FINAL
Manoel da Onça sentiu que a cachaça excessiva fizera efeito além do imaginado: as pernas bambas não faziam parte dos seus planos. E assim saiu da casa de Feliciano decidido a subir o beco que levava à sua humilde tapera, perto da estação ferroviária.
– Apruma o corpo por aqui mesmo, homem! Tem lugar de sobra no quarto maior; cama, redes… – convidou Jair de Viana ao observar seus passos trôpegos.
– Não, não, tudo bem… Dá pra chegar em casa. Vou andando devagar… – respondeu.
Feliciano Souza endossou o convite do amigo Jair de Viana, salientando que, talvez, a casinha de Manoel da Onça não estivesse muito propícia para recebê-lo após tantos anos desabitada.
– Sua prima Lourdes realmente sempre vai lá com frequência. Resta saber se você vai encontrar lá as coisas que precisa. Casa sem gente falta tudo! Nem deve ter roupa de cama e água potável.
Feliciano aguardou uma posição do pinguço, mas ele ficou quieto, denotando disposição de subir o beco.
– Luz, já adianto, Manoel, não tem. Mas, se quiser, fique conosco. Arrumo acomodação pra você no quarto de Jair. É mais tranquilo…
O simpático anfitrião tentava agradá-lo, percebeu Manoel da Onça ao refutar esse convite amavelmente.
– Não, tudo bem… Vou dormir por lá mesmo… Amanhã cedo já arrumo o que estiver faltando…
Ele se despediu com voz pastosa e saiu arrastando passos de quem não podia chegar muito longe..
– Parece que perdeu o costume da pinga – comentou Jair.
– É, ele trincou o corpo feio nessas talagadas. Nem sei se vai conseguir subir aquele beco… – respondeu Jair, já entoando novas dedilhadas sertanejas.
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Manoel da Onça subiu o beco ofegante, sentindo o hálito frio da madrugada. Pires inteira parecia coberta por um fino lençol de neve. Foi quando escutou choro intempestivo de bebê mais acima…
À medida que se aproximava do fim do beco, o choro aumentou de volume. Pelo visto, pedido de socorro de bebê…
O ex-capataz percebeu que o choro provinha da casa de um velho conhecido seu, o alfaiate Vicente. O confecciona-roupas se tornou famoso em Pires por virar lobisomem, na época de Quaresma. Pelo que ele sabia, o pálido e esquelético Vicente não se casara; novidade, então, aquele choro de criança…
MANOEL sacou da lanterna que sempre levava na mochila de viagem, e aproximou-se sorrateiro de um dos janelões da casa de Vicente, justamente de onde o choro partia.
Janela aberta, o foco da lanterna desfez a escuridão e deixou em evidência uma criança grotesca no berço, bracinhos cabeludos. Pelo tom do enxoval, rosa, era menina.
Ainda sem atentar que pudesse se tratar de uma bebê-lobisomem, Manoel direcionou o facho diretamente no rosto da criança, que teve reação horripilante.
– Ela se levantou rápido no berço e escancarou enormes dentes caninos, idênticos à de qualquer lobo. Antes que pudesse evitar, ficou me encarando, de modo desafiador. Tive medo de que voasse em minha direção, e prudentemente resolvi me afastar – conta.
Ao sair da janela, disposto a vazar do quintal do alfaiate, ele escutou folhas e galhos sendo esmigalhados por algo pesado. Escondeu-se atrás da caixa d’água, de onde pôde ver uma loba imensa se aproximando da porta principal da casa.
– Ela veio em passos sincronizados, e de vez em quando se levantava, mantendo-se equilibrada apenas nas duas pernas. Farejou o ar diversas vezes, sem dúvida desconfiada de alguma presença na área. Um alívio vê-la girar a fechadura e entrar na casa, momento em que a criança berrona parou de chorar. A mãe havia chegado…
Ao relembrar esse susto, Manoel disse que nem pensou duas vezes em retornar à casa de Feliciano, temeroso de ser atacado pela lobisomem se acaso pernoitasse na sua casa, não distante dali.
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– Manoel voltou, Jair! Quer é esticar uma moda de viola conosco! – cumprimentou Feliciano.
No fundo, o agente de Saúde logo desconfiou que alguma coisa aconteceu lá em cima, na retaguarda da estação ferroviária.
Manoel da Onça relatou o sucedido, os apuros que vivenciou minutos atrás.
– Isso aconteceu na casa do alfaiate Vicente, Feliciano, eu vi tudo bem de pertinho: a bebê-lobisomem tem braços peludos, é bem graúda, além de esperta.
– Creio que o amigo bebeu um pouco além da conta, e aí a imaginação comanda tudo – disse Feliciano. Logicamente, não acreditou em nada.
Jair de Viana assuntou calado a princípio, e também fez pouco caso, atribuindo essa visagem de lobisomens aos efeitos da pinga.
– Isso deixou de existir em Pires, amigo. Eu já persegui muitos lobisomens há décadas, mas eles sumiram de vez.
O maior detalhe, confirmado por Jair e Feliciano, é que não reside mais ninguém na casa do alfaiate Vicente.
– Esse sujeito sumiu do mapa há um tempão. De fato, desembarcou com mulher esquisita do trem, sujeita que nem saía de dia, apenas de madrugada. Quem encontrou com ela não teve boa impressão. A casa deles se encontra abandonada; pode comprovar quando subir lá hoje.
João Carlos de Queiroz