Por João Carlos de Queiroz – Resumidamente, a história de Gilmar da Silva Moraes, morador tradicional de Cuiabá-MT, poderia ser contada de várias formas. Vou optar pela mais simples; até mesmo pela eventual impaciência de algum provável leitor. Sei quando sou cansativo.
Gilmar é um dos milhões de portadores de necessidades especiais do mundo, condição que se sobrepôs à de atleta de futebol, após receber forte impacto de bola na cabeça. Foi durante um jogo em Cáceres,interior de Mato Grosso. De lá pra cá, após superar coma profundo, Gilmar nunca mais foi o mesmo, e as muletas se tornaram então companheiras solidárias…
Eu o conheci em Cuiabá, em meados dos anos 2000, quando era frequentador assíduo de pizzarias no município vizinho, Várzea Grande. Gilmar apareceu à noite num dos estabelecimentos do tipo, revendendo dvds. Seu trabalho diário, ganha-pão, informou sem pestanejar ao apresentar a diversidade de filmes.
Impressionou-me o sorriso franco do falante rapaz, que até conseguia fazer piadas de seu calvário físico. “Subir rampas é mais difícil, pois minha a perna (direita) não ajuda, e às vezes nem consigo virar o pedal nas rampas; aí, a bicicleta retrocede de repente, e estrebucho feio no chão”.
Gilmar explicou assim que sua força motora, dos membros inferiores, estava reduzida (parcialmente) a uma perna. Isso fica notório quando o observamos arrastar o próprio membro em gingado sofrido, detendo-se, vez ou outra, para endireitar o pé re torcido. Sempre sorrindo, inacreditável!
A pedalante, protagonista dessa jornada trabalhadora do ex-jogador, era uma bicicleta comum, porém “meio especial”, diria, por conta de encaixe retangular no pedal direito. Peça que acoplava o pé de Gilmar, evidentemente protegendo-o de algum tipo de colisão. “É um pé morto”, ainda diz simplesmente.
OTIMISMO – Também relembro que Gilmar “jantava” espetinhos gelados, guardados na sua mochila. Elogiava o cardápio ambulante.
Os anos se passaram e o jovem adquiriu uma motocicleta modesta, 125 cilindradas. Não tardou para se acidentar uma, duas, três, quatro, cinco vezes (ufa!). E a moto pioneira foi aposentada por destruição.
Compadecendo-se de sua situação, incluindo a persistência de trabalhar honestamente, um amigo o presenteou com outra moto do tipo, companheira de mais acidentes. Hoje, Gilmar está na quarta condução motorizada, e admite que cair se tornou rotina em sua vida. “Já ando ralado por natureza”.
Gilmar circula sem habilitação entre Cuiabá e Várzea Grande, mas agradece à Polícia Militar e à Guarda Municipal {de Várzea Grande} por não apreender seu único transporte. “Já me pararam um punhado de vezes em blitzes. Houve um sargento que não me conhecia e gritou feio: “Desce da moto, já!” Mas, ao ver que não conseguia atendê-lo, pois minhas muletas estavam amarradas na moto, ele disse chocado: vai embora, rapaz, vai com Deus!”
Este relato simplório é porque eu reencontrei Gilmar ontem no prestigiadíssimo Rei do Mocotó, Mercado Municipal de Cuiabá. Fui lá a contragosto, após passar noite febril e com dores estranhas. Temia estar com dengue ou algo pior. Mas ver novamente o sorriso animado de Gilmar, ouvi-lo dizer que tem projetos de vida, e que está amando, pretende fazer isso e aquilo, é desmonte de qualquer desânimo.
Gilmar é exemplo de motivação para quem pensa que a vida acabou diante de qualquer percalço. Ainda que ande arrastando os próprios membros sem vida aparente, ele faz com que o todo do corpo tenha sintonia direita com seu coração iluminado. É de onde procede essa inesgotável luz que atrela felicidade aos seus passos de atleta eterno.