Intrigado, Vicente relanceou os olhos, de brilho gelado, a série de portas e janelas que continuavam sendo fechadas à medida que empreendia passos pausados rumo ao beco da estação.
À sua retaguarda, as mesmas portas e janelas voltavam a ser abertas, e vultos humanos assomavam cautelosos para se certificar de que o perigo já estava longe. Vicente não se considerava nada perigoso para alguém, ou algum lugar…
Já no beco, sentiu-se mais animado, pois a proximidade do lar impunha sentimento inédito. Uma vaga tristeza o acometeu no meio desse trajeto, lembrando que sua companheira e o filho não estariam à sua espera.
Mas que cabeça! Não conseguia mesmo se lembrar de como os perdera, aonde andavam…
Por sorte, ele guardou a chave da casa no vaso suspenso do alpendre, e ela girou fácil na fechadura, expondo cheiro de mofo gratuito às suas narinas sensíveis.
Vicente adentrou pela sala cuidosamente, e notou que tudo estava arrumadinho, apesar da simplicidade estancada em todo o simples ambiente.
Mais um flash veio à sua mente, momento em que uma parente próxima lhe prometeu cuidar de tudo por lá enquanto estivesse fora. Pelo visto, cumpriu isso…
Inútil tentar forçar a mente para se lembrar de outras coisas que o cérebro relutava em reagrupar nitidamente, tornando tudo ainda mais confuso.
Vicente tirou o casaco de viagem e os sapatos, meias. Quis que a sola branca dos seus pés arranhassem o piso irregular da casa, e da sala dirigiu-se à cozinha e, finalmente, aos fundos do imóvel.
Ver o quintal desbarrancado, expondo parte de Pires, foi incrível para o alfaiate. Num novo flash generoso, lembrou-se de ficar sentado na soleira da porta dos fundos olhando os arredores do distrito.
Contentou-se, portanto, com os resquícios ofertados a cada imagem que seus olhos fixavam aleatoriamente, do tempo em que pôde até ser feliz em Pires.
O alfaiate adentrou novamente pela casa, mais especificamente ao quarto de costura.
– Minha amiga… – comentou entredentes, ao ver a máquina Singer coberta por surrado plástico transparente.
Pela primeira vez, desde que desembarcou da quase jardineira, seus olhos perderam parte da frieza costumeira, brilhando extasiados: reencontrar a máquina com a qual trabalhou por décadas era deveras emocionante!
A máquina Singer interagiu de imediato, iniciando fantasmagórica atividade de costura inexistente. O pedal ficou subindo e descendo sem parar, como se alguém o pedalasse afoito, e não tardou para o carretel de linha, em ritmado samba crioulo, desprender-se e vir ao chão.
Vicente não se impressionou, pois visualizara outros sucedidos esquisitos naquela casa. Ele próprio, reconheceu tristemente, compunha figura pavorosa em Pires. Todos sabiam que se transformava em lobisomem nos períodos sacros…
Não seria uma máquina de costura que o assombraria. Assombrados estavam os moradores de Pires ao vê-lo retornar sem maiores explicações.
Deduziam, no mínimo, que ele estivesse sedento também de sangue humano, não apenas de animais. Os crimes sucedidos a bordo do Trem Azul estarreceram toda a região, o Estado. Nada o incriminou diretamente, por mais que falassem, apontassem…
Tão rápido como iniciara serviço solitário, a Singer imobilizou repentinamente o eufórico matraquear de agulha sem tecidos à mostra.
Vicente a acariciou de modo terno, lembrando das incontáveis vezes em que ela produziu vestes de cortes suntuosos, impecáveis, enfeitando enfeitar madames e famílias inteiras dos coronéis das redondezas.
Aquela noite, de sexta-feira da Quaresma, prometia muito, pensou o alfaiate ao procurar roupas mais folgadas no quarto. Banho, nem pensar, estava frio!
A seguir, optou por deitar-se e tirar um breve cochilo, mas essa soneca terminou consumindo as horas restantes de luz solar. Vicente acordou ao ver o misto de laranja e amarelo crepuscular fechando as cortinas do dia na linha do horizonte…
Noite fechada, Pires assumiu então franca atitude carrancuda, e somente piados de coruja podiam ser ouvidos nas cercanias, além de cantos fúnebres provenientes da mata próxima. A orquestra do medo começava a ensaiar mais uma apresentação não muito pública…
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Ele desceu ao quintal para averiguar o velho chiqueiro de porcos em que manteve capados por longo período. Aos poucos, novo flash, recordou ter devorado todos os animais, por considerá-los trabalhosos para criação. Também o forte odor dos suínos incomodava seus clientes.
Mas foi nesse chiqueiro que Vicente protagonizou metamorfoses fantásticas, transfigurando-se em lobisomem e aterrorizando Pires e redondezas por anos e anos.
Para virar lobo-humano, bastava rolar no chiqueiro à meia-noite em ponto. Por sinal, ao checar o patacão de ouro, Vicente viu que faltava pouco para os ponteiros baterem continência sinistra nesse horário…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista