João Carlos de Queiroz – Waldir é um taxista várzea-grandense, sujeito muito simpático e convidativo à prosa, já à primeira vista. É detentor de fala mansa e olhar igualmente sereno, de urso entediado. Ao esborrachar seu traseiro gordo numa cadeira, tem-se a impressão de que tomou porre de preguiça relaxada. Ele praticamente se joga lá todo destrinchado, à espera de que as horas aconteçam, sem novidades.
O simples ato de falar, nesses momentos, parece exigir de Waldir algum esforço extra, contraste à eterna disposição prosada do veterano taxista, como se aqueles instantes fossem sagrados à sua decisão de neutralidade física e mental.
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Waldir não pode, necessariamente, ser tachado de preguiçoso, porque trabalha bastante, na praça. Mesmo os falantes viciados preferem se quedar no silêncio de prostrações interiores. É quando desejam simplesmente curtir o nada diante de si…
Portanto, hoje na casa dos 66 anos, o jeitão de andar de Waldir segue o formato original de calma que emoldura muitos seres humanos. Dirige seu táxi de sem qualquer pressa, ainda que de maneira responsável. É excelente motorista, um dos mais respeitados na região do Aeroporto Marechal Rondon.
Volta e meia, preocupado, o profissional do volante costuma elevar o tom da voz quando alerta a netinha e outras crianças de sua prole familiar para os perigos mundanos. “Saia daí! Pode cair, menina!” A garotinha, de olhos azuis e cabelos lisos, acha graça do avô. Porém, obedece na hora…
O taxista também se revela bom contador de “causos”, muitos resgatados em experiências pessoais. Ao Enquanto bebericava cerveja num boteco do Novo Terceiro, ele espichou as gordas pernas de garrincha ao divagar acerca do próprio passado e da terrível vara de marmemo’ com que a mãe “educava” a todos.
Leve sorriso nos lábios espaçados e de vaga objetividade, Waldir relembrou o sufoco que era chegar atrasado em casa, pois a fina e dura vara de marmelo, sob o comando irritado da mãe, efetivamente cantava dores impiedosas nas ancas da turma familiar. Ainda “sente” a ardência da última surra…
– Minha mãe batia duro, forte, sem dó. E dizia sempre: e se chegar tarde, não entra! Vai dormir é na rua!
Waldir nunca duvidou dessas palavras…
CONFORME SUAS RECORDAÇÕES…
Um dia, ou melhor, uma noite (e sempre existem noites assim), ainda na flor de sua juventude em Cáceres, ele tomou todas e algumas mais, número de doses imprecisas, refletidas na ressaca brava do dia seguinte. Checou o relógio e viu que não adiantava voltar pra casa, pois o horário limite imposto pela mãe tinha sido ultrapassado. “Chegar pra apanhar não tem graça. Melhor é beber outras e passar o resto da noite na rua”, decidiu. No último boteco ainda aberto, comprou logo uma garrafa.
Por conta dessa desculpa, ele invernou de vez na cachaça, um gole atrás do outro. Waldir nem sentiu medo ao passar perto de uma figueira sombria das imediações, conhecida pela fama de mal-assombrada. Há quem jure que tudo quanto é fantasma montava sede de bagunça por lá. Passar por perto até que passou, meio desconfiado; mas nada viu. E continuou tomando outros bons goles da “marvada”…
Eis que, horas após, o álcool subiu de vez, e os sentidos de Waldir foram seriamente alterados. Percebeu, apesar do álcool excessivo , que fazia um frio insuportável, motivo pelo qual resolveu continuar andando, sem parar. E assim foi tateando o resto de forças apoiado em muros de uma rua deserta até um portão aberto, por onde entrou. Nem percebeu que era cemitério…
Chapado, soluços de bêbado em evolução progressiva, o futuro taxista circulou entre os túmulos com a desenvoltura cambaleante de quem anda num fio de arame. O olhar enevoado captou a imagem perdida de um pequeno cômodo, espécie de quartinho, na realidade a capela velório daquele cemitério. Lugar excelente para se acomodar e tentar se proteger do frio, concluiu o bebum, apressando os passos incertos à pequena portinha da capela.
Waldir adentrou cabreiro na salinha, pois temia a presença de animais peçonhentos no lugar. Mas o maldito sono o importunava, e já batia fraqueza nas pernas. Dormir, em resumo, era o mais importante…
Após visualizar, meio na penumbra interior, um banco de cimento gelado, Waldir acocorou-se que nem um feto, na tentativa de minimizar as agruras do frio. Um vento gelado continuava a entrar pela janela quebrada, que emoldurava céu estrelado, lua minguante…
Antes de conciliar no sono, o boêmio conseguiu ver também uma espécie de mesa triangular no centro da sala, utilizada para acomodação de urnas funerárias. Bêbado, não imaginou o que fosse aquilo, até tentando acomodar seu corpanzil ali, mas não deu certo. Retornou ao banco ee dormiu profundamente…
Duplamente anestesiado pelo álcool, o andarilho noturno aniquilou de vez qualquer pensamento racional, e sonhou que estava num lugar maravilhosamente acolhedor. O sono pesado ainda trouxe indiferença ao frio madrugador que imperava naquele recinto macabro…
Aquele cemitério era humilde, quase abandonado, e tampouco tinha vigia noturno. Assim, Waldir só foi acordar ao amanhecer, sobressaltado pelo canto da passarinhada faminta em bosque próximo. De início, ele olhou meio inquiridor para os lados, tentando se situar; finalmente percebeu estar numa sala velório, nos fundos do velho cemitério local. Justo o mesmo que a meninada passava longe, com medo de defunto.
– Foi só cair em mim e dei no pé rápido, pra bem longe dali! – relembra, divertindo-se com suas lembranças.
A bem da verdade, naquela hora de bebedeira, ele disse nem ter percebido que o lugar onde havia dormido era destinado aos falecidos. “Morto não faz mal a ninguém, não! Quem já foi embora, é sabido, não volta… Agora, se é com gente viva, então não dá pra confiar”.
Mais uma vez, conforme Waldir previra, a mãe o aguardava irritada ao extremo, vara de marmelo nas mãos. E a varinha cantou feio nas ancas magras – hoje reconchudas – do bebum cacerense. Sua mãe, decididamente, não perdoava desobediências, rememora sem rancor…
– Ela bateu pra valer, sem piedade, raiva armazenada. Aquilo doeu tanto! Depois, mais calma, fez uma macarronada com frango e queria nos forçar a comer. Porém, eu não quis, pois ardia de febre, não por causa da surra. Talvez fosse pelo susto de ter dormido dentro do cemitério, ou pelo frio miserável do lugar, quase igual geladeira sem tampa. Só parei de tremer quando o sono me venceu…
São lembranças que despertam no eloquente taxista um sorriso maroto, resgatado de sua traquinagem adolescente, torna-se evidente.
Waldir é um sonhador de seu passado feliz, de muitas travessuras. Evidentemente que gosta de torpedear os registros da memória, agora adulta, já cansada das imposições de luta da vida. Ou talvez por perceber que aquela fase se desintegrou na sequência dos anos percorridos. Desconfio mais, observando-o atentamente: seus olhos cintilam lágrimas disfarçadas ao discorrer sobre suas aventuras cacerenses, saudades emotivas…