Lá pelas bandas de Minas Gerais, mais precisamente em Pires e Albuquerque, nome antigo do atual povoado Alto Belo, eu sempre ajudava meu primo Nem a produzir rapaduras (comum e a de leite). Uma tarefa prazerosa, porém cansativa. O que suávamos na beira do tacho de cobre…
O problema maior era fazer com que a calda {melado} ficasse no ponto de corte; e aí, ia uma boa espichada no relógio e muita paciência, além da dor imposta a ambos os braços, em função dos movimentos repetitivos com a imensa colher de pau. Esse esforço despertava o apetite pelo doce, que exalava progressivo aroma convidativo.
Também a visão da garapa se transformando em melado viscoso {quando deixa o tacho para ser acondicionado em vasilhames retangulares de madeira}, contribuía muito para que esse sentimento de gula fosse agigantado…
Não poucas vezes, nem aguardei a rapadura esfriar ou endurecer, degustando-a sofregamente, quase queimando a boca. Minha saudosa tia Nina, numa reprimenda disfarçada, dizia que “rapadura era boa pra soltar lombriga”. Delicado alerta de que não deveria ser tão guloso. Estava certíssima: logo o excesso de comilança fazia efeito, e então eu saía num corre-corre desvairado rumo à casinha sanitário, situada nos fundos do quintal. Finalmente entendi o porquê de tais palavras…
Os impetuosos reclames intestinais não eram restritos ao período diurno: quando todos estavam reclusos, já dormindo cansados, lá vinha minha barriga reclamar de nova esvaziada urgente. Isso significou noites insones e muitas cólicas, pois jamais eu arriscaria sair sozinho pelo quintal para aliviar os intestinos aloucados em moitas próximas ou na casinha da fossa.
Nunca as dores intestinais venceram meu medo. Porém, assim que o sol arriscava sibilos amarelos no horizonte e ouvia alguma movimentação na casa, hora do café madrugador, saía voando rumo ao reduto do recebe merda.Quanto alívio! De lá, meio ofegante pela evacuação doída, escutava tia Nina chamando: “O café tá pronto, menino! Venha logo!”
Ainda hoje, apesar de tais fatos terem sucedido há dezenas de anos, recordo nitidamente a dificuldade que era “acertar” o centro do buraco daquela temível fossa. Por imposição do formato da laje {sobreposta na vala}, os usuários tinham que ficar de cócoras, atentos para não borrar as canelas no ato do descarrego de fezes. Eu ainda mantinha as pernas abertas ao máximo, tentativa de não centralizar todo o peso do corpo peso no centro da lajinha. Se ela partisse…
Naquela época, o sítio dos tios não tinha luz elétrica, água encanada e nenhum conforto, chão de barro batido. Li muito gibi à luz de lamparina, deliciando-me com as concorridas aventuras de Rim Tim Tim, Tarzan, Fantasma e outros heróis dos quadrinhos. Nem ligava muito para o ambiente lúgubre reinante na sala de estar, bem intoxicado pela fumaça. A lamparina irradiava sombras esparsas na parede, igualando-se a vultos fantasmagóricos. Ficava por ali enquanto os tios ou primos estivessem. Depois, era cama, refúgio nos cobertores espinhentos…
Na velha sala dessa fazendola, lembro bem, havia uma pedra marrom, oval, considerada milagrosa, postada de maneira majestosa no centro da mesinha, mobiliário adornado com uma pequena toalha branca de tricô. Pelo que os tios diziam, bastava alguém ser picado por qualquer cobra ou outro bicho peçonhento para “a pedra sugar o veneno”.
A pedra grudava na ferida até o veneno ser exaurido 100%, acrescentavam. Depois, eles a colocavam num vasilhame de leite, para o veneno sair. Eu fingia acreditar nessa história, até por respeito à fisionomia séria dos tios falantes. Muitos vizinhos juravam que essa pedra salvou muita gente por ali…
Um dos primos, Paulo Pimenta, foi “ofendido” (já adulto) por uma jararaca “queixo de burro”, e o ferimento ficou feio por meses seguidos, praticamente idêntico a um abacate podre. Não fosse o empenho diário de uma tia enfermeira, a simpática Autinha, Paulo teria falecido. Até hoje ele tem sinais da grotesca picada. Nunca indaguei nada, mas acho que seria uma boa hora de a famosa pedra ter entrado em ação…
Tia Nina me presenteou com um cavalo branco, que batizei de “Passarinho”. Ainda muito criança, o cavalo só era meu quando ia passar férias por ali. Já chegava no sítio perguntando sobre “Passarinho”. Uma ocasião, ao ir buscar rapaduras numa fazenda vizinha, ambos escorregamos no barranco do rio Verde, até cair no manancial. Chovia bastante naquele dia, e retornamos ao sítio em frangalhos, para diversão da parentada. Passarinho não machucou. Nem eu. Porém, não faltou barro nos dois…
Esse sítio de Pires sempre reaviva boas historinhas. O deslocamento até lá era feito preferencialmente por via ferroviária, a bordo do famoso Trem Azul, da R.F.F.S.A. De carro, era bem complicado, com percurso entre serras e cancelas. Depois que Pires foi emancipado e rebatizado, transformando-se em município, nem a bucólica estação de trem existe mais (foto).
Interessante é que, independente de não dispor de conforto mínimo para seus hóspedes e moradores, eu sempre optava pela rusticidade do sítio familiar para passar minhas férias escolares. Mesmo no período chuvoso, quando assistia torrencial ininterrupto postado na larga janela da sala de estar. A conclusão de tal preferência por Pires hoje é óbvia: ali sempre recebi muito amor por parte dos saudosos tios e primos. Foi uma infância imensamente feliz, e revivê-la traz uma infinita paz interior e, também, a serena convicção de que a felicidade é um sentimento palpável em formas indistintas…
Depois conto mais…
(Por João Carlos de Queiroz)