Depois de serem surpreendidos no acampamento em Pires e Albuquerque-MG (Alto Belo) por inesperada visita de lobisomens, a turma de cineastas aventureiros, sob a batuta do competente jornalista Eduardo Brasil, preferiu se manter quietinha na tranquilidade do povoado. Vai que as bestas-feras resolvem perambular novamente pelas tendas que armaram no sítio…
– Ali, eu não passo mais nenhuma noite! – disse um dos atores, pedindo para não ser identificado.
O trovador Téo Azevedo, primeira pessoa a dar o alarme da presença de coisas esquisitas no pátio do sítio onde estavam acampados, mostrava-se agora mais animado a prosseguir as filmagens.
Numa prosa de esquina na praça de Pires, depois do corre-corre madrugador do acampamento, ele disse ao amigo Eduardo Brasil que nada impediria a consumação do alardeado filme; produção baseada numa de suas obras literárias (“U ômi qui casô cua mula”), poesia famosa em Minas Gerais.
Eduardo Brasil, o diretor, também reiterou franca disposição de retomada das filmagens, e disse que, pelo menos por dois dias, eles ficariam reclusos em Pires, na esperança “das coisas se acalmarem”. Referia-se, obviamente, ao susto provocado pelo casal das trevas no acampamento próximo.
Conversa vai, conversa vem, os dois terminaram almoçando na venda de Manoel das Quintas, antigo comerciante local. Por lá encontraram Jair de Viana, outro prosador de fala mansa carismática, a exemplo do próprio Téo Azevedo.
Jair de Viana não demonstrou esquisitice ao ouvir sobre a visita de lobisomens no acampamento, deixando claro ser comum isso em Pires.
– Andei até estranhando o sumiço de lobisomens e assombrações no distrito de Pires. Já cruzei com vários troços do tipo nesses anos de vai-e-vem ao sítio e até cá, no povoado. Mas, verdade verdadeira, nunca fui atacado. Parece que eles (lobisomens) sabem quem sou. Não dou mole, não: comigo, é na bala mesmo!
Téo Azevedo cutucou discretamente o braço de Eduardo Brasil, para insinuar que tudo aquilo não passava de bravatas imaginárias do popular Jair de Viana.
O jornalista percebera isso desde quando Jair de Viana disparou sua matraca falatória. Tanto que sorria divertido em ouvi-lo contar as imaginárias andanças de cavaleiro da infantaria…
Depois de encher o bucho, ambos os cineastas foram descansar numa casinha alugada mais acima, interior com cheiro de mofo pela umidade retida do quase abandono do imóvel. Alguns dos componentes da equipe já descansavam em colchonetes estendidos na sala e nos dois quartos.
Ao acordarem à tardezinha, desceram novamente ao centro do povoado, onde filaram café na casa da matriarca de Feliciano de Souza. O rapaz alertou que o grupo filmador precisava se cuidar, pois ele e sua esposa Quely viram quando o casal de lobisomens desembarcou em Pires, sumindo nos cafundós da mata.
– O alfaiate Vicente, que foi conosco para Belo Horizonte e voltou no mesmo trem, não desembarcou em Pires, estranhamente. Ele é famoso aqui por se transformar em lobisomem na quaresma. Tem gente que já testemunhou esse sujeito rolando no chiqueiro de porcos, e dali já saiu uivando e transformado em lobo; animal com estatura enorme, inacreditável. Não é mesmo desse mundo…
Eduardo Brasil disse ser que nem São Tomé, precisando “ver pra crer”, e argumentou ser possível a mente humana criar coisas inexistentes. Téo Azevedo rebateu ao ouvir isso, afirmando ter visto mesmo um casal de lobisomens no acampamento. “E ele (Brasil) também viu os bichos nessa madrugada, mas agora fica aí, rateando…”, emendou crítico.
Os colegas da equipe de filmagem também desceram para lanchar, retornando depois à velha casa. Eduardo e Téo presenciaram o grupo subir a pequena rampa de acesso ao decrépito imóvel, praticamente o único disponível em Pires (Alto Belo) para aluguel.
