Ainda que o título acima não tenha qualquer fundamento, causando imediata estranheza, ele procede quando se fala no Cemitério da Consolação, em Belo Horizonte. Porque, conforme foi amplamente divulgado há anos atrás, a construção do Campo Santo, na saída para Confins, acarretou impasse judicial. É que um chacareiro, antigo morador daquela área, simplesmente se recusou a sair dali, passando a conviver entre os mortos.
E enquanto o processo de desocupação do terreno não foi concluso, o matuto simplesmente ignorou o entra e sai de defuntos destinados às covas, situadas ao redor de sua humilde casinha.
O Cemitério da Consolação, aliás, passa despercebido à primeira vista, aparentando ser área verde comum, enfronhada na periferia da capital. Muitas árvores e um imenso gramado acobertam o lado tenebroso do imenso espaço funerário. No âmbito imobiliário, esse empreendimento representou ineditismo, atraindo grande clientela…
O fato é que o chacareiro em questão, já ressabiado pela insistência da imobiliária em abrir mão do seu doce-lar, a fim de o terreno sediar mais sepulturas, bateu martelo de “daqui-não-saio/daqui-ninguém-me-tira”. Recordo que a imprensa local ainda noticiou esse imbróglio por bom período. Pelo andar da carruagem, ausência de novas informações, parece ter sido resolvido.
Enfim, alguém que acaso esteja agora tendo a santa paciência de ler minhas asneiras, haverá de perguntar impaciente: – E onde entra a história do churrasco, afinal? Explico…
Meses após sua inauguração do referido cemitério, quando contava apenas com poucos ‘moradores perpétuos’, o Cemitério da Consolação foi ganhando gradual notoriedade pelas condições diferenciadas que apresentava. Os mineiros ficavam impressionados em acomodar seus queridos em tumbas adornadas por muito verde silvestre, sem falar da profusão de aves e outros bichos, em cantoria de liberdade dia e noite.
Os enterros foram acontecendo normalmente desde então, e não tardou para que a antes solitária casinha do chacareiro ficasse cercada de covas. Mas, irredutível, nem assim ele abriu fuga, permanecendo no seu cantinho, à espera de decisão favorável da Justiça.
Por não ter outro lugar para morar, e ciente de que, se saísse dali, perderia seus direitos, o senhor dos mortos optou por tocar a vida sem se preocupar com a tétrica vizinhança. Até se acostumou a apreciar, da janela, as plaquinhas indicativas das novas sepulturas abertas próximas à genuína tapera.
Aos domingos, por ser homem chegado a curtir o final de semana de maneira mais especial, o chacareiro, que diziam ser gaúcho, preparava almoço caprichado. Os fuxiquentos churrascos esparravam fumaça branca e aroma de assado entre as sepulturas e parentes de quem acaso estivesse no ato de algum enterro.
Indiferente ao drama de dor das pessoas enlutadas, por vezes a metros de distância da tapera, o birrento morador das trevas mordiscava carne sem nenhuma cerimônia, observando interessado o andar dos rituais fúnebres.
– Ele está comendo o quê? – muitos se indagavam perplexos.
Realmente fugia à compreensão racional que alguém assasse carne dentro de cemitério. Pior: que saboreasse pedaços atento ao desce-cova de algum presunto rígido.
Outros, acidamente revoltados pelo que consideravam afronta ao morto em processo de despedida, respondiam:
– Deve ter aberto alguma sepultura e está devorando o cadáver!
O chacareiro não chegou a escutar nenhum desses comentários, lógico, sempre permanecendo na beira da cerca. Mais um defunto não iria interferir no seu cotidiano…
A estranheza geral era porque ele aceitou viver no miolo de um cemitério, lugar nitidamente impróprio para uma pessoa, em sã consciência, levar sua vida normalmente.
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Segundo comentei mais atrás, ignoro o dito chacareiro se ainda continua por lá, ou se passou a ser um dos habitantes da área, sete palmos abaixo. Ou se ganhou na Justiça o direito de ter uma casa melhor em outro lugar. Só sei que o Cemitério da Consolação se encontra hoje bem “povoado”.
Outro detalhe: ao passar por ali, rumo a Confins, suspeito também que alguma fumacinha branca em evolução no meio de tanto verde macabro não possa ser apenas queima de ossos dos inquilinos mais antigos, mas o relutante chacareiro em mais um preparativo de churrasco dominical…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista