Durante décadas, principalmente entre os anos 60 e 80, o lendário trem azul da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima – R.F.F.S.A. cruzou o sertão árido do Norte de Minas Gerais rumo a Montes Claros, ainda hoje a maior cidade daquela região. Dali, a composição ferroviária seguia apinhada de retirantes e outros passageiros rumo a Belo Horizonte, capital mineira. A maioria seguia viagem então até São Paulo, imponente metrópole paulista. Já naquela época, SP convergia maciço interesse esperançoso de uma vida melhor, atraindo pessoas de várias partes do país.
A breve parada do trem azul em Montes Claros era apenas para engatar mais vagões (poltrona-leito, leito, restaurante). A partida acontecia geralmente no final da tarde, mas ocorria de os horários serem alternados para o período noturno, dependendo da época do ano.
O mais interessante era que o trem azul fez fama geral no Brasil inteiro justamente pelo conforto oferecido nos vagões poltrona-leito e leito, além das refeições servidas a bordo. Agora, já na terceira classe, vagões de madeira marrom escuro, o visual de desconforto denotava miséria absoluta. O próprio odor ambiente reforçava isso (suor, comida, vômito, etc…).
Na época em que viajava, perambulei muito pela terceira classe, observando surpreso os incríveis sorrisos desses viajantes aventureiros. Semblantes sofridos que tentavam apaziguar dúvidas acerca do imprevisível futuro. Na bagagem, eles levavam o mínimo do pouco acumulado durante toda a vida; vários pertences foram deixados pra trás em algum lugar seco do sertão. O choro intempestivo de crianças famintas complementava aquele quadro deprimente…
Mas também gostava de ficar na quase varanda do trem, no último vagão, lugar em que apreciava o deslizar incerto dos trilhos à retaguarda, ora em curva ou em retas monótonas. Se desse um passo à frente, era morte certa…
Sentia-me também feliz – e um tanto quanto poderoso – quando o trem passava sem parar por alguma estação, matraqueando forte nas instalações desérticas do imóvel. Vez ou outra ocorria de a plataforma dessas estações estar ocupada por curiosos. Serenamente postado na varanda, acenava calorosas despedidas para as pessoas perfiladas no retilíneo espaço. Muitos retribuíam tais acenos, gesto entendido como uma “boa viagem”. Logo a estação solitária {e os eventuais vultos presentes} sumiam para ceder lugar novamente ao corredor móvel de trilhos…
São lembranças reavivadas pela memória saudosista. Hoje, sinto-me triste ao comprovar que pouco existe daquilo que vivenciei prazerosamente tão de perto. A velha estação de Pires e Albuquerque, por exemplo, antigo distrito bocaiuvense, atual Alto Belo, município, foi demolida e engolfada por matagal denso há muitos anos. Mas ainda recordo quando parávamos por lá de madrugadinha, ao retornar de Belo Horizonte. O chiado metálico dos freios nas rodas de aço e solavancos do trem azul acordavam todo mundo. Sabia que mais gente iria embarcar…
No aconchego do vagão leito, eu espiava o vai e vem de passageiros e pessoas que se despediam afoitamente de parentes e amigos. A proximidade do meu hálito na janela embaçava o vidro, e não poucas vezes afastei-me rápido depois que alguém desferiu pancadas sacanas ali. O típico “acordem, preguiçosos!”
Nessas horas, era fato, ninguém estava refestelado na exígua “varanda” do último vagão, em decorrência do frio insuportável da madrugada. Não demorava e o buzinaço do trem anunciava a retomada da marcha para cumprir nova etapa matraqueadora até Montes Claros. Aí, criança curiosa e com sentimento vitorioso, eu voltava a colar o rosto à janela umedecida de orvalho; espécie de troféu vitorioso por sair de um lugar em que nem todos foram receptivos à nossa presença fugaz…
João Carlos de Queiroz