Identificação e acolhimento motivam procura por médicos negros

Busca é dificultada pela baixa representatividade profissional Por Bruno de Freitas Moura - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro

Moradora do Rio de Janeiro, a médica Júlia Furtado fez questão de escolher um dermatologista negro quando precisou de acompanhamento para a pele dela. Um motivo da predileção foi ser acolhida por um médico que sentisse na própria pele, literalmente, o que é ter a cor preta.

Júlia acredita que o profissional terá um melhor entendimento da pele da cor dela. “Tanto porque ele deve acabar se interessando mais sobre as particularidades dessa cor, quanto por ele entender exatamente como é a pele negra no dia a dia, as coisas que mais acontecem, que mais incomodam. Vai dar mais valor às queixas”, explicou à Agência Brasil.

“Com certeza me sinto mais acolhida, no sentido de saber que eu estou sendo tratada por uma pessoa que tem as mesmas particularidades que eu”, disse.

Cauê Cedar, membro titular da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e especializado em pele negra, é o dermatologista que acompanha a Júlia. Ele confirma que a identificação é um dos fatores que unem pacientes e médicos negros.

“Quando o paciente negro encontra um profissional negro, tem muito a questão de identificação e de se sentir acolhido, representado,” explicou.

Redes sociais

O dermatologista ressalta que não há dados que retratem a procura por médicos negros, mas acredita que a busca por acolhimento, como no caso da Júlia, é uma tendência que acontece na medicina como um todo. Segundo ele, um fator que favorece essa oferta de serviços específicos para pacientes negros são as redes sociais.

“Tem um movimento iniciado há alguns anos, principalmente por conta de Instagram, massificação de mídias sociais, a respeito de você se identificar com profissional e ter uma representatividade relacionada à cultura negra”, avalia.

Outro fator que ele acrescenta é o black money (dinheiro negro, em inglês), que pode ser entendido como a intenção de “fortalecer os profissionais negros.”

“Eu gostaria de ser atendida por mais médicos negros. Além de sentir o acolhimento, tem a questão da representatividade, que é muito importante,” diz Júlia.

Poucos negros com jaleco

Neste Dia do Médico, um cenário que paira no Brasil é a dificuldade em encontrar médicos negros. De acordo com o levantamento Demografia Médica no Brasil 2023, elaborado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB), o país tinha 562.229 médicos em janeiro de 2023.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não exige a identificação da cor na hora da inscrição no órgão de classe, de forma que não há contabilização de quantos dos mais de meio milhão de profissionais são negros.

Mas há, ao menos, duas formas de perceber que os negros são minoria na categoria. Uma delas é ao observar a cor e o número desses profissionais nos hospitais, clínicas, consultórios e seminários.

Cauê Cedar percebe essa sub-representatividade na pele. “Reconhecemos que somos uma minoria extremamente marcada. Quando a gente anda em um congresso, vai em encontros de dermatologia, a gente, praticamente, se conhece e se conta nos dedos,” constata.

“Sou preta e vejo que, na nossa realidade, a maioria nos hospitais ainda são médicos brancos,” aponta Júlia Furtado.

Outra forma de medir o abismo entre médicos brancos e negros é ao analisar dados referentes à formação de médicos pelas faculdades.

De acordo com Demografia Médica no Brasil, em 2019, dos novos estudantes de medicina, 69,7% eram brancos, 24,7% pardos, 3,5% pretos e 2,1% indígenas e asiáticos. O levantamento da FMUSP se baseia em informações do Censo de Educação Superior no Brasil, do Ministério da Educação.

Para efeito de comparação, segundo o módulo Características Gerais dos Domicílios e dos Moradores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 45,3% da população do país se declara parda, enquanto 10,6%, preta. O IBGE classifica os negros como o somatório de pretos e pardos. Os brancos eram 42,8%.

Aproximação

A dificuldade de pessoas negras encontrarem profissionais de saúde da mesma cor foi a ignição para o dentista Arthur Lima fundar a AfroSaúde, uma startup – empresa inovadora, geralmente apoiada em tecnologia – voltada para unir essas duas pontas. Por meio de uma plataforma na internet, profissionais negros oferecem serviços, enquanto pacientes procuram especialistas.

Arthur conta que foi um caso de racismo que levou à criação da AfroSaúde. “Uma colega dentista, mulher negra, precisava encaminhar a sua paciente para um outro especialista, pois a paciente dela tinha ido a um que cometeu tal crime, e a paciente só queria outra pessoa negra, pois ela se sentiria mais confortável,” relembra.

“Na época não encontrei um dentista negro especialista (em tratamento de canal) e aquilo me deixou intrigado. Existia um gap [uma lacuna] de mercado relacionado a soluções em saúde que fossem direcionadas para a população negra.”

Formação médica

Para Arthur, não há grande interesse em especialização na saúde de pessoas negras nas faculdades. “Infelizmente, a saúde da população negra não é disciplina presente em muitos cursos de graduação. Quando existe, é por meio de matéria optativa ou projeto de extensão”. O reflexo disso, segundo ele, são “profissionais que se formam sem saber como cuidar da população de um país que é composto por 56% de pessoas negras.”

“Não tem uma literatura, um livro de referência em pele negra no Brasil”, faz coro Cauê, da SBD.

Tratamento inadequado

Arthur considera que “essas disparidades e injustiças estruturais afetam o acesso a serviços de qualidade, diagnóstico precoce e tratamento adequado.”

O profissional lista alguns casos em que a saúde da população negra não recebe o tratamento adequado. “As negras são as que mais sofrem com a violência obstétrica, desde a dificuldade de acesso a um pré-natal de qualidade ao momento do parto e puerpério,” cita.

“São inúmeros casos de negação de anestesia durante o parto por [os profissionais] acharem que as negras são mais resistentes à dor”, diz, acrescentando que o mesmo acontece na odontologia. “Existem muitas pesquisas científicas que abordam sobre como terapias mais invasivas e mutiladoras são oferecidas a pacientes negros comparados aos não negros, pois os profissionais seguem o mesmo pensamento.”

No campo da saúde mental, “são incontáveis casos de traumas por conta da falta de entendimento e acolhimento de profissionais não negros em relação a como o racismo ou o processo de ser uma pessoa negra no Brasil influencia no adoecimento mental,” diz.

“Por isso, muitas pessoas negras buscam profissionais que sejam semelhantes a elas, pelo fato de terem mais chances de serem médicos que buscam algum tipo de conhecimento técnico sobre saúde mental da população negra ou, por muitas vezes, saberem como o processo de racismo funciona”, conclui.

Edição: Valéria Aguiar

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