Por João Carlos de Queiroz – Conheci o pescador cuiabano Lino Pinheiro da Silva depois de me mudar para Cuiabá e travar amizades diversas no Novo Terceiro, bairro classe média/baixa, composto por pessoas humildes.
Tornei-me assim próximo do nobre Lino e de toda sua família, convicto dos seus poderes de “bruxo do bem”. Isso porque, certa vez, ele curou a sobrinha Alessandra Tereza, que padecia com sérios problemas cardíacos.
Na época, recordo bem, Alessandra denotava palidez e fraqueza extrema, evidenciando olheiras destacadas. A menina nem tinha um sorriso feliz, consciente da gravidade de sua doença.
Segundo familiares, o coração de Alessandra estava comprometido, artérias entupidas. “Vou curá-la com uma reza forte e poção que sei fazer. Receita misteriosa, não posso revelar”, disse Lino.
A princípio, não acreditei que Lino pudesse curar a sobrinha. Afinal, problemas cardíacos representam tradicional desafio clínico; doença responsável por grande parte de mortes naturais em todo o mundo.Estava enganado…
Dias depois, soube pelo próprio Lino que ele já ministrara as duas primeiras doses da poção, de um total de sete. “Ela reagiu bem à poção, e tenho certeza que vai sarar”, comemorou.
Alessandra, na ingenuidade da fase menina, realmente acreditava estar a caminho de se livrar da deficiência cardíaca, após esgotar os procedimentos clínicos convencionais. Durante anos, seus pais empreenderam uma verdadeira maratona hospitalar.
Assim, confiante no poder do tio, Alessandra agendou as sessões de cura, momento em que ingeria uma dose da poção e Lino Pinheiro rezava fervorosamente.
“Se não tiver fé, nem adianta tomar nada. Alessandra jamais desacreditou que seria curada”, frisou o tio pescador.
Para Alessandra, os efeitos da reza e da poção ainda são bem estranhos, até hoje:
– Enquanto eu bebia devagar, gole a gole, a dose da poção, tio Lino rezava em língua estranha. Senti muita tonteira, como se estivesse prestes a desmaiar. Isso aconteceu também ao ingerir as demais doses”.
Antes mesmo de tomar as sete doses previstas desse “tratamento”, a menina começou a se sentir mais forte e com traços faciais revitalizados. As olheiras sumiram, cedendo lugar a uma feição corada, saudável.
Os parentes, amigos, e, principalmente, seus pais, notaram logo tantas mudanças positivas, e o cardiologista que cuidava dela constatou novo quadro de saúde, avaliando-a como curada, após novos exames.
– Foi uma felicidade e tanta para mim, para os meus familiares e todos que me querem bem. Já não havia nenhuma deficiência cardíaca. De lá pra cá não senti mais nada! Graças a Deus e ao meu tio Lino, pude prosseguir minha vida normalmente, casando-me e tendo filhos. Todos saudáveis, comemora Alessandra.
LINO DESAPARECE MISTERIOSAMENTE
Os pais de Lino moravam no Distrito Nossa Senhora da Guia, situado a 30 quilômetros da capital. O pescador estabeleceu rota costumeira entre Cuiabá e a Guia para visitá-los nos finais de semana.
Lino aproveitava tais visitas para pescar num remanso do Rio Acorizal, localizado na parte baixa da chácara familiar. Sentia-se livre ali para gozar os prazeres da mãe-natureza.
Se chegava ao distrito na sexta, por exemplo, ele ficava apenas alguns minutos com seus pais, logo esticando as canelas até o conhecido remanso; local onde mantinha barraca de lona e fogão de pedras. Só retornava à casa dos pais no domingo à tarde, outro costume estabelecido.
Perdi a conta de quantas vezes dei carona/passeio ao amigo Lino até o distrito da Guia. Ele ficava muito agradecido pelo gesto, mas nem desconfiava que eu adorava esses deslocamentos…
Seus pais, bem velhinhos, sempre me recebiam muito calorosamente. Sentia-me ternamente acolhido por aquela família humilde e graciosa.
