O veterinário Licínio trabalha numa clínica do centro da capital mato-grossense, a conceituada São Bernardo, onde divide funções com os competentes colegas médicos Cristina e José Antônio. Mas, nos finais de semana, seu “hobby” é montar a cavalo e percorrer as trilhas de uma pequena fazenda que possui no miolo do Pantanal, perto de Barão de Melgaço, cidade considerada “porta pantaneira”.
Pois bem: Licínio, já perto dos seus 80 anos, porém com lucidez a pleno, afirma não acreditar em nada que não possa ser explicado racionalmente. Isso inclui fantasmas, lendas que o povo do Pantanal cultiva de forma temida. Enfático, sempre diz: “Fantasma é pra quem tem medo do nada. Pois não existe alma penada, é tudo bobagem”.
Por pensar assim, sua fama de fazendeiro corajoso, meio ermitão, ganhou notoriedade entre colegas veterinários e os de campo pantaneiro. Licínio costuma alardear que, “pra ter um bom descanso”, ele prefere dormir sozinho na velha sede da fazenda. Não sem desafiar os espectros noturnos a lhe fazer companhia. Pois não é que deu certo?
Tudo aconteceu num final de semana, quando o simpático veterinário resfolegava cansaço viajante na velha rede instalada próxima à cozinha. Na quietude silenciosa da noite, posto que ainda havia escuridão pela frente, Licínio acordou sedento. O pote d’água, ao lado, foi alcançado fácil, enchendo a caneca. O glut-glut seguido, ávido, denunciou o novo destino do líquido da vida, goela abaixo de um sujeito sonolento. Licínio repetiu a dose d’água e voltou a se acomodar na rede, que, em poucos minutos, ficou completamente imóvel. De repente…
– Eu já estava quase no embalo de mais um soninho gostoso. Só estranhei que alguém – quem? – deu um baita empurrão na rede, praticamente me lançando de encontro à parede da sala. “Ué, querem me matar, é?” – questionei sem medo, coisa que nunca tive. Aí, aconteceu novo empurrão, desta vez mais forte, a ponto de meu pé esquerdo ficar espremido entre a rede e a parede. Parece que fiquei colado ali uns segundos, não sei…
Mais aborrecido pelo incômodo {que o privara de dormir] do que, propriamente, por justificado medo, Licínio conta ter praguejado alto. “Vá atentar outro, sô! Aqui não tem nada pra você. Nem eu estou com medo, está é perdendo seu tempo!”
O empurrador fantasma da rede deve ter entendido bem tal recado, relembra. “Parou de balançar subitamente. Antes que pudesse comemorar o sossego, eis que tudo começou novamente, desta vez de jeito suave, como se uma criança pequena estivesse ali, do meu lado. “Assim tudo bem, pode balançar… Vou até dormir com esse ninar mudo”, ele conta ter dito bem-humorado. Tinha convicção de que teria uma bela noite de sono. “A viagem à fazenda e minhas andanças a cavalo pelas redondezas, a bem da verdade, minaram minha resistência. Queria dormir, precisava dormir”.
Essa normalidade {de balanço moderado da rede} prosseguiu por mais meia hora, recorda o médico. De fato, alo intrigante, que fugia à “normalidade” de outras pernoites fazendeiras:
“Desconfiado, perdi o sono de vez e resolvi ir preparar um café forte. Ao checar as horas no relógio, que deixei na cômoda do quarto, vi que eram quase três da madrugada. Levando a caneca de café, saí à varanda para tomar ar-fresco, acomodando-me no banco de jacarandá. Talvez até dormisse no lugar, estava bom… De lá, pude descortinar todo o quintal, naquela noite bem iluminado pela lua cheia. Dei umas boas goladas no café quentinho, que, graças a Deus, nunca me tirou o sono. Foi quando percebi algo se movimentando rápido, perto da cancela frontal…
O vulto – descreve – parecia arisco, e empreendeu movimento ágil rumo ao paiol/galinheiro, a menos de 10 metros da varanda. “Aquilo, sim, me intrigou: era gente viva, capaz de fazer algum mal, não assombração. Voltei rápido ao interior da casa, decidido a ir averiguar a “coisa”, devidamente armado. Fazia tempo que minha velha espingarda não resfolegava chumbo. Fosse o que fosse, agora estava preparado. Se reagisse… Poderia ser ladrão de galinhas, ou criminoso veterano; mas, estranho, as galinhas, sempre em alerta, nem emitiram o menor sinal, hibernadas em sono plácido”.
Antes que Licínio chegasse à porta do paiol, que mantinha aberta, ele presenciou uma luz azulada varrendo o interior do abrigo de aves e ração, formado por troncos trançados. A luz rodopiava por todos os cantos, e quase atropelou o médico ao disparar feito rojão, mata adentro. “Luz?! Não entendi bulufas! Antes era vulto, não luz. E o sujeito, o do vulto, devia estar ainda lá dentro. Talvez tivesse improvisado aquela luz só pra me despistar”. Enquanto pensava assim, Licínio direcionava o foco da lanterna dentro do paiol, a fim de dizimar a escuridão interna. As primeiras galinhas finalmente cacarejaram pios sonolentos, seguindo-se esporádico farfalhar de asas. “Ué, agora é que eu não entendi mais nada! Então o sujeito entra no paiol, acende luz e elas (aves) nem acordam. No entanto, basta eu chegar de mansinho pra isso acontecer…” – matutou.
Licínio não entendeu também como alguém podia desaparecer tão rápido, visto que sua lanterna “varreu” cada centímetro do paiol. O suficiente para duas galinhas voarem nervosas, em fuga desabalada para o pátio. “Calminha aí crianças, não é dia, ainda”, divertiu-se ele, já imaginando que o vulto poderia ser mesmo coisa de sua imaginação. “Fantasmas não existem”, reprisou mentalmente. Não era imaginação, constatou o médico ao retornar à casa e ver o sinistro vulto agora sentado a menos de 20 metros na rede da varanda. Não ficou ali muito tempo, adentrando rápido na casa quando percebeu que ele se aproximava.
“Hum… Quer fugir de mim. Mas é homem, e grande, dá pra ver daqui. Vai é levar chumbo, não tem jeito! O que quer de mim a essas horas? E deve saber que estou sozinho na fazenda…”
Licínio, apesar de armado, hesitou em entrar na casa. Aquela não foi uma boa noite para ele na tranquila fazendola, teve que admitir depois para os amigos a quem relatou o episódio.
Armando-se de coragem, ele subiu os degraus da varanda e desferiu potente chute na porta principal da casa, já com a lanterna fazendo seu trabalho costumeiro de verificação. Nada na sala de estar, cozinha e na despensa, ao lado. Faltava checar o quarto, nunca usado para dormir, pois havia anos que a rede substituira a velha cama de solteiro.
– Resolvi ir lá,sim! Sou homem ou quá? – pergunta que fiz a mim mesmo. Também chutei a porta do quarto, prevendo que alguém sairia dali correndo, assustado. Um fazendeiro e sua espingarda formam uma dupla sinistra, hão de concordar. Não me sinto à vontade com alguém do campo armado a meu lado. Surpreso, constatei que o quarto também estava vazio, ocupado apenas por uma cama e cadeira. Nem tinha janela, o que seria explicação para o sumiço repentino daquele vulto andarilho e intruso. Enfim, nunca saberei quem era, ou o que queria, de fato…
Hoje, ao recordar esse apuro madrugador, Licínio reconhece que, naquela noite, teve medo de fantasmas pela primeira vez. “Se pôde empurrar minha rede, quase me esmagando na parede, podia me fazer algum mal maior. Achei por bem passar o resto da noite na varanda, de olhos bem abertos e com a espingarda no colo. Ainda bem que não vi mais vulto nenhum e tampouco alguém ousou vir empurrar minha rede novamente” – concluiu o corajoso veterinário. E fez questão de afirmar que continua dormindo sozinho na fazenda até hoje. “Só não vi mais nada, além de barulho de colher na canela de café. Fui ver e era uma barata filando o restinho de doce do guaraná ralado que sempre tomo antes do jantar”.
(João Carlos de Queiroz)