Jamais Vicente admitiu que a o início de sua velhice trouxesse confusão mental, impedindo-o de manter intactos os fatos mais importantes de sua existência. Muita estranheza aquilo!
Retornou a Pires, sim, e devia ter bons motivos para estar ali novamente. No entanto, sua memória se recusava a responder, e se acaso alguém ajudasse, as novas informações passavam a compor o arquivo morto do nada.
Daí suspeitar que aquele desembarque em Pires poderia ser outra peça pregada pela sua cabeça alienada, adepta de devaneios fantasiosos ao extremo…
– Olhem lá, é o lobisomem! Ele voltou! – grito de mulher. Outras gritaram apavoradas, e a pacata rua sublinho corre-corre de pessoas para todos os lados.
Vicente previra que seu retorno causaria espanto em muitos, mas não pavor. Tantos anos fora de Pires, talvez tivessem esquecido…
Melhor não ligar para a aversão declarada dos conterrâneos, pois teriam que aceitá-lo de qualquer forma. Nenhum deles, pensou, tinha direito de se intrometer em sua vida, impedindo-o de retomar o canto residencial deixado pra trás.
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Novos flash e a memória sentenciou que Vicente cometeu deslizes imperdoáveis no povoado. Apesar dos anos de ausência, os veteranos do distrito não esqueceram suas transformações em lobisomem e do quanto aprontou no distrito e matas afora durante a quaresma, travestido de lobo-homem.
Na relutância geral direcionada ao alfaiate, pesava os fatos registrados entre agitada viagem de trem de Belo Horizonte a Pires e Albuquerque: Vicente e uma companheira peluda, supostamente lobisomem, assombraram os passageiros pra valer.
Outros fatos inconcebíveis foram testemunhados por quantos viajavam nesse dia no Trem Azul: o comboio andou desembocando em lugares opostos à rota original.
Esperto, Vicente comentou em Pires ter sido fruto da imaginação de passageiros cansados. Admitiu que, em dado instante, também teve medo de ser atacado pelos estranhos seres. Ninguém acreditou nele.
Daí o seu receio de não ser bem-vindo ao desconfiado povoado, pois todos sabiam que ele encorporava dois personagens distintos: um de alfaiate e outro de lobisomem.