Peguei carona num ônibus-fantasma…

FINAL

Conforme disse anteriormente, Parte 01, após longa espera noturna pelo coletivo que me levaria ao Morada do Parque, residencial periférico de Montes Claros-MG, concluí que o “Curiango” talvez já tivesse passado. Nem meio tempo, a madrugada junina avançava sem modéstia, encorpando temperatura gélida…

Resta acrescentar que o “Curiango” também é conhecido por “Corujão”, pelo fato de serem os últimos coletivos públicos a circularem nas primeiras horas da madrugada.

POIS BEM: depois de conferir novamente meu relógio, percebi um vulto quadrilátero se agigantando logo abaixo, na curva da avenida. Mesmo silencioso, subiu rápido a rampa inicial da Cula Mangabeira, piscando brilhante alerta para encostar no meu ponto.

Que alívio! O “Curiango” estava atrasado, mas iria cumprir seu derradeiro itinerário! – palavras íntimas de comemoração.

O ônibus, fosse hoje, poderia ser confundido com um veículo elétrico, motor completamente silencioso e… escuro. As únicas luzes acesas procediam dos piscas. Lá dentro, breu total!

As portas foram abertas e subi os degraus meio vacilante, principalmente por ter notado que o coletivo estava descaraterizado, sem o emblema da empresa de transporte.

Quis ser simpático ao cumprimentar o motorista e cobrador, mas somente uma figura difusa humana estava ao volante, estaticamente silenciosa. Pelo visto, não tinha cobrador nem passagem giratória de cobrança de tarifas.

– Tenho o dinheiro… – comentei sem-graça, tentando também compreender tudo aquilo. O motorista não queria conversa, óbvio…

O ônibus começou então a se movimentar ágil pela avenida, e não tardou que visse as luzes do Morada do Parque me cumprimentando além da Lagoa dos Patos, do Parque Municipal Milton Prates.

Ainda em pé, não senti cansaço algum, mais ansioso em descer do que ficar ali dentro.

Procurei pelo capô do motor, outro detalhe inexistente naquele ônibus. E, por mais que forçasse, não consegui ver o rosto do motorista, sempre ensombrado. Ou “mal-assombrado”, sei lá…

Independente do espectro ao volante ser mudo, bem esquisito, ele dirigia bem. O veículo empreendeu curvas perfeitas, contornando seguro o trevo da Avenida Mestra Fininha, tudo sem sem perder o ritmo de marcha. Estávamos chegando…

Abrigados no antigo zoológico do Parque Municipal, alguns animais emitiam grunhidos incompreensíveis, possivelmente resultantes de sonhos inocentes; ou, outra suposição, de insônia rebuscada em galhos de árvores e nas casinhas de tijolos vazados, construídas pelos humanos. O homem imagina entender o bem-estar dos bichos…

Esse vozerio sonolento não encontrou resistência para circular à vontade pelo interior do ônibus. Pois, apesar de se movimentar continuamente, o único barulho captado lá dentro se limitou ao farfalhar contínuo do vento madrugador. A impressão era de açoite impiedoso na estrutura metálica do veículo…

Ainda prospectei que aquele quadrilátero gigante se assemelhava a um cadáver, tal a gelidez de tudo que toquei para não me desequilibrar durante o trajeto. Interessante não ter desejado ocupar nenhum dos assentos…

Passamos bem rente ao imponente sobrado construído pelo amigo Juscelino Moreira, meu ex-colega no Banco de Crédito Real de Montes Claros. Cada janela dos vários cômodos da suntuosa casa dormia em sono plácido.

Tinha por mim que aquele casarão tinha mais habitantes do que a família do nobre amigo Juscelino; moradores invisíveis…

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O ônibus parou e abriu a porta dianteira; a próxima parada seria na praça do Morada do Parque, sabia, mais algumas quadras acima. Sinalizei disposição de pagar a viagem, puxando prontamente a carteira. Guardei-a ao ver o motorista gesticular rápido com as mãos abertas, recusando.

Desci atônito, porém agradecido pela carona em momento tão providencial. Também desejei boa noite, votos extensivos à família do condutor misterioso.

Frustrou-me notar que minhas gentis palavras foram possivelmente decapitadas no calabouço da noite, sem chegar aos ouvidos do motorista, se é que tinha algum: o brusco cerrar da porta, seguindo-se célere movimentação do veículo, deram o caso por encerrado.

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Que bom retornar ao lar!, fui pensando enquanto caminhava devagar para vencer as poucas dezenas de metros até à confluência da antiga Avenida A.  Não havia mais motivo para pressa: afinal, chegara ao meu destino!

O ônibus subira por ali pouco antes, passando ao lado do nosso sobradinho. Quando embarcado, cheguei a pensar em pedir ao motorista para parar nesse lugar, mas sequer consegui ver o seu semblante, ouvir sua voz. Melhor desistir…

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ALGUMAS pessoas cantarolavam em frente do portão de casa, acomodadas no passeio. Pararam ao me ver, e um deles se levantou. Reconheci meu mano caçula, Marcelo. Ele perguntou se tinha vindo a pé do centro, ao que neguei, falando da carona no ônibus escuro.

– Por aqui não passou nenhum ônibus – disse. E reiterei que tinha subido rumo à praça, minutos antes.

– Pelos meus cálculos, pode estar descendo agora… – comentário de reforço. Os rapazes me olharam céticos, contendo risos.

– Vamos lá na praça tirar isso a limpo! Não vimos nenhum ônibus passar por aqui há horas, João! – comentou Pedro Hermano.

Todos subimos até à praça, momento em que me senti o Rei da Cocada Preta por estar tendo oportunidade de provar o que dizia àquele bando de sem-que-fazer. Ledo engano..

Na praça, bocejando ao falar, o guarda disse que o último coletivo estacionou ali antes da meia-noite.

– Hoje não teve “Curiango”, rapazes: os motoristas avisaram que iriam recolher mais cedo. Tem estudante que veio de táxi pra cá; vi muitos passando depois da meia-noite.

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Aí é que não fui acreditado mesmo: durante dias, meu mano e seus colegas me azucrinaram a paciência zombeteiramente ao indagar se não experimentara “alguma coisa diferente” (maconha) pra inventar uma historinha tão inconsistente e ridícula.

Outro detalhe {nem levado em conta por eles}: o tempo gasto entre meu embarque na Avenida Cula Mangabeira e o Morada do Parque é o mesmo registrado pelos motoristas nessa linha. Portanto, Não sonhei nem andei; só viajei num ônibus-fantasma!

João Carlos de Queiroz, jornalista