– Se eu fosse vocês, amigos, não ficaria até tarde pelas ruas desse povoado. Não dá pra facilitar nada ultimamente. O casal de bichões esquisitos está solto, não duvidem! – novo alerta de Feliciano, que se despediu dos amigos para retornar a Bocaiúva com a esposa Quely, onde residem.
Renitentes aos conselhos, Eduardo Brasil e Téo Azevedo emendaram o restante de tarde com a noite chegante. Dirigiram-se a seguir até o boteco de Zeferino Canhoto, considerado o melhor lugar noturno de Pires. De fato, muita gente estava acomodada na calçadinha em frente, saboreando salgados com cerveja.
Não fosse Téo Azevedo lembrar que já era mais de 22h, Eduardo Brasil ainda permaneceria no local petiscando e bebendo.
– Vamos, Brasil, que a hora é realmente tardia, companheiro, e amanhã temos serviço bem cedo”, disse Téo.
Olhando o amigo meio de banda, Brasil não escondeu certa irritação por privá-lo de curtir mais aquela noitada. O jornalista se sentia à vontade em conviver com o pessoal simples do lugar. Mesmo porque adorou ouvir alguns casos roceiros da turma ali presente.
Ambos notaram que o excesso de cerveja torpedeou parte do controle dos passos na subida do beco estreito rumo à casa alugada. Faltou fôlego para vencer os últimos metros do trechinho, porém conseguiram chegar.
Téo Azevedo bateu duas vezes na porta, supondo que os colegas ainda estivessem acordados. Só silêncio… “Dormiram…”, informou a Brasil. “Então abra com a chave!”, respondeu o jornalista, meio impaciente. O sono da cachaça estava evidente.
A imensa chave acoplou-se rangendo à velha fechadura, e rodou com certa dificuldade, permitindo escancarar a porta. Tudo escuro, silencioso…
Seguido por Eduardo Brasil, Téo Azevedo procurou o interruptor de luz em vão, e o recurso foi ligar a lanterna do celular para melhor se ambientar na escuridão reinante naquele ambiente.
Lanterninha acionada, e a porta já fechada, Téo vasculhou as paredes à procura do interruptor de luz, sempre apressado pelo bebum ocasional Eduardo Brasil, quase um morto em pé, de tanto sono. “Ande logo aí, Téo! Não consegue nem achar o interruptor, droga!”, esbravejou o amigo.
Sem responder, subitamente estático,Téo mantinha agora o celular fixo no banco central da sala, iluminando duas figuras desconhecidas e de olhos vermelhos.
Nem preciso acrescentar que o intruso casal não vestia uma única peça de roupa, ausência suprida por espessa camada de pelo escuro. Um deles tinha uma farta cabeleireira dispersa, certamente a lobisomem-fêmea…
– Meu Pai! – só pôde gritar Téo, quase deixando o celular cair.
Eduardo Brasil também engasgou de espanto ao ver a temível dupla refestelada no seu “doce lar”, possivelmente sedenta de sangue humano.
O susto foi tão grande que Brasil se recompôs magicamente da bebedeira sonolenta, gritando um “Vamos cair fora, Téo!”
Ansioso por sair da casa, o trovador Téo Azevedo colidiu feio na porta, esquecendo-se de tê-la fechado ao entrar. Foi salvo pelo amigo Eduardo Brasil, que puxou a trinca com força, momento em que ambos puderam descortinar o céu enluarado e de inegável liberdade salvadora.
Um rasgão na jaqueta de Brasil, com marcas de unhas graúdas no ombro, provou que foram salvos por pouco. Mais uma vez, os cineastas exercitaram as pernas atléticas de agilidade desconhecida rumo à baixada do povoado, em gritaria pavorosa de socorro. Sequer uma janela se abriu para abrigar os fujões dos lobisomens.
Enquanto corriam, matutaram qual destino teria tomado o restante da equipe cinematográfica, que, por lógica, também deveria estar naquela casa. Sumiram todos…
Alto Belo dormia então em sono plácido, enquanto o insone casal de lobisomens mantinha plantão de terror à espera de suas vítimas. Só não posso dizer quando Brasil e Téo pararam de correr…
Por João Carlos de Queiroz