Chica não está mais no quintal…

A mineira Maria Francisca Brandão {Chica} é portadora de transtornos mentais. Seu mundo é de visão inalcançável a muitos humanos...

Quando conheci a simpática Chica {Maria Francisca Brandão}, eu devia ter entre cinco a seis anos. Mesmo alienada parcialmente, em luta inconsciente contra irreversível transtorno mental, Chica nem falava se fosse questionada a respeito de algo .Óbvio não entender nada…

Levemente obesa, Chica se locomovia pelo quintal da casa das tias bocaiuvenses quase arrastando o corpo. Cansava-se facilmente, e não era raro vê-la apoiada no murinho da cisterna. Baldear água o dia todo consistia em sua missão terrena….

Esse quintal passou a ser também meu ponto de visitação predileta aos parentes paternos. Tinha lá meus motivos:  as tias Antoninha e Júlia me abasteciam profusamente com bolos e doces. “Pé de moleque” se constituía numa das especialidades da casa amarela.

– Só espere esfriar pra comer, menino. Senão, vai ter “caganeira” brava, avisavam as tias ao oferecer o suculento doce de amendoins. Melhor comer tudo bem quentinho…

Por consequência, conforme previam, geralmente terminava “atronado” no vaso sanitário.

– Quero mais papel higiênico, tia! Acabou! – gritava desesperado.

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Guloseimas à parte, voltava então a observar o cotidiano triste de Chica, moça adentrada em anos.

Em passos miúdos pelo quintal, Chica fingia não me ver, optando por manter os olhos baixos, atentos ao chão batido. Não havia nada interessante ali: acaso tivesse, ao varrê-lo Chica já teria descoberto.

Impressionava-me a manutenção do leve sorriso alienado de Chica, que tanto poderia ser de boas-vindas, de desconfiança, ou até mesmo de medo. Difícil precisar…

Para deixá-la mais à vontade, pois ali era seu mundo, eu descia as escadas de acesso ao quintal sem pressa, explicitando mensagem de “estou visitando você, Chica”.

Mal me via, Chica já ia andando para o lado oposto do quintal, “gesto de quero ficar sozinha…”

Logo nas primeiras visitas ao quintal, descobri o porquê de Chica manter olhar continuamente temeroso à portinha da cozinha: quatro a cinco vezes ao dia, tia Antoninha surgia impaciente no alto da escada, pedindo água.

A pobrezinha saía então rápido para cumprir as ordens da patroa, jogando o balde vazio na cisterna. Ele estatelava eco tenebroso ao colidir nas águas geladas do poço…

Tranquila, tia Júlia observava tudo de uma das janelas laterais, porém sem comentar nada. Nem era preciso: seu olhar reprovador, ancorado em mais de 70 anos, dizia tudo. Nunca a vi destratar Chica…

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Alçar baldes da cisterna exigia muito da infeliz Chica: momentos em que parava de sorrir sem-graça, para concentrar forças no giro firme da manivela de corda. À medida que se aproximava da borda, o balde ficava mais pesado.

– Ande, Chica, preciso da água! – gritava tia Antoninha, postada em frente à portinha da cozinha.

Ainda bem que nenhum balde caiu ao ser entregue à ranzinza tia…

Missão cumprida, resfolegando sem parar, Chica voltava conformada à eterna vigília de quintal. Não tardaria a ser chamada novamente. Foi ruim imaginá-la adoentada e carregando tantos baldes…

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Na minha segunda visita às tias, descobri o quartinho de Chica, um autêntico “Lar Amargo” incrustado num dos compartimentos do porão da casa. Ambiente que ela cuidava zelosamente, imprimindo enérgicas vassouradas na soleira da porta e no seu interior.

Imaginei a quantidade de mosquitos, morcegos e outros bichos que deviam habitar aquele lugar, perseguindo-a noite e dia. Sem falar nas assombrações…

Aquele quartinho, que não conheci na intimidade, reservava certamente algum segredo, haja visto que a humilde serviçal não desgrudava de sua horrorosa chave.

Afixada na cintura, por barbante surrado, a chave bamboleava livremente a cada movimento penoso de Chica pelo quintal do seu mundo…

ENQUANTO visitei as amadas tias, hoje em nova morada espiritual, jamais vi Chica sair desse quintal. Nem para ir à Igreja Senhor do Bonfim; templo localizado a dois quarteirões

Já as tias, marcavam ponto beato nessa igreja todo santo dia, auxiliando na decoração do altar e nos preparativos das tradicionais festas religiosas da Paróquia.

Ao dirigir-se à igreja, tias Júlia e Antoninha levavam flores para o altar, colhidas no próprio jardim da casa. Sempre marchavam lado a lado, em sincronia perfeita, denotando estilo de guerreiras de Deus.

Os cabelos pretos de tia Antoninha se sobressaíam altivos, sob alvíssimo véu branco; tia Júlia preferiu não tingir os seus, mantendo-os naturais, brancos e brilhantes, que nem fios de prata.

Anos depois, tia Antoninha permitiu que a idade finalmente revelasse a original onda intempestiva de brancura capilar camuflada por anos e anos. Só não perdeu seu costumeiro tom altivo…

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Recordo, inclusive, da revolta de tia Antoninha quando o tablado do altar da velha Igreja do Senhor do Bonfim cedeu repentinamente, durante uma missa. Houve quem pensasse que o sacerdote tivesse sido engolido por força maligna…

De há muito tia Antoninha bradava a necessidade de ser construída uma nova igreja. O tombo do religioso foi aviso providencial de que ela estava certa. Não demorou e a cidade ganhou templo moderno, construído no mesmo lugar.

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A nova igreja não mudou em nada o reduto isolado vivenciado por Chica. A serviçal nem soube disso, na verdade, e sequenciou o fornecimento de baldes e mais baldes d’água a partir das primeiras horas da manhã…

Mais anos transcorreram, e adentrei na pré-adolescência, aguçando algum entendimento sobre as coisas certas e erradas. Época em que percebi a infelicidade latente de Chica naquela vidinha miserável, sem sentido algum.

Intensifiquei frustrantes tentativas de diálogo com Chica, condoído de sua triste situação. Vê-la tão amável, servindo as tias, me comoveu profundamente. Seus olhos castanhos resplandeciam inocência gritante, sem emitir pedido de socorro natural…

Não sei por que, nunca ousei mencionar minhas conclusões dessa injustiça em curso com a intempestiva tia Antoninha. Ela impunha não apenas respeito, mas medo…

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CHICA ainda vive, mas numa condição bem melhor, após a morte das tias. Ela foi acolhida por uma das sobrinhas das tias beatas, e é respeitada pelas suas limitadas condições físicas e mentais.

Cheguei a vê-la alguns anos atrás, numa das visitas aos parentes bocaiuvenses, mas certamente não me reconheceu, limitando-se a exibir os triviais sorrisos distantes….

Imagino que Chica talvez tenha pesadelos constantes com tia Antoninha, exigindo que ela vá buscar baldes e mais baldes d’água. Impossível deletar uma rotina de décadas…

É por isso que, mal amanhece o dia, Chica já está sentada atentamente na cama, guardando ordens. E aceita, retraída, o café da manhã que lhe oferecem, postando-se, depois, no vão da porta do quarto. Vai que tia Antoninha chama…

Por João Carlos de Queiro, jornalista