Montes Claros-MG, anos 60 – Desde que aprontei feio no antigo sobrado da Escola Normal, ao saltar de surpresa nas costas de normalista magrela, época do Primário, minha moral andava em baixa no recinto escolar. Nem me atrevia a sair durante recreio, pois era alvo de olhares recriminatórios, seja por parte de colegas da moça e, também, dos funcionários.
Assim, para não enfrentar nenhuma saia justa rancorosa dos amigos dessa estudante, fui obrigado a dispensar, por semanas, o delicioso lanche (mingau de fubá com queijo e pão doce) servido pelas cantineiras, optando por comer alguma coisa simples trazida de casa (fatia de bolo, banana, biscoito, etc.).
Minha mãe, esperta, logo desconfiou que eu pudesse estar velhaco por causa do sucedido, e não acreditou na desculpa de estar enjoado do lanche do educandário.
Zelosa, passou então a acondicionar lanche caseiro na pequena mochila, orientando para ter cuidado para não amassar tudo.
###
As aulas eram interessantes ou monótonas. Só não gostava de aritmética, a temível matemática. Matéria que sempre se constituiu no meu terror estudantil. Nem aulas de reforço deram resultado…
Numa dessas aulas, a professora Cleonice substituiu a prova de português por trabalho de texto. Na época, redação era conhecida como composição. Com o intuito de incentivar nossa criatividade, ela expôs alguns quadros à frente, temática focada no ambiente rural. E foi explicando:
– Comecem dizendo tudo que acham sobre o quadro escolhido…
Na sequência, acomodou-se atrás da mesa, lendo algo, ora fazendo anotações. Deixou-nos à vontade para espremer o cérebro infantil…
Antes de tentar escrever qualquer coisa, xeretei os cadernos dos coleguinhas. Praticamente todos se limitavam a descrever as comunidades rurais expostas nos quadros. Textos demasiadamente bobos, concluí: “A fazenda tem dois bois e um cavalo. Tem galinhas também…”
Achei tudo aquilo muito ridículo…
Pedi à professora, meio tímido, para criar algo diferente, esperando negativa. Ela me olhava severa desde o episódio do pulo nas costas da normalista. No entanto, retorquiu simpática:
– À vontade, João. Você escolhe o assunto!” E voltou à leitura…
Uma vez que chovia forte naquela tarde, inspirei-me nas trovoadas para contar o drama de uma mariposa. Mais ou menos assim:
“Ela voava cansada sob impiedosa pancadaria da chuva, procurando algum abrigo. Bastou ver a janela aberta de uma casa para entrar, sentindo-se livre daquele perigo. Voou e voou pelos aposentados, investigando tudo. Não demorou a encontrar a cozinha e um fogão enorme, em pleno funcionamento. A lenha crepitava fogo robusto”.
Relatei que a curiosa mariposa não se contentou em ficar apenas por perto do fogão, passando a sobrevoar as panelas fumegantes. Aí, suas asinhas foram enrugadas repentinamente pelo vapor, e ela despencou direto nas chamas laterais à panela, virando cinza em segundos…
No mesmo texto, acrescentei que os moradores da casa nem desconfiaram que o fogão torrara uma pobre criatura voadora. Alternadamente, eles se serviram da comida fumegante, rindo bastante das conversas compartilhadas.
Quanto à audaciosa mariposa, que apenas queria um abrigo, deixou de existir de jeito bem triste, porém anônimo…
Encerrei o texto com a expressão acima.
###
Devo destacar que, nessa época, a despeito da pouca idade, entre seis e sete anos, eu já lia e escrevia fluentemente, devorando livros e mais livros dispostos no armário de casa.
Pelo fato de sonhar em lecionar um dia, minha mãe guardava todo tipo de obras ali, muitas doadas pela madrinha Neusa, leitora contumaz.
Nesse peregrinar de leitura distinta, encontrei obras didáticas, literárias, de ficção e revistas. Havia livrinhos de faroeste, os favoritos do meu pai.
Nem os grossos volumes da Bíblia Sagrada escaparam dos meus olhos ávidos em absorver conhecimento; cada livro significava aventura interessante.
Portanto, achava estranho ver a insegurança de alguns coleguinhas quando liam algo. Ou melhor: soletravam. Tão fácil aquilo!
###
Entreguei minha historinha da mariposa sem o menor entusiasmo, esperando nota mínima. A professora recolheu os demais trabalhos e, durante a parte final da aula, após o recreio, limitou-se a corrigi-los. Fiquei observando suas reações…
– Esta história sobre a mariposa foi você que criou ou alguém contou? – quis saber.
– Fui eu… Estava chovendo quando a senhora passou a tarefa…
Confesso ter ficado apreensivo com aquela pergunta. E em dobro ao ver a professora saindo da classe levando minha historinha. Os colegas perceberam e perguntaram o que fiz agora…
– Nada… Não fiz nada…
A mestre não demorou a retornar, agora acompanhada do diretor. Apavorado, imaginei que lá vinha alguma bronca feia…
O diretor entrou na classe, cumprimentou a todos e, sem pestanejar, posicionou-se a meu lado, segurando a folha com minha história. Reconheci pela gravura do verso.
– Muito bem, muito bem, Joãozinho… Já sabia que você é um garoto peralta, capaz de aprontar poucas e boas. Só ignorava que fosse gênio!
Arrisquei, finalmente, a olhar para o diretor, um senhor cinquentão, calvo, branco ao extremo. Exalava odor de desodorante barato, mistura de formol com Leite de Rosas. Minha mãe tinha em casa…
Eu não entendi seu comentário, e meu olhar confuso foi captado pela professora.
– Ele está falando do seu conto, João. Muito bom! Passe a limpo, pois vai ser exposto no estande da escola, na Exposição Industrial e Agropecuária, agora em julho.
###
Minha autoestima melhorou desde esse elogio, e voltei a circular naturalmente pelos corredores. Somente evitava encontros com a magrela dentuça, a normalista que quase derrubei. Desconfiava que pudesse querer se vingar…
Geralmente, no recreio, ela ficava no salão de entrada da escola. Acho que também queria me evitar…
ASSIM nasceu o meu primeiro “conto”. Idiotice infantil que mereceu aplausos de pessoas comprovadamente intelectuais!
João Carlos de Queiroz, jornalista
*As expressões discriminatórias (dentuça magrela, etc…), relativas à normalista, não condizem com meu pensamento atual. Citei-as apenas como parte do que pensava, nos tempos criança.