…
EDITOR DE AGROPECUÁRIA do jornal Folha do Estado, principal jornal de Cuiabá, criei um espaço literário no matutino intitulado “Causos” da Roça, entremeado de narrativas folclóricas e reais do campo.
Achei interessante discorrer sobre a vida simples daquele casal idoso, claramente apaixonado. Os dois não se largavam pra nada, algo lindo de se ver.
Lino percebeu minha admiração, complementando: “Não recordo de terem brigado uma única vez…”
Em síntese: publiquei uma página com o seguinte título: “Quando a velhice chega no campo…”
Sem nenhum rascunho, valendo-me mais da anotação de nomes, redigi esse texto quase na base do improviso, objetivando fechar o suplemento antes do meio-dia.
Concluso, decidi publicá-lo de forma mais destacada, na primeira página do Caderno de Agropecuária, juntamente com fotos do pescador Lino e dos seus idosos pais, registro de minha autoria.
Uma das fotos se destacou mais pelo sorriso angelical da vovó do campo: uma exposição franca de que a felicidade não tem formato oficial de luxúria, mas uniforme de simplicidade geral.
Para meu espanto, a redação da Folha passou a receber legiões de universitários e respectivos professores da área de Comunicação Social (Jornalismo, Radialismo, Cinema) de várias universidades.
Não entendi tanto alvoroço em cima de uma reportagem-crônica que fiz improvisadamente…
Fui apresentado aos estudantes como o “autor da obra”, que, sinceramente, nunca reconheci nessa categoria.
Curiosos, os universitários me sabatinaram afoitamente para saber qual foi minha ideia original antes de partir para elaborar aquele texto sobre a vida rotineira do casal quase centenário.
Fui sincero nas respostas, dizendo que foi mais um texto inserido no caderno às pressas, em decorrência dos horários de fechamento de suplemento fixados pela direção do jornal.
Os estudantes evidenciaram forte brilho de admiração nos olhos ao ouvir minhas palavras, enquanto eu continuava sem entender qual era o tópico tão chamativo do referido material.
Alguns, mais curiosos, quiseram saber meus passos jornalísticos, e se havia outras matérias já publicadas, em moldes semelhantes. Ou seja: aquela fez sucesso, no entendimento universitário.
Informei aos futuros formandos que os “Causos” da Roça, que editei durante anos na Folha do Estado, surgiam aleatoriamente no ato do acionamento do computador.
Acrescentei que jamais soube qual assunto abordaria até dedilhar as primeiras teclas, momento em que frases e lembranças surgiam facilmente na tela, transfigurando-se em espaços aventureiros.
Lino, lógico, gostou muito dessa reportagem/crônica, considerando-a uma homenagem preciosa aos seus velhos pais guerreiros.
Também o restante dos familiares do pescador me parabenizou pela iniciativa. Sentiam-se igualmente prestigiados ao ver pessoas tão queridas “no auge da fama”, segundo comentários que ouvi.
Numa das viagens que fiz à Guia para levar Lino, quis saber dele por que gostava tanto de ficar isolado na prainha do rio, enquanto poderia curtir mais seus pais. “Estar lá (no rio) renova as minhas energias. Preciso disso”, informou. E acrescentou: “Você não entenderia”.
Não dava pra compreender: mal caía a tarde, o entorno da chácara se tornava cinzento, triste. Imaginei que o remanso adentrava numa escuridão solitária, alquebrada apenas pelo barulho da correnteza.
Lino me direcionou olhar interrogativo, e nem entendi direito sua reação. Mas, ao invés de responder diretamente, preferiu ser evasivo.
– Só Deus conhece os nossos propósitos. Creio que você deve saber quais são os seus…”
Continuei sem entender nada, imaginando o quão triste e monótono devia ser aquele remanso nas primeiras horas da noite, quando pássaros e outros bichos, em cantoria desafinada na mata, lembravam ser hora de dormir.
– O barulho da correnteza é oração do sono. Sinto-me bem ao ouvir a força das águas pedindo passagem para viajar – outro comentário de Lino.
