Lá pelas bandas do sertão norte mineiro…

Por João Carlos de Queiroz – Já faz um tempinho de anos puxados, fui convidado para ir a São Francisco, cidade ribeirinha do Norte de Minas Gerais. O amigo Claudinho garantiu que seria uma viagem maravilhosa, inesquecível. Faltou acrescentar um detalhe: seria também penosa.

Saímos de Montes Claros de ônibus, ao meio-dia, e chegamos a Brasília de Minas horas depois. Dali, embarcamos numa caminhonete, e foi aí que começou minha aventura de arrependimento. Claudinho, sorridente, informou estarmos a caminho de um lugarejo situado nas proximidades, também à beira do Rio São Francisco.

Alguém aí deve se lembrar do famoso “ali mineiro”, ou seja: distâncias enormes, traduzidas em caminhos curtos. Foi mais ou menos o que aconteceu naquele dia: andamos horas na carroceria coberta da C-10 (GM), aspirando poeira grossa, para finalmente aportar nas margens do imponente rio, hoje nem tanto…

Claudinho, sem perder a pose, conversou aqui e acolá com algumas pessoas, e retornou sem-graça, informando o início do pesadelo: a balsa só voltaria a efetuar transporte a partir das 6h do dia seguinte. Uma notícia desastrosa para quem imaginava passar a noite numa cama quentinha, estômago bem nutrido…

Para piorar a situação, o calor escaldante, verificado no decorrer da tarde, mudou radicalmente para um frio danado. Não demorou a cair uma tímida chuva, logo substituída por um baita temporal. E todos nós ali, espremidos na carroceria da caminhonete, açoitados por ventos gelados e uma bruma idêntica. Parecia que tinham esquecido a porta da geladeira aberta…

Nem preciso dizer que não havia levado nenhum tipo de agasalho, e o bate-queijo foi inevitável; minhas mãos se assemelhavam às de um defunto, enrugadas como as de um ancião. E eu só tinha 17 anos nessa época…

O sono não colaborou, sumiu do mapa, e nunca as horas pareceram tão longas, a ponto de poder contar os assovios a cada rajada de vento. E lá vinha mais frio torturante…

A certa altura da madrugada, corpo todo dolorido, pela incômoda posição, e com a cabeça latejante, pedindo sono, aproveitei a pausa da chuva e saí para tomar ar-fresco, amenizar a sensação opressora dentro daquela carroceria. Admirei-me ao ver que Claudinho e duas outras pessoas que embarcaram em Brasília de Minas roncavam placidamente…

Não encontrei nada interessante lá fora, e a bexiga foi esvaziada intempestivamente. O estômago roncou de fome esganada, mas sabia que teria que esperar. A angústia aumentou mais a exigência de forrá-lo com algo.

Finalmente, os primeiros raios solares descortinaram uma manhã nublada, e pude escutar o barulho do motor a diesel da balsa sendo aquecido, do lado oposto do rio. Não tardou pra que atracasse e embarcássemos.

Já na estradinha rumo a São Francisco, respirei feliz, ansioso para que tivesse algum venda ou similar no percurso. Sonhava até com um simples pão fresco, biscoitos, qualquer coisa.

Os roncos dos demais viajantes continuavam firmes, acompanhando o sorriso incrivelmente otimista do amigo Claudinho. Algo realmente impressionante, pois vivenciara todas as agruras pelas quais passe. “Ele sorri apenas para não dar o braço a torcer; também está extenuado e com muita fome”, imaginei sarcasticamente.

Já em São Francisco, a coisa pareceu melhorar muito, principalmente à noite, quando baixamos numa monumental festa de casamento. O problema maior foi a discussão que Claudinho teve com um sujeito parrudo, arrogante, e nem vi direito como a briga começou, espalhando mesas, cadeiras, comida e… convidados.

Para não apanhar, também me municiei de uma garrafa de cerveja, ameaçando quantos viessem em minha direção. Saímos da festa meio que acuados, correndo pelas ruas desertas de São Francisco à procura de abrigo. Mesmo com boa dianteira, dava para escutar os gritos revoltosos dos novos inimigos da festa.

Mais uma vez, retomando o suplício da noite anterior, conseguimos alojamento improvisado num hospital público da cidade; foi uma ajuda providencial do vigia do lugar, amigo de Claudinho. Difícil foi conciliar no sono ali dentro: camas que acomodavam pessoas doentes, cadáveres. Mas era bem melhor do que sair e apanhar feio do grupo vingador da festa, vozes ainda ecoando fortes nas proximidades…

Aquela foi uma viagem inesquecível, justamente pelos pontos contraditórios do propagandeado lazer descrito pelo amigo Claudinho. Por justificável precaução, nunca mais aceitei seus convites para ir à sua terra natal, São Francisco…