(PARTE 01)
Imagine a campainha de um apartamento tocando insistentemente às 6h, num dia chuvoso em Belo Horizonte. Mais precisamente, o apartamento 1.203, localizado no 12o. andar do Edifício Riachuelo, Rua Rio de Janeiro. Quem abre a porta, entre sonolenta e surpresa, é minha madrinha Maria Neusa. Geralmente, as viagens noturnas (de ônibus) entre Montes Claros e Belo Horizonte terminavam nos primeiros raios solares…
Ao ouvir meus cumprimentos boquejados, volume de voz impróprio à quietude matinal do prédio, a madrinha pede para falar mais baixo pois “sua avó ainda está dormindo…”
Ela disse isso pressionando o dedo indicador indicador sobre os lábios. Entendi, e passei a cochichar.
– Não precisa sussurrar, menino: só fale um pouquinho mais baixo! – comentou rindo.
A princípio, ela não se mostrou muito receptiva à visita inesperada do afilhado adolescente (eu tinha uns 14 anos), mas providenciou rápido café, à base de leite e biscoitos, interessando-se em ouvir as novidades familiares na terra natal.
Entre mastigadas gulosas (“Coma mais devagar, Joãozinho!”), relatei as últimas notícias da família.
Ela logo quis saber de minha mãe, se mandou algum recado, etc. e tal. Pergunta inevitável, que fingi nem ouvir. A madrinha insistiu, agora me olhando desconfiada. Não tinha jeito: teria que dar qualquer desculpa:
– Mãe mandou abraços pra vocês. Disse que vem visitá-las qualquer dia – respondi astutamente. Novo olhar desconfiado. Decididamente, não colou…
A madrinha se apressou então para ir trabalhar, não sem antes me repassar uma agenda cansativa de pode e não pode isso e aquilo…
Ouvindo-a ditar tantas regras, concluí ter razão, visto que deveria ainda se lembrar do dia em que deixei cair a imagem de Nossa Senhora de Fátima no chão, danificando-a bastante.
Nessa época, eu tinha seis anos, e minha mãe ficou aflita ao ver os estragos causados na Santa imagem. “Sua tia vai estrilar feio!”, avisou.
Não foi bem assim: a doce madrinha não escondeu seu desapontamento, visível numa expressão triste; porém, justificou que coisas do tipo sempre acontecem, principalmente envolvendo crianças.
E ao contrário do que eu pensava, a imagem não foi substituída, sendo colada e voltando a ocupar a mesma posição de destaque na sala de estar. Costumava olhá-la pesaroso, lembrando da queda…
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Há um dia, no entanto, em que a casa cai, literalmente falando. Isso sucedeu quando emplaquei novo prejuízo no apartamento da madrinha, espatifando seus preciosos mimos de decoração: bibelôs de porcelana. Deveria ter uns quatro anos…
Os interessantes pinguins ficavam dispostos no criado da sala de estar, e o curioso aqui não entendia como balançavam as cabecinhas tão facilmente…
O problema começou a partir do instante em que quis enfileirá-los que nem soldados no quartel, cutucando-os aleatoriamente, na ponta da mesa.
Nesse cutuca-que-vai-pra-frente-pois-sou-soldado, três deles caíram, desintegrando os frágeis pescoços finos pela sala…
Difícil esquecer os brados raivosos da tia ao ver seus pinguins degolados sumariamente.
Assim, tais visitas não se constituíam necessariamente num fato agradável à boa madrinha, significando desastres caseiros irreparáveis.
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AGORA, lá estava eu novamente em Belo Horizonte, gás renovado para saber de tudo e experimentar ao máximo qualquer sensação inédita.
– Vou trabalhar, Joãozinho! Comporte-se, viu? Obedeça sua avó! – instruiu a madrinha ao sair, denotando semblante tenso.
Já acordada, minha avó disse que ela poderia ficar tranquila. Palavras não convincentes, julgando-se pelas últimas palavras:
– Fique bem de olho! Esse menino é espoleta pura!
Lá pelo meio-dia, ao voltar para o almoço (o escritório dos Irmãos Pereira ficava bem próximo), ela me recriminou por ter viajado escondido da própria mãe.
– Sua mãe estava apavorada quando liguei. Você conseguiu viajar sozinho, sem avisá-la de nada!
Na verdade, fugi de casa, depois de discussão abobalhada com “Notinha” (MARIA ENY). A passagem foi bancada por uns trocados que sobraram da mesada da madrinha.
Diante daquela bronca, nem pude dizer nada, limitando-me a ficar cabisbaixo.
– E agora, hein? – questionou. – Você tem dinheiro pra voltar? Eu não tenho! – avisou séria, sob o olhar complacente de vovó Mariana. Não gostava que falassem duro comigo…
Por conta dessa mentira, fiquei de castigo no quarto, no período vespertino, ordens expressas da madrinha. No entanto, foi só ela descer pelo barulhento elevador – que estremecia o andar inteiro! – que ganhei direito de circular novamente pelo apartamento…
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Fiquei alguns dias em Belo Horizonte, até para recompor a briga em casa. Calmamente, o bota-fora da madrinha foi em grande estilo, bem direto:
– Escute, Joãozinho: hoje à noite você volta para Montes Claros! Sua hospedagem acabou!
Minha madrinha ainda me passou bom sermão ao ir comigo à Rodoviária, a fim de retirar autorização para viajar desacompanhado.
No embarque na plataforma G, ela abriu um amoroso sorriso, recomendando para não chegar mais de surpresa no apartamento.
– Pode vir quantas vezes quiser, desde que sua mãe consinta!
O motorista fechou a porta do elegante ônibus, de fabricação alemã, cor amarela, na época operado pela antiga empresa DANIFI. Seu potente motor ronronou disposição estradeira, balançando a carroceria. Deu pra sentir sua maciez antes mesmo de sair dali…
Minha madrinha, ao lado da janela, mandava beijos e gestos de “juízo, menino!”. Retribuí os carinhos, já saudoso da companhia dela e da vovó Mariana…
O ônibus finalmente saiu da plataforma e percorreu as alamedas inferiores do terminal rodoviário com porte de cavalo árabe, determinado a alcançar percurso viajante…
Olhei para trás, e consegui avistar o vulto difuso da madrinha ainda em pé na plataforma, acenando despedidas…
No engate de marchas sequenciais do potente motor, o ônibus alemão ganhou fôlego pela Avenida Dom Pedro II, rumo à Br-040, trecho inicial da viagem. Depois, acessamos a rodovia 135, rumo a Montes Claros.
Bom voltar pra casa depois de reconfortante hospedagem na casa da madrinha…
Por João Carlos de Queiroz