Conheci o tétrico casarão da Matriz quando era office-boy da Reitoria da Fundação de Ensino Superior do Norte de Minas Gerais, início dos anos 70. Também executava outras pequenas tarefas rotineiras em bancos, mas a maior parte do tempo ficava mesmo por ali, aguardando instruções. Saía, então, com pacotes e mais pacotes de envelopes na pequena motocicleta que adquiri nesse meu primeiro emprego oficial. A colocação (hoje intitulada de Menor Aprendiz) foi gentileza do médico João Valle Maurício, membro da diretoria da instituição de ensino. Na época, a Reitoria era administrada pela advogada Heloísa Helena de Ruiz Combat Vieira.
Recordo que o simpático Dr. Maurício sempre atendia nossa família sem cobrar consultas, fornecendo remédios e tudo o mais. Ético, sabia que éramos pobres. Ele costumava chamar minha mãe de “comadrinha”, e meu pai de Carlão. Foi, sem dúvida, o nosso anjo da Saúde, auxiliando outros tantos.
Em nível estadual, era cardiologista respeitado e também escritor primoroso, integrante da Academia Mineira de Letras. Volta e meia, o médico recebia elogios oficiais pelo excelente trabalho nos quadros da Reitoria, igualmente angariando merecidos elogios em função da excelente qualidade de sua produção literária. Os livros que publicava não paravam nas prateleiras…
Fiquei na Reitoria por um tempão espichado. Não gostava muito de perambular pela parte baixa do imóvel, que cheirava a mofo: o