Por João Carlos de Queiroz – Joaquinzinho sempre foi uma pessoa tranquila, já avaliava desde à fase criança. Irmão mais velho da minha mãe, ele detinha carisma e postura sistemática altamente confiável; impressões evidenciadas à primeira vista…
No convívio familiar, ‘Quincas’ era companheiro pontual de passeios com os parentes nas margens do Rio Verde, esmerando-se para tudo correr a contento do planejado. Tornou-se líder natural da extensa prole familiar.
Geralmente, nessas incursões ribeirinhas, o tio assumia a função de cozinheiro-chefe, posto perpétuo outorgado pela família. Quando se debruçava para preparar pratos à base de peixe, ouvia-se uma série de suspiros espontâneo dos impacientes comensais. Se fosse feijoada, aí, sim, ninguém resistia mesmo de proferir exclamações elogiosas: “Demais, Joaquinzinho! Demais!”
Aliás, feijoada sempre foi seu forte, e ai de quem metesse a mão intrusa na panela quando ‘Quincas’ estivesse na ativa na beira do fogo. Olhando de soslaio, ele já descartava quem se aproximasse de mansinho, esmiuçando esperto início de papo: “Cheirinho bom… O almoço demora a sair?” Joaquinzinho resmungava algo ininteligível como resposta…
Com problemas de coluna, ‘Quincas” se movia lentamente para reavivar as chamas ou acrescentar mais tempero no feijão. Volta e meia, queixava-se de intensas dores lombares, franzindo o semblante.
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A maioria dos companheiros de pescaria já conhecia o sucesso dos pratos de sua autoria; realmente difícil resistir à tentação de beliscos impertinentes. Um ou outro tentou isso, lógico, e recebeu imediata reprimenda do tio: “Espere ficar pronta, sô! Ainda não está no ponto! Quer comer cru, é?!”
Recordo que, certa vez, um dos pescadores foi mais além ao tentar surrupiar um pouco de feijoada com uma baita caneca, aproveitando descuido de segundos por parte de ‘Quincas”. Tentativa frustrada: num relance de olhos, o cozinheiro percebeu a ousadia e abortou ágil a ação do amigo esfomeado. “Mas que falta de paciência! Não vai morrer de fome se esperar, sujeito!”, recriminou.
Desde então, essa colher se tornou instrumento inibidor de eventuais atrevimentos famintos. Haja resmungos…
Mais do que irmão, um pai…
Os irmãos de Joaquinzinho sempre o admiravam pelo zelo extremoso à família inteira. Desde adolescente, à falta do pai, genitor assassinado traiçoeiramente {punhaladas nas costas}, ‘Quincas’ assumiu o encargo de exemplar provedor familiar. Tinha consciência admirável das dificuldades enfrentadas pela mãe, Mariana Alves dos Santos, e se aliou à sua luta para que nada faltasse em casa.
Trabalhando de sol a sol, Joaquinzinho nunca fez alarde dessa sua dedicação auxiliar. Assim, os irmãos foram criados sem passar fome e outras necessidades. “Joaquinzinho foi o pai que não conheci direito”, dizia minha mãe…
Também nos eventos familiares, muitos recordavam o nobre esforço de ‘Quincas’ em prol da família. Os relatos elogiosos surgiam assim espontaneamente, de forma merecedora…
Numa ocasião, foi relembrado, sem dinheiro para comprar pão, “dona Mariana” se levantou pé ante pé, de manhãzinha, para revistar os bolsos da calça de ‘Quincas’, dependurada na porta.
Já acordado, ele espreguiçava o corpo na semi-penumbra do quarto, momento em que percebeu a matriarca revistando sua calça. “Pode pegar um dinheirinho, mãe. Só deixe umas moedinhas para o meu lanche no serviço”.
Dona Mariana contou contou isso várias vezes nos eventos familiares. E disse que, na ocasião, não se conteve e chorou copiosamente. “Filho bondoso que nem Joaquim é raro”, dizia…
Também foi ‘Quincas” quem a consolou quando da perda trágica do mano caçula Garibaldi, que preferiu dar fim à própria vida, após assistir o pai ser covardemente assassinado.