Desse dia em diante, não indaguei mais do amigo qual era o imã-atrativo do remanso da Guia…
Pelos parentes locais, soube que ele havia ido lá diversas vezes numa canoa que construíra de tronco de árvore. Para Lino, nenhuma façanha nisso, somente rotina:
– Construí porque precisava levar algumas coisas, principalmente tralha de pescador. O difícil é ir, remar rio acima por um dia e noite sem parar. A gente chega cansado, mas chega” – sorriu franco ao contar sua pequena aventura.
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Recordo que estive uma única vez nessa famosa “Prainha do Lino”, lugar assim apelido dado pela família. Não existia nada de interessante por lá, à exceção de modesta faixa de areia e pedregulhos ovalados, em toda a sua extensão.
Mais adiante, Lino cultivava mandioca, um dos ingredientes das refeições à base de peixe preparadas no rústico fogão de pedras.
Supersticioso, Lino afirmava sempre ouvir choro estridente de criança. O choro vinha de uma casa abandonada, construída em terreno plano, próximo do remanso.
Segundo o amigo pescador, o sobrado estava sem nenhum habitante há anos, e ganhou fama de mal-assombrado justamente por causa desses berros de bebê durante a madrugada.
– Já entrei lá para verificar se tinha alguma criança, e nunca encontrei ninguém. Alguma alma deve estar aflita querendo oração, acho eu… – dizia ocasionalmente.
– Medo não tenho, pois o maior inimigo do homem é o próprio homem, gente viva. Defunto não faz mal, está descansando. E se aparece, é pra avisar de algo, podem vir sem problema…
Os familiares de Lino confirmaram ter ouvido boatos sobre o bebê chorão no velho sobrado do rio. “Não há quem na Guia desconheça essa história aí”, disse uma irmã.
O SUMIÇO DE LINO…
Numa das tardes de domingo, Lino não regressou à chácara dos pais, ausência confirmada também na manhã seguinte. Os parentes desceram ao remanso e não o encontraram lá, somente suas roupas num varal e o jantar queimado, no fogão de pedras.
Sua inseparável espingarda estava encostada na barraca, além de outros pertences pessoais, acondicionados numa mochila de lona. Nem sinal de corpo sendo arrastado para o rio, ou de marcas de sangue;;.
Acionada, a Polícia compareceu ao local na mesma noite e efetuou buscas intensas madrugada afora e no dia seguinte. De estalo, descartaram ataque de onça ou de algum outro animal selvagem, pela ausência de sangue na praia.
Um dos nativos disse que Lino poderia ter sido engolido pelo “Minhocão da Guia”, ser folclórico que muitos acreditam existir no Rio Acorizal. É uma espécie de sucuri gigante. Muitos juram ter visto o famoso minhocão emergir e submergir rapidamente nas águas revoltas do manancial.
Outras hipóteses foram levantadas, a exemplo de assassinato, tendo em vista atritos agrários nos quais Lino se envolveu naquela região. Se fosse isso, seu corpo foi descartado longe do remanso, talvez em outra cidade.
“Lino pode ter feito uma simpatia para sumir de vez do mapa. Simplesmente cansou de viver e não quis mais ser encontrado. Ele tinha conhecimento de rezas…”, comentou um dos familiares.
Sem muito crédito, alardeou-se ainda que talvez o pescador Lino Pinheiro tenha sido abduzido por seres alienígenas, extraterrestres, e levado para galáxias distantes. A região também contabiliza aparições de UFOS.
Atualmente, os pais de Lino {Manoel Gregório Pinheiro e Celestina Xavier Pinheiro} já não se encontram mais fisicamente na chácara do Distrito da Guia, mas em outra dimensão espiritual.
Esposa, filhos e demais parentes de Lino lamentam que não tenham encontrado o corpo do pescador, a fim de proceder um enterro digno ao ente querido. Nem têm esperanças mais de que Lino apareça, vivo ou morto.
“Vivo, dificilmente está. O fato é que ele já queria desaparecer, e cumpriu sua promessa. Mas deixou pra trás uma dor saudosa, muita intensa, nos corações de todos nós”, diz a esposa, dona Taís.