(SEGUNDA PARTE)Bebê lobisomem é a nova atração em Pires…

Depois de desembarcar do Trem Azul acompanhado de uma mulher pra lá de estranha, o alfaiate Vicente {famoso em Pires por se transformar em lobisomem durante a Quaresma} agora é pai...

Pires e Albuquerque, anos 60 – O pacato distrito bocaiuvense, que há décadas suspira por emancipação política e administrativa, “deu à luz” a uma bebê lobisomem. Pelo menos é a voz corrente do povo local…

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Mal o sol raiou, Manoel da Onça desembarcou do Trem Azul na pequena estação de Pires e Albuquerque. Nada mudara muito por ali, foi sua impressão inicial. Olhou ao redor passivamente, tentando encontrar conhecidos, mas só viu gente estranha.

Alguns o olharam igualmente curiosos, associando-o, certamente,a mais um turista em trânsito pela localidade, talvez desejoso de informações. Não era bem assim…

Manoel da Onça é filho natural de Pires, lugar onde residiu por décadas. Trabalhou de sol a sol na fazenda de Leônidas do Carmo, tido como coronel rígido, detentor de costumes dos tempos coloniais.

Mesmo com espaço garantido de capataz, e até mesmo bom salário, Manoel da Onça quis ir embora ao sentir os calos da vida cutucando seus pés. Nem o enérgico patrão entendeu tal decisão.

Decidido a partir, eles pediu contas e, ao anoitecer, lá estava de prontidão com sua única maleta, no terminal ferroviário. Ouvir o Trem Azul se aproximando, procedente de Montes Claros, significava novidades na sua simplória existência, a partir dali…

O vaqueiro nem fincou bases em Belo Horizonte, reembarcando no mesmo dia para São Paulo. De há muito ouvira falar das belezas da capital paulista, e de quantos se deram bem por lá…

SÃO PAULO foi interessante enquanto durou, tempos em que Manoel da Onça ganhou bom dinheiro na construção civil e pôde pensar em retornar ao seu antigo torrão mineiro, Pires.

– Manoel, dos Céus! Você voltou, companheiro! – foi o único a reconhecê-lo nos quase 20 minutos em que estava parado na plataforma. Jair de Viana acabara de chegar ao distrito, e seu cavalo suado pedia água.

– É, voltei… O filho pródigo retorna à casa paterna – parafraseou provérbio bíblico.

Jair de Viana tinha os olhos brilhantes de satisfação, evidenciando franca alegria em rever seu velho amigo. Ele e Manoel da Onça aprontaram muitas no passado.

– Vamos “achegar” na casa de Feliciano Souza, que tem pinga boa nos esperando lá.

Manoel da Onça nem estranhou esse convite, pois o amigo costumava molhar a goela logo cedo. Mas foi educado ao rebater:

– Tudo bem, será ótimo. Mas, primeiro, quero tomar um bom café. Esse do trem estava amargo, intragável.

Ambos desceram à casa de Feliciano, àquela altura arranjando a tralha de agente de Saúde para ir até Camilo Prates.

– Você não se lembra dele, Feliciano, mas Manoel da Onça é chegado nosso. É gente boa aqui de Pires. “Tava” lá em São Paulo, e voltou hoje. Pelo jeito, pra ficar…

Feliciano coçou a longa barba que vem cultivando há meses, típica dos árabes, e cumprimentou o chegante.

– Fiquem à vontade, vou passar um café. Infelizmente, terei que ir a Camilo Prates a trabalho. Devo voltar à tardinha. Aí, podemos molhar a goela e mandar moda de viola, se não sei o amigo gosta…

Jair de Viana respondeu prontamente por Manoel da Onça, ainda sem meio-graça por invadir casa alheia logo às primeiras horas da manhã.

– Ah, se gosta! Manoel da Onça é violeiro danado que nem você, Feliciano!

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Segundo prometera, Feliciano só retornou de Camilo Prates no final da tarde. Jair de Viana proseava com seu amigo no alpendre da casa. Duas garrafas de cachaça vazia indicavam que eles iniciaram os “trabalhos” bem antes.

– Você demorou, Feliciano, nós começamos… – disse a título de cumprimento.

O agente de Saúde sorriu divertido, conhecedor da paixão de Jair de Viana por uma boa cachaça.

– Sem problema, sem problema… Dá só um tempinho para lavar a “inhaca” do corpo, pois andei pela região de Camilo Prates durante horas. Em seguida, farei companhia a vocês…

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Feliciano ressurgiu banhado e perfumado, com violão a tiracolo. E indagou qual música os amigos queriam ouvir. A festa começara na residência do bem-humorado rapaz…

Manoel da Onça também cantarolou e ensaiou tocar alguma coisa, porém estava bem enferrujado, Feliciano percebeu. Ele pediu disse estar desacostumado a tocar viola.

Mestre-cuca por excelência, Feliciano conseguiu a proeza de tocar, cantar e, ao mesmo tempo, preparar alguns quitutes para tirar o gosto da cachaça roceira.

– Essas piabinhas enganam o estômago e ajudam a pinga a descer mais fácil. Aguentem que o arroz com galinha vai sair. Mas vamos beber, gente!

Nessa de bebe uns goles e petisca piabas, a noite ganhou corpo adulto, e Pires e Albuquerque não tardou a adormecer para curtir a mesmice pacata.

Quem passasse ali por perto, sem forçar os ouvidos, ouvia facilmente o vozeirão de Feliciano entoando melodias sertanejas, em gritante batido de teclado. Zé Ramalho foi um dos compositores nordestinos lembrados pelo novo árabe…

Manoel da Onça sentiu-se feliz por ter voltado a Pires, e pediu licença pra subir até sua antiga casinha, perto da estação.

– Nem sei como ela está. Pedi a Lourdes, minha prima, para cuidar de tudo enquanto estivesse fora. Mas isso faz anos, nunca nos falamos mais depois disso…

– Olha, Manoel, vou dizer uma coisa: essa sua prima, Lourdes, é pessoa zelosa, pois cuidou direitinho do seu canto. O amigo tem dívida com ela – cutucou Jair de Viana.

Fim da primeira parte.

João Carlos de Queiroz