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Num dos passeios vespertinos que costumava fazer nas alamedas da Praça da Matriz, ‘Quincas’ avistou o maninho tranquilamente sentado ali. “Garibaldi?!”, chamou ao se aproximar. Mas o mano desapareceu, de súbito. O enterro do caçula acontecera uma semana antes…
Impressionado, ele relatou o estranho episódio à mãe, que, por sua vez, informou estar sonhando muito com Garibaldi. Compadecido da dor da mãe, ele a consolou. “Meu irmão quer descansar, mãe! Já não está entre nós, mas nos braços de Deus!”
Coincidentemente, naquela noite dona Mariana voltou a sonhar com o falecido se afogando. Aflita, tentou salvá-lo das águas, sem êxito, e ao emergir rapidamente Garibaldi pediu: “Pare de chorar, mãezinha: estou afogando em suas lágrimas!”
Foi a última vez que a baiana lutadora chorou pela partida precoce do seu rebento caçula…
Tião de Arlinda: visita do além…
De outra feita, então morador no bairro Edgar Pereira, ‘Quincas’ saiu rápido da cama para atender um chamado tardio. “Joaquim, acorde, sou eu!” Joaquinzinho só estranhou aquele horário da”visita”, pouco além da meia-noite. No entanto, captou voz conhecida…
Julgando-se pela exaltação dos chamados, algo de ruim poderia ter acontecido, supôs ao caminhar preguiçosamente pelo corredor.
Ainda no alpendre da casa, avistou uma figura conhecida escorada no portão: tratava-se do amigo tião de Arlinda, morador na região do Rio Verde. O visitante foi o primeiro a cumprimentá-lo, após pedir desculpas pelo avançado das horas.
– Sou eu, meu amigo! Só passei aqui para lhe pedir para cuidar dos meus porcos. Não vou poder tratar deles daqui em diante. Faça isto por mim!”
Mesmo sonolento, “Quincas” estranhou aquele pedido. E indagou:
– Uai, Tião, o que aconteceu, homem de Deus? Você deve estar é doente… É tão dedicado aos animais do sítio! Não haveria de abandoná-los assim…
Tião de Arlinda sorriu mansamente ao responder:
– Já fui, Joaquinzinho, já fui… Mas não posso voltar lá mais, entendeu? E então? Vai cuidar dos porcos? Por favor! Promete que vai lá amanhã cedinho?
Atônito com tanta insistência, Joaquinzinho prometeu que o atenderia.
– Pode ficar tranquilo, farei isto. Se eu puder ajudar em algo mais…
– Só isso… Ah, reze por mim, reze bastante! Estou precisando…
– Tá bom, tá bom… Agora, se quiser entrar, pernoitar aqui… Tá tarde da noite, a friagem não tarda…
– Não, não, obrigado, meu amigo, já tenho onde encostar o corpo velho… Fique em paz, é só o que lhe peço! E reze para que esteja bem , de agora em diante!
Dito isso, o amigo saiu em passadas longas e silenciosas pela rua deserta, até sumir mais adiante. ‘Quincas” o observou preocupado, sussurrando…
– Vai com Deus, Tião!
Eis que, adentrando na sala de estar, ele deu de cara com a esposa Doca (Noraldina Lopes) em pé, francamente intrigada pela conversa estranha que presenciara no portão.
– Ih, Joaquim, a caduquice já te pegou, hein? E você nem tem idade pra caducar…Está passando mal, é? Deu até pra conversar sozinho!
