1960 – Minha mãe sempre denotava entusiasmo contagiante quando íamos a Belo Horizonte, preparando as malas com antecedência. Incrível a quantidade de coisas que ela armazenava na pequena frasqueira azul: documentos, vidros de perfume, alicate de unha, batom, etc.
Com pouco mais de cinco anos de idade, eu nem entendia ser importante para ela visitar a irmã Neusa, minha madrinha, na capital mineira. Sempre éramos bem recebidos.
Na saída de MOC, rumo à Estação Ferroviária, o taxista era sempre um senhor idoso, amigo do meu pai. Seu Chevrolet preto surgia brilhante na porta de nossa casa, no horário marcado, e ele acomodava profissionalmente as malas no bagageiro.
No trajeto até à estação, eu já curtia feliz cada casa e rua em que passávamos. O carro deslizava silencioso, apesar de o motor se mostrar potente.
O taxista nem conversava conosco, atento ao volante. Ao descer as malas, ele nos desejava boa-viagem, arrancando o Chevrolet antes mesmo de subirmos a escada da estação.
Ao entrar no terminal ferroviário, quanta emoção avistar a imensa composição da R.F.F.S.A. estacionada na plataforma, à espera dos passageiros.
Viajamos em ambas, no Trem Marrom e no Trem Azul. A segunda, que deixou saudosismo impresso no sistema ferroviário de todo o país, ofertava acomodações luxuosas: carros poltrona-leito, leito e segunda classe, além do vagão-restaurante.
O Trem Marrom, por sua vez, não oferecia nenhum conforto, com o vagão-leito se assimilando a um dormitório coletivo, beliches à vista geral e comilança ininterrupta de quantos se amontoavam no ambiente. E como falavam!
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Certa vez, viajando com meu padrinho, acomodado num beliche superior, xeretei desavergonhadamente o sanduíche de um vizinho. O homem percebeu e me deu um generoso pedaço.
Por azar, meu padrinho, que havia ido ao sanitário, presenciou essa filada de sanduíche:
– Esse menino é pidão demais, senhor, desculpe! Nem tá com fome…
– Sem problemas, sem problemas… É um menininho simpático! – respondeu o passageiro.
Comi aquele sanduíche de forma meio cabreira, ciente de merecer boa bronca do padrinho. Porém, ele achou foi graça, apenas comentando divertido:
– João, João… Fazendo seu padrinho passar vergonha, né?
Em outra viagem no Trem Marrom, dessa vez acomodado num beliche inferior, pude apreciar a paisagem campestre pela janela quase colada à cama.
Sentindo vontade de urinar, pedi a tia Tina, irmã de Lourdes Lopes, que me acompanhava, para me ajudar. Ela então abriu a janela e minha mangueirinha jorrou urina pra fora {não sem voltar alguns pingos, por causa do vento causado pelo movimento do trem.}
Foi nessa viagem que também cuspi no chapéu de um homem que caminhava próximo ao vagão, nem atentando que a redução de velocidade do trem significava parada próxima.
O homem ergueu o braço e abriu a mão raivoso, em gesto inequívoco de que o aguardasse…
Em pânico, ouvi o chiado metálico dos freios do trem, e a composição parou a algumas dezenas de metros. Olhei pela janela e vi o homem se aproximando rápido; pelo visto, entraria no vagão em minutos para se vingar daquela cusparada.
– Dor de barriga, tia Tina! Vou ao sanitário! – disse e já saí correndo.
Entrei no pequeno sanitário e travei a fechadura, temendo que o vingativo homem forçasse a porta. Não saí de lá enquanto o trem não buzinou e deu o primeiro solavanco de retomada da viagem.
Tia Tina, coitada, batia preocupada à porta:
– João!!! Está tudo bem aí?
Mesmo com o trem em movimento, arrisquei olhadela para ver se o homem estava definitivamente fora de vista. E se tivesse embarcado? Poderia me pegar lá dentro…
TREM AZUL
As acomodações do carro-leito do Trem Azul realmente satisfaziam quem desejasse boa-noite de sono: beliches confortáveis, com portas. No entanto, eu insistia em aprontar a cada viagem…
Foi assim que, por várias vezes, entre Montes Claros/Belo Horizonte/Montes Claros, atormentei os primos que dormiam no beliche inferior, cutucando-os o tempo todo.
A cada cutucada, eles se revolviam nos beliches, acordando assustados. A primeira reação era olhar ao redor, e também pra cima. Nem desconfiavam que o autor da traquinagem fingia dormir acima deles; até roncava alto…
Pré-adolescente, pude curtir de outra forma as viagens de trem, passeando por todos os vagões. O pessoal do vagão-restaurante já me conhecia, sempre os mesmos funcionários. Vez ou outra, saía de lá degustando doce de marmelada com queijo.
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O mais interessante era pular de um vagão para o outro, sem se deixar abocanhar por aquelas pranchas móveis que cobriam os engates. Tinha uma espécie de sanfona nas laterais, mas imaginei que não ajudariam muito se alguém se desequilibrasse e caísse de lado.
Em resumo, dava medo ver o mastigatório apetitoso das pranchas dispostas a partir das portas dos vagões. Aprendi que devia ser hábil ao transpô-las, evitando muito apoio dos pés, pois a dança incessante que executavam causava desequilíbrio.
Agora, mais interessante ainda foi ver o “fim do trem” no último vagão, pela portinha com diminuta sacada de espia-estrada-de-ferro-que-está-indo-embora. Os trilhos proporcionavam rica ilusão de ótica, como se estivessem se movimentando. Olhá-los detidamente acarretava tonteiras; isso aconteceu comigo e com os primos.
Viajar de trem, resumindo, é algo que jamais pode ser esquecido por aqueles que tiveram esse prazer. Pena que, hoje, no lugar dos saudosos Trens Marrom e Azul, apenas impessoais cargueiros entoem brados retumbantes nas paisagens do Norte de Minas…