Parte 03
A gráfica do Jornal do Norte podia ser acessada pelo quintal do casarão ou por uma porta menor, próxima à escadaria frontal. Bastava escancarar qualquer uma para receber imediata baforada de chumbo. Tossir se constituía em reação imediata àquele ambiente tóxico de trabalho.
Conforme mencionei anteriormente, os linotipistas Anselmo e Tião não gostavam de conversinhas. Dedicavam-se exclusivamente às atividades gráficas, e creio que menosprezavam todo o resto à parte de suas funções.
Na qualidade de revisor do jornal, primeiro trabalho que desenvolvi no glorioso matutino, tive que adentrar na gráfica algumas vezes para corrigir páginas. Foi quando senti olhares de Tião e Anselmo, pouco receptivos à clara intrusão.
Para me ouvir, e, pior, resolver o problema, Anselmo e Tião teriam que parar de dedilhar os pesados teclados dos linotipos. Não gostavam de ser interrompidos, ficou claro pelo duplo tom de voz…
Espertamente, antes de ir ao motivo real da minha visita à gráfica do jornal, ensaiei passeio de descontração pelo lugar, indagando se não teriam café e pão fresco disponível. Geralmente, as últimas correções sucediam alta madrugada.
Aí, aliviados, sorrindo afáveis, os amigos linotipistas (considerava-os assim) indicavam a bandeja com café e pão amanteigado ali próximo.
– Pode se servir à vontade – convidavam. Nunca me fiz de rogado.
Entre uma mastigadela e outro, andando entre as máquinas em ebulição de trabalho, entrava mansamente no real motivo que me levou à gráfica, quase ao amanhecer.
– Estava revisando minha página agorinha, e vi que tem duas frases repetidas. Não sei se já a tiraram da mesa, montando na impressora…
– Ah, garoto, já saquei: você não queria apenas café, mas revisar a página! – comentário meio impaciente de Anselmo. Por sorte, não a montamos ainda na impressora… – explicou.
Por experiência, sempre me dirigia primeiro a Anselmo, rapaz educadíssimo, à exceção de rompantes impacientes. Seus olhos azuis ou verdes, nunca soube, faiscavam demoradamente solícitos, aguardando que mostrasse o erro gráfico.
Já seu colega Tião, profissional de estopim curto, não curtia ser muito simpático se se sentisse pressionado em horário de pique na gráfica. Não sei em quantas ocasiões me repreendeu sem cerimônias, pedindo para ter mais cuidado ao revisar as páginas.
– Aqui, meu jovem, nós trabalhamos é para imprimir jornal, não pra escrever ou revisar. Vocês é que estão errando! – falou rispidamente, certo dia. Não retorqui, dando a entender ter lhe dado razão.
A partir desse dia, rareei minhas visitas à gráfica, temendo levar novos puxões de orelha do fenomenal gráfico. Ele percebeu meu sumiço, e esboçando raro sorriso, convidou-me a ir lanchar com eles:
– Você é um rapaz bom, mas tem hora que enche o saco! Mas aparece lá para lanchar conosco de vez em quando. Não some!
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DURANTE o tempo em que trabalhei na revisão e, também, como repórter do Jornal do Norte, mantive excelente amizade respeitosa com Anselmo e Tião.
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Fosse dia ou noite, a gráfica do jornal funcionava a pleno vapor, literalmente.
Resta aplaudir a persistência idealista daqueles gráficos em atuar num ambiente tão insalubre, absorvendo oxigênio “chumbado”, por horas e horas.
Os enormes linotipos dispostos no grande salão inferior do casarão do Jornal do Norte pareciam robôs alienígenas; vorazes seres metálicos afoitos por mastigatório incessante de chumbo, daí resultando “vômito” sequenciado de frases que virariam notícia pronta.
Inclusive, pela majestosa contribuição que ambos prestaram ao setor gráfico de Montes Claros, especialmente na área de imprensa, a cidade lhes deve alguma homenagem oficial.
Anselmo e Tião, no meu entendimento e de centenas de pessoas, são marcos destacados na decolagem impressa da nova imprensa norte-mineira. Merecem reconhecimento popular, moldura histórica, à altura do serviço prestado à cidade e sua população!
João Carlos de Queiroz