– Lá vem você com suas suposições bobas, Doca! Era Tião de Arlinda! Veio me pedir para cuidar dos porcos. Vou dormir agora, pois vou lá na roça dele amanhã cedinho…
Doca arregalou os olhos, antes de rebater:
– Tião de Arlinda está morto, homem de Deus! Você foi no velório dele há duas semanas! Se esqueceu, é porque está caducando, de fato…
Nem é preciso citar a expressão de “Quincas” diante dessa revelação. Esse episódio, aliás, ganhou repercussão cômica em toda a família…
Rabada de jacaré…
Durante uma pescaria na famosa Lagoa de Deba, também região do Rio Verde, Joaquinzinho preparava o almoço enquanto os irmãos cuidavam das redes. José Nahur foi checar se não havia peixes numa rede próxima à margem da lagoa. Para não cair na água lodosa, ele subiu num tronco de árvore, e qual não foi sua surpresa ao sentir o tal “tronco” se movimentar rápido para sair da lagoa. Era um jacaré!
– Joaquim, Joaquim, corre aqui rápido com o facão! – berrou ao sair da lagoa entre trancos e barrancos, pulando, caindo e levantando…
Joaquinzinho saiu da beira do fogão improvisado para checar o motivo de tanta gritaria do mano. Não deixou de dar boas risadas ao ver como ele corria desesperado do jacaré…
Zé Cachorrinha, um dos pescadores do grupo, foi quem socorreu o companheiro de virar manjar do raivoso bicho.
Disco voador
Já numa outra famosa pescaria, lá pelas bandas de Cana Brava, antigo distrito de Montes Claros, eles retornavam pra casa à noite num Jeep 54, propriedade de Nahur. De repente, o motor do carro perdeu força, e um objeto ovalado e brilhante quase raspou o teto de lona do veículo em voo veloz, detendo-se a meio metro do solo numa várzea lateral à estrada. Pai do Céu: aquilo ali é um disco voador!” – exclamaram apavorados.
Ainda em movimento, o Jeep recobrou a força motora, mas desgovernou-se e saiu da estrada, capotando de lado. Ninguém se feriu, apesar de a capota ter ficado literalmente achatada.
Quanto ao misterioso objeto voador, ele permaneceu ancorado por minutos naquela área verde. Nenhum dos pescadores quis se aproximar. Medo é a principal explicação, até hoje.
– Nunca tínhamos visto uma coisa do tipo, realmente assustadora. Levantou voo que nem um tiro de canhão, subindo verticalmente até sumir…
Curiosos, finalmente os “intrépidos pescadores” criaram coragem para checar o local da quase aterrissagem do estranho objeto (ficou flutuando). No local, constataram que a grama estava queimada em forma circular.
Ainda recordo do Jeep entrando na garagem de tio Nahur, casa do Alto São João, capota totalmente avariada. Isso obrigou os ocupantes a ficarem cabisbaixos…
Bolicho da caipirada…
Na década de 70, Joaquinzinho manteve animado bolicho na avenida João XXIII (Montes Claros-MG). Seu estabelecimento ficava a metros da ponte do fétido Rio Vieira, ladeado pela Avenida Deputado Esteves Rodrigues, a popular “Avenida Sanitária”.
O trabalho de entrega das compras domiciliares ficava a cargo do filho mais velho, Geraldo Vinícius dos Santos. Bem-humorado, vermelho e suando às bicas de tanto pedalar, Vinícius embarcava tudo numa velha bicicleta cargueira, cor laranja. Cansei de vê-lo resfolegante na porta de casa, na Rua Cravina (Edgar Pereira). “Vai buscar água para seu primo, João!”, instruía minha mãe.
A venda de ‘Quincas’ era ponto de parada obrigatória da caipirada com destino a povoados e cidades próximas, a exemplo de Mirabela, Aparecida do Mundo Novo, Brasília de Minas, São Francisco, São João da Ponte e outras…
Eu gostava de ficar por ali nos finais de tarde, espiando o entra e sai de matutos, movimento realmente animado. Os roceiros escolhiam tudo com muito vagar, cheirando os mantimentos alinhados antes de comprar algum. Nunca entendi direito o porquê disso…
Mesmo precário, sem sequer piso cimentado, apenas barro-batido, produtos expostos em divisórias de madeira sem qualquer proteção, o bolicho registrava movimento excepcional de vendas.
