Anos 80: “imersão” jornalística na seca do Norte de Minas Gerais

Montes Claros – MG – Nos anos 80, então repórter do saudoso Jornal do Norte, fui incumbido de elaborar minuciosa reportagem sobre a seca impiedosa que assolava o Norte de Minas Gerais. Tratava-se de uma viagem longa, a partir de Montes Claros, entremeada por várias cidades: Capitão Enéas, Janaúba, Porteirinha, Mato Verde, Monte Azul e Espinosa, destino final. A próxima cidade era Guanambi, Bahia.

O fato é que a catastrófica aridez dos campos gerou debandada progressiva de sitiantes em todo o Vale do Jequitinhonha, gerando fome e desespero em milhares de famílias. Muitas sobreviviam à custa de raízes, lagartos, cobras e outros bichos que eventualmente buscavam algo nos campos ressequidos para comer.

O quadro, em geral, sinalizava fim dos tempos, com dezenas de esqueletos bovinos prostrados no solo quebradiço e sem nenhuma vegetação verde, somente galhos ressequidos. Esses animais tombaram antes de serem sacrificados em matadouros clandestinos e frigoríficos…

Com todo esse rito letárgico de seca, crianças esqueléticas ainda insistiam em ser felizes, imprimindo algazarra num alegre pega-pega poeirento ao redor das casas. Ao vê-las tão magrinhas, e ainda assim cheias de energia para brincar, imaginava quando teria sido a última refeição daqueles inocentes. Ou melhor: qual foi o alimento consumido pelos pequenos…

Da janela do ônibus, era possível assim captar boa parte da história real de vida dos pequenos produtores do Norte de Minas. De há muito, a comida se tornara o principal dilema em centenas de lares campestres. Lá fora, ao longo de pradarias desérticas, sequer um grão de alimento era produzido pela terra morta…

Para passar o tempo, ou talvez esperar algo melhor nos dias seguintes, ficavam estáticos na soleira das portas de casas paupérrimas, e volta e meia acenavam sem entusiasmo para quem passasse na estrada frontal. Gesto esperançoso de que alguém pudesse trazer luz em suas vidas. O motorista do ônibus devia saber disso, pois buzinava com frequência, sempre retribuindo o cumprimento.

Mas, no geral, o olhar desesperançoso, triste, evidenciava a ausência de qualquer perspectiva de melhora de vida ao longo daquelas paisagens amarelas…

Por várias vezes, descortinando o olhar naquelas casinhas perdidas em vales sem indícios de vida vegetal, indaguei qual era a força motivadora que ainda mantinha centenas de famílias numa região praticamente condenada.

Para piorar a situação, cada veículo levantava espessa nuvem de poeira, e a camada asfixiante demorava a se diluir, dormitando preguiçosamente nas encostas de declive médio. Nosso ônibus foi um dos responsáveis por esse rastro quilométrico por horas seguidas. Mas consegui ver vultos pequenos correndo atrás do vácuo de pó; crianças…

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Nos dias em que percorri as cidades atingidas pela seca, entrevistei autoridades municipais para saber quais providências tinham sido ultimadas, a fim de socorrer os flagelados da seca norte-mineira. Não ouvi nada promissor, a não ser promessas de sacolões alimentares e roupas, por parte do governo. Praticamente esmolas, que deveriam considerar suficientes para suprir as necessidades gritantes da região.

Sem voz ativa para exigir os seus direitos, os humildes flagelados ficaram à mercê da hipócrita benevolência governamental. O Auxílio Emergencial – que hoje socorre os brasileiros – nem era cogitado. Aquele povo estava literalmente sozinho, abandonado à própria sorte. Ou à própria desgraça…

As muitas horas gravadas, enfim, renderam material que considerei produtivo, do ponto de vista jornalístico, além do registro fotográfico acerca do cotidiano assassino perpetrado pela seca. No hotel, à noite, sempre checava as anotações para sequenciar as entrevistas com as respectivas áreas devastadas pela seca. Seria uma publicação farta, de mais de uma página, deduzi…

Infelizmente, o texto publicado não foi necessariamente resolutivo à situação do sufoco da vida sem água e com fartura poeirenta, em face do dito descompromisso governamental com a miséria humana. Já naquele tempo, os governantes se esquivavam de adotar medidas capazes de amparar efetivamente os seus semelhantes, como se situações de tragédia social não integrassem os compromissos diários do cargo. Teve sitiante que recebeu mísero sacolão meses após o anúncio do benefício. Coisas de Brasil…

João Carlos de Queiroz, jornalista

 

 

 

 

 

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