eles {lobisomens} são astutos, capazes de assumir disfarces variados. O homem dessa venda ali pode ser lobisomem, vá saber… O maior perigo é sempre de madrugada, ou ao cair da noite. De dia, eles ficam camuflados…
Enquanto Jair falava, um homem curvado passou diante dele, parando para fitá-lo por longos segundos. Depois, continuou a andar, meio de lado.
– Terminei de falar e já aparece um me encarando… E sabe que sei dele, esperto que é esse lobisomem aí… Se segui-lo noite adentro, vai se assustar…
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COM OS PRIMEIROS indícios do Sol vespertino tentando buscar fuga sonolenta, Jair pegou a mochila e informou estar a caminho do sítio, pois não queria cavalgar pela mata ao escurecer.
– Meu facão está afiado e pronto para ser desembainhado, se acaso precisar. Essa arma, acredite, lobisomem tem pavor. Nunca ando sem ela…
Sorridente, talvez pensando que suas palavras assustaram pra valer, Jair montou no cavalo baio e saiu trotando devagar pelas ruas de Pires.
Fixados em sacolas de pano, nas ancas do cavalo baio, os mantimentos balançavam levemente…
A nobre figura do vaqueiro caçador de lobisomens logo desapareceu numa das curvas dos trilhos da antiga Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima. Talvez retornasse no dia seguinte com mais “causos”…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
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