Não poucas vezes, fiquei surpreso com a quantidade de compras despachadas nos velhos ônibus estacionados nas proximidades. Até uma jardineira azul e branca parava por ali.
Enquanto aguardava a chegada dos ônibus e outros veículos destinados à trilha roceira, a caipirada bebia pinga e enchia a pança de “Maria Mole” (linguiça apimentada, semi-cozida). Uma cena asquerosa que presenciei era a turma do “mastiga-fumo-de-rolo”: ficavam triturando os nacos de fumo por tempo impreciso, para depois cuspi-los sem cerimônia no chão de terra batida do comércio.
Por incrível que pareça, aquela espécie de armazém marcou o sucesso financeiro do paciente tio “Quincas”, que saía dali somente ao entardecer rumo ao doce lar, geralmente contabilizando bons lucros diários…
Para prestigiar os fregueses, ele construiu anos depois um armazém mais moderno, mas o projeto de melhoria estrutural e de maior prosperidade econômica não vingou. Pelo visto, a caipirada gostava mesmo era do antigo ambiente rústico. Resultado: foi o fim do bolicho do tio “Quincas”.
A velha caminhonete
Joaquinzinho residiu em endereços que ainda tenho na memória: no bairro Edgar Pereira; na Rua Marechal Deodoro, perto da casa do sovina Salvador, judeu autêntico, dono de várias casas perfiladas ao longo da rua; e por último na Rua Altino de Freitas, até hoje residência oficial da família.
Por essa época, pensando em proporcionar lazer à família, ‘Quincas’ comprou uma potente caminhonete Chevrolet, cor verde. Um dia, por mero descuido, ao sair de casa ele “atropelou” o pé da filha Silvana Lopes, o que gerou uma gritaria infernal da menina. Felizmente, foi um atropelamento parcial, sem fraturas, apenas resultando em leve luxação. Silvana tomou ódio da caminhonete verde…
A família de Joaquinzinho também residiu no bairro Edgar Pereira, sempre confundido com Vila Ipê (comunidade próxima). Nessa residência, ele e a matriarca Noraldina Lopes (“Doca”) protagonizaram grandes festas juninas e natalinas, auxiliadas pela competência da bem-humorada Maria.
Seu último endereço foi na Rua Altino de Freitas, centro da cidade, atrás da sede dos Correios & Telégrafos, época em que ‘Quincas’ começou a trabalhar na Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, em função de falência repentina do antigo armazém. Os caipiras simplesmente debandaram do lugar depois que Joaquinzinho o reformou por completo. Não restou outra alternativa senão cerrar as portas do negócio….
O fim do armazém deixou o tio bem deprimido, pois ele amava estar ali todo santo dia, quando ouvia um rosário de histórias verdadeiras ou inventadas que os clientes roceiros despejavam no seu balcão, sem parar. Por pouco, não entrou numa depressão brava… Nem ligava para os carros que a família adquiriu posteriormente, uma belina branca (Ford Corcel) e uma Variant (VW), cor vermelha-escura. Perdeu o gosto pelo volante após se desfazer da velha caminhonete, sempre suspirando ao falar dela…
Para ter algo o que fazer na fase de aposentadoria, Joaquinzinho passou a cuidar do único pé de uva do seu quintal, instalado sobre um alambrado de quatro metros. Além de podá-lo, ele contava detidamente cada cacho de uva, resmungando algo. “Está conferindo se os cachos todos estão aí”, cochichos cautelosos da família.
Infelizmente, meu nobre tio não resistiu a uma cirurgia cardíaca, deixando todos os que o amavam muito tristes. Ainda hoje, os antigos companheiros de baralho, um de seus passa-tempo prediletos, rememoram a felicidade risonha do simpático “Quincas” ao vencê-los em rodadas e mais rodadas, noite adentro. Seus passinhos miúdos, típicos de Carlitos” (Charles Chaplin), quase podem ser ouvidos no longo corredor lateral da casa em que respirou pela última vez…
(João Carlos de Queiroz)