Por João Carlos de Queiroz – Meu pai era cismado com Kombi (veículo da Volkswagen). Primeiro, quando gerente da Transportadora Expresso Mineiro {montou filial em Montes Claros}, ele comprou uma aparentemente bem conservada, cores verde/branca. Decidido a se tornar empreendedor, instruiu o mano mais velho a pedir demissão da Cobal para assumir o volante da máquina, entrega de encomendas urgentes nas cidades próximas e, também, distantes.
Nem adiantou a série de conselhos da chefia da Cobal para que o mano não deixasse o órgão. Afinal, seria um tiro no escuro arriscar em algo improvável: o pedido de demissão foi consumado.
Minha mãe estrilou feio, pois não queria que o filho saísse de um emprego federal para se transformar em motorista de Kombi. O chefe do mano à época, Ubirajara Toledo, também foi contra, porém prevaleceu a decisão do patriarca, e lá foi o mano “pilotar” a Kombi, todo feliz. Entusiasmo que durou pouco.
O problema era que as entregas não davam o menor lucro: a danada da Kombi, motor frágil, fundia fácil quando forçada a carregar algo além de suas condições. Numa das viagens a Várzea da Palma, roteiro usual, foram oito litros extras de óleo, e mesmo assim o motor escancarou goela ao regressar a Montes Claros.
Nessa viagem, por sinal, o mano deu carona para dois caminhoneiros, e eles desandaram a contar histórias de assombração durante o arrepiante percurso noturno por uma estradinha esburacada, ladeada por pedras gigantescas (atalho entre a BR-135 e 364). Falaram até do dia em que um colega recebeu auxílio inesperado das sombras…
Talvez sugestionados por isso, ao parar no dia seguinte na Serra de Várzea da Palma para trocar um pneu, ouvimos a cantilena de um motor rangente de caminhão se aproximando. Curiosamente, o estepe foi colocado e retomamos a viagem sem que o tal caminhão surgisse na curva próxima. Mais adiante, soubemos que isso era comum por lá. “É o caminhão que capotou na serra. Tem assombrado meio mundo”, disseram.
Para piorar, as encomendas urgentes rarearam, e aos poucos a Kombi se tornou instrumento ocioso. Sem renda, o mano conseguiu um emprego bancário e deixou a função de motorista, sendo substituído posteriormente por Chico Lopes, velho conhecido da família.
Obeso e detentor de apetite descomunal, Chico detonava todo o lucro das viagens em restaurantes, somando-se às demais despesas (hospedagens, combustível, etc.).
Certa feita, eu e Chico saímos de Montes Claros com destino a UNAÍ, cidade situada próximo a Brasília-DF. Chico evidenciava forte cansaço resfolegante (terminara de chegar de outra viagem pelo Norte de Minas), e assim pediu que eu o auxiliasse na tarefa de conduzir a máquina à distante UNAÍ. Peguei o volante e toquei a Kombi até lá, sem ser abordado pela PRF. Chico roncou durante todo o percurso…
Realizamos as entregas no período da tarde, e, após um lanche reforçado, retornamos. Logo Chico voltou a abrir a boca (antes da BR-040) e pediu que reassumisse o volante. A Kombi dançava zonza no cascalho traiçoeiro, mas consegui conduzi-la sem problemas. Já na rodovia 040, pisei fundo, desanimado pela longa distância até Montes Claros, centenas de quilômetros…
Sem nenhuma carga no lugar dos bancos, a Kombi dispunha agora de farto espaço agora, bem aproveitado por Chico. Ele esparramou seu corpanzil sem cerimônia na área, e dava para escutar seus roncos alternados, vez ou outra. Mantive, assim, uma velocidade em torno de 120 a 130 km/h, e a lataria da Kombi estremecia toda ao cruzarmos pontes com desníveis nas extremidades.
Cheguei a Pirapora, às margens do Rio São Francisco, às 3h, sedento por uma Coca-Cola. Os bares estavam fechados ao longo da rodovia, e um frentista me informou que poderia encontrar algum na zona boêmia, ali pertinho. Fui direto pra lá, e, de fato, tinha dois botecos de péssima qualidade escancarados, com meia dúzia de pinguços de plantão.
Pedi a Coca e a saboreei lentamente. Uma das “meninas da noite” me chamou preocupada, olhando pela janela da Kombi: “Moço, ele está morto?!” – quis saber ao apontar para Chico, estatelado feito um porco lá dentro. “Não, não, está dormindo. Cansaço medonho. Estou vindo de UNAÍ com ele assim. Pelo jeito, vai chegar do mesmo modo a Montes Claros”. Outras garotas se associaram ao olhar curioso da moça, gargalhando descontroladas quando Chico soltou um baita arroto ao mudar a posição do corpo roliço.
– Tchau, lindas! – disse ao sair. Muitas levantaram os braços, desejando feliz viagem. Ainda olhei pelo retrovisor, vendo-as acenando candidamente. Não tinham muitas novidades por ali…
Na retomada da marcha, via BR-364, a velha Kombi urrou potência que não detinha há tempos. Eu queria chegar o quanto antes a Montes Claros. Cruzei as entradas bucólicas de Jequitaí e Coração de Jesus sem deter o ritmo de aceleração. E antes que o sol inundasse as montanhas de manto dourado – rompante intruso de qualquer amanhecer – já pude apreciar as luzes sonolentas de Montes Claros…
Estacionei a Kombi na Rua Dom Pedro II, ao lado do Prédio dos Bancários, e sacudi Chico fortemente para acordá-lo. “Chegamos à rodovia?!” – questionou ele, meio atônito, olhando sem entender a fila de pessoas postadas na calçada do INAMPS – Instituto Nacional de Previdência Social (atual INSS). No seu entendimento, havíamos acabado de deixar a estrada de UNAÍ, a mais de 500/km dali…
– Está sonhando, Chico? Estamos em Montes Claros, cara! Olha “meu” prédio aí em frente, “sô”! – respondi. Chico então arrastou seu corpão gordo para reassumir o volante. Fiquei na dúvida se conseguiria dirigir, tamanha a sonolência visível na sua eterna expressão de desamparo.
*Depois conto outras acerca dessa Kombi. Tem mais umas interessantes…