Primo-irmão famoso em Pires e Albuquerque, distrito bocaiuvense, por ter metido bala e facão em lobisomens à vontade, nos seus tempos de moço festeiro, o sitiante Sebastião Pimenta, ou simplesmente Nem, conta ter tido problemas também com fantasmas que perambulam pelas matas da bela região.
– Lobisomem, a gente já sabe, é de carne e osso: trata-se de um homem comum, que vira lobo sedento durante a lua cheia, na quaresma. Esse aí não tem jeito, é só na bala, mesmo. Nunca desperdicei um cartucho sequer, sempre acertando em cheio nos malvados que me tocaiaram entre o povoado e meu sítio. Agora, com relação a assombrações, aí já é bem mais complicado: surgem e desaparecem rápido, que nem flash. Vai atirar em quê?
Foi assim que Passarinho, cavalo trotador, levando o intrépido primo Nem, cruzou o Rio Verde Grande, parte rasa, para acessar trecho que desemboca no capão, túnel formado por mato trançado naturalmente. Fica numa baixada, e atravessá-lo à noite exige uso de lanterna, em face da escuridão interna.
Mais uma vez, depois de festar, Nem vinha recordando das danças que pôde apreciar em boas companhias. Foi numa delas que conheceu a atual esposa Zezé, moça prendada do lugar.
Passarinho demonstrou certo receio em descer a rampa do capão, por vezes escorregando de leve no cascalho solto. Nem deixou que ele empreendesse esse percurso sem pressa, ciente de que tombo de cavalo, ladeira abaixo, realmente era perigoso.
Finalizada a perigosa descida, Passarinho relutou visivelmente em entrar no capão, fato que Nem percebeu pelos cautelosos passos iniciais do dócil quadrúpede. Ele cutucou sucessivamente o lombo do animal com os calcanhares, tentando animá-lo a prosseguir; assim entraram no pavoroso túnel enlameado.
Lanterna acesa, Nem promoveu varredura geral nas laterais do capão, temendo que algum réptil pudesse atacá-lo. Tornou-se comum cobras venenosas adotarem o capão como um dos seus esconderijos prediletos.
Com dificuldade, sinalizando quase tropeço ao afundar os cascos na lama, Passarinho conseguiu sair da parte mais difícil do capão, a que armazenava maior quantidade de água e lama, e se aproximar da extremidade oposta, de saída.
– Foi quando senti algo pesado na garupa do cavalo – conta Nem. Passarinho então relinchou apavorado, e Nem não entendeu, a princípio, o motivo daquele relincho de socorro.
– Menino de Deus: tinha um caixão de defunto atravessado na garupa de Passarinho, acredita? Não sei como apareceu ali, quem colocou, ou se voou sozinho para a garupa. Mas estava lá, desejando carona no pobre Passarinho.
Nem contou isso rindo, confessando que, naquela noite, faltou pouco para não fazer nas calças.
– Agora passou, já virou comédia. Nem eu mesmo sei se vi o que penso ter visto lá no capão. De repente, foi impressão minha, sei lá!
Aos relinchos agoniados, Passarinho quase voou dentro do capão para se ver livre de uma carga tão desagradável, relembra o primo.
– Atravessar o capão durante a seca já era meio complicado, imagine no tempo chuvoso, muita lama. Nem sei de onde Passarinho arranjou tanta força e agilidade para sair dali trotando rápido pela rampa próxima. O pobre animal estava fora de si…
Nem disse que o caixão sumiu como apareceu, ou seja: deve ter ficado lá dentro do capão. No entanto, Passarinho continuou a cavalgar rápido, ávido por chegar no sítio.
– Também achei que não teríamos mais problemas, até dar de cara com aquele um sentado em cima da cancela, na parte mais alta. Usava capuz preto, com chapelão que ensombrava suas feições. Vi que brilhava algo vermelho na sua face, mas dei boa noite, pedindo passagem. Nem respondeu.
O estranho da cancela permaneceu mudo enquanto Nem passou logo abaixo com Passarinho. Ainda voltou para travar a cancela, a fim de evitar que o gado saísse.
– Apeei de Passarinho pensando em como iria enfrentar aquele esquisito noturno, mas tinha sumido também. Passei o ferrolho na cancela e me mandei rápido pra casa, pensando em comer uma pratada de ovos fritos, para curar uma possível ressaca. Esqueci de comer na festa, só bebi…
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Noi aconchego do sítio, Nem entrou com cuidado para não acordar os pais, meus saudosos tios Ambrósio e Benonina. Dirigiu-se à cozinha e reavivou as brasas, já ajeitando uma panela para fritar ovos.
– Nesse interim, vi uma luz na sala pela qual passei há pouco. Fui lá averiguar e a luz foi pra cozinha. Ficou nesse vai e vem enquanto andei pela casa inteira. Não conseguia alcançá-la nunca.
Com a pratada de ovos mexidos, Nem pôde abastecer a pança e garantir que, no outro dia, os reflexos da farra não o impediriam de trabalhar regularmente.
– Ainda no quarto, observei que a tal luz continuava a zanzar pela casa inteira, aparentando curiosidade. Nem vi quando ela partiu, pois já acordei com o canto do galo indicando ser hora de ordenhar Mimosa, nossa melhor vaca leiteira.
Por João Carlos de Queiroz, jornalista.