Se recordar é viver, conforme dizem, pratico isso religiosamente. Na minha memória, continuam intactos filminhos que remontam a décadas, retratando boas e más fases da época criança e adolescente. Divirto-me em reviver determinadas situações, algumas cômicas, ou simplesmente apavorantes. Daí a profusão de casos fantasmagóricos.
– Mas… Aquelas aparições que você costuma relatar, elas realmente aconteceram?! – inquisição peculiar. Hoje, minha resposta seria:
– Penso que sim. Pelo menos, acredito ter vivenciado isso. Só não posso garantir ser fruto da minha imaginação. Afinal, crianças são sonhadoras, e, via de regra, conseguem transpor facilmente a realidade para o imaginário, fantasiando incursões em mundos desconhecidos.
Quero dizer o seguinte: entre os ‘rolos de filmes mentais’ que guardamos a sete chaves, existe um entrelaçamento confuso de pessoas e datas, como se parte das películas arquivada tivesse sofrido avarias, merecendo urgente restauração. Dessa forma, podem voltar a ser acopladas nos projetores e exibir nítida trajetória do nosso recôndito saudosista.
O RIO VIEIRA ENTRA aí numa posição mais privilegiada, sem cortes que comprometam a continuidade da projeção mental. A cada deslizar célere do filme cerebral, desenrola-se também encantamento aventureiro, a ponto de concluirmos o quão bom foi ser criança.
Senão, vejamos…
Aos seis anos, já me aventurava pelas margens desse manancial fedorento, depositário do esgoto geral da cidade. Isso sucedeu quando moramos nas imediações da Rua Marechal Deodoro, numa das casinhas do contrariado judeu Salvador. Meu pai gostava dele, apesar de ser rabugento ao extremo.
Ainda não descobri, até hoje, o porquê de tanto atrativo daquelas águas escuras e fétidas. Refestelado na pequena sacada dos fundos da casa, inebriava-me ao ouvir seu borbulhar sôfrego a dezenas de metros, ladeado por empoeirada mata nativa.
Quem me visse ali, olhando o nada no quase noite, deveras pensaria que enlouqueci…
À noitinha, ao cair da tarde, o decrépito manancial ganhava dose extra de sofreguidão existencial, estabelecendo ruidosos rompantes revoltosos. Óbvio que quisesse alardear a necessidade de se manter vivo, apesar da carga de esgoto que o transformava em corrente sequencialmente moribunda. Pobre rio…
ANOS DEPOIS, após saracotear por endereços diversos, entre eles o da temível casa velha mal-assombrada, mudamo-nos para o bairro Edgar Pereira, Rua Cravina. Nosso primeiro imóvel próprio, que alívio!
Bem atrás do muro, ouvia-se tímido borbulhar de riozinho, córrego infestado de dejetos químicos da fábrica de ração e óleo de mamona dos Irmãos Pereira. Tinha ali, disponível, outro contemplar de manancial condenado: bastava subir na escada.
Infestado de soda cáustica e uma série de dejetos químicos, o córrego liberava gases e fumaça ao receber a abundante carga tóxica da fábrica. Destino dessa tralha poluidora: Rio Vieira.
Foi nesse córrego que meu mano caçula Marcelo caiu quando tinha cerca de dois anos: fui conferir se a pinguela de passagem de pedestres comportava seguramente o carrinho de mão e, inocente, o bebê Marcelo se debruçou na borda. Inevitável a queda. Mal caiu, saltei nas águas ácidas e saí correndo com ele nos braços, pedindo socorro.
Por sorte, surgiram anjos para salvá-lo de uma possível cegueira: uma vizinha [que lavou seus olhos na hora] e o oftalmologista Hélio Rocha Lessa, nosso médico de confiança.
Santa Luzia foi o terceiro anjo a ungir o mano com cura total: Marcelo não teve nenhuma sequela. Enquanto esteve vivo, agradeceu aos três anjos que o socorreram prontamente.
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Esse episódio fez com que tomasse ódio daquele córrego, constituindo-se numa lembrança bem traumática. Difícil esquecer o bebê com os olhos vendados e o mano mais velho me acusando de o ter cegado. DEUS FOI MAIS FORTE!
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Superada tal fase, veio os anos adolescentes, formando-se respeitável grupinho farrista: eu, Afonso/Floriano Magalhães Ferreira, Hélcio, Humberto Porquinho e Ernane Macarrão. O quartel-general dos encontros era na casa da saudosa tia Nair, próximo ao Rio Vieira, com direito a filadas de café da tarde, almoço e jantar.
Não raramente, saíamos para escalar as barrancas do Rio Vieira ou atravessá-lo por meio de cipós, imitando Tarzan.
Uma ocasião, o cipó quebrou e caí bem no meio do fétido manancial lodoso. Vi algo parecido com fezes boiando pertinho de mim, ainda com pedaços de milho incrustado na apática linguiça fecal.
O pior de tudo foi ter que aguentar o estardalhaço de gozação da turma. Ao sair de lá, todos corriam de mim: “Está fedendo merda!!!”
INCÊNDIO NO RIO
Não sei exatamente de quem foi essa ideia, mas bastou jogar uma tocha de papel em chamas no centro do rio, certo final de tarde, para um incêndio pavoroso tomar conta do seu leito. Melhor explicando: águas não pegam fogo facilmente; porém o esgoto fervente da fábrica – dotado de produtos incandescentes – eclodiu pavoroso incêndio.
O Corpo de Bombeiros foi acionado e conseguiu debelar maior tragédia, trabalho que assistimos da casa de tia Nair. Ela nos recriminou duramente pela irresponsabilidade. Os passeios no rio assumiram conotação meramente apreciativa, a partir desse dia…
Também rumávamos para suas margens após surrupiar garrafas de guaraná Antárctica num caminhãozinho estacionado perto da cerca. Tudo ia bem até que Afonso foi flagrado pelo motorista, sendo levado pelos fundos da calça até à Vila Brasília. O motorista morava ao lado da casa dele.
A cena de Afonso patinando no ar, dominado pelo irritado motorista gordinho, é inesquecível…
– Seus ladrões de guaraná! Vão pagar caro! – prometeu o dito.
Corremos para não cair em suas garras. Nunca soubemos se ele entregou Afonso em casa, se bateu no amigo ou se o dedurou para seus pais. O próprio Afonso não tem recordação precisa a respeito.
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NÃO VOU a Montes Claros há anos, mas fiquei sabendo que conseguiram restaurar parcialmente o Rio Vieira, hoje menos poluído. O incrível é que ainda encontram peixes em suas águas. Eles resistem desde a fase crítica de esgoto…
O fato é que o Rio Vieira ganhou canal concretado ao longo da Avenida Sanitária [Deputado Esteves Rodrigues]. A antiga ponte que interligava o centro da cidade à Vila Brasília virou passarela de transeuntes, pelo que informaram. Isso não posso garantir.
Aliás, essa ponte se constituiu em palco dos meus malabarismos no comando de motocicletas: embalava as máquinas a pleno para subir sua rampa velozmente, “voando” por segundos no centro do eixo. A aterrissagem acontecia quase do lado oposto, seja quando vinha da Vila Brasília ou vice-versa…
Uma ocasião, fui infeliz nessa manobra: ainda flutuando perigosamente, senti que a motocicleta desequilibrara por completo, guinando para um dos lados dos braços da ponte. Temi cair dentro do asqueroso rio, mas terminei meu salto suicida no meio de denso capinzal lateral.
Só consegui retirar a moto de lá com a ajuda providencial de dois adultos. Queriam insistentemente saber se eu não quebrara nada, enquanto eu verificava, preocupado, os estragos na moto.
O Rio Vieira também faz parte da minha historinha de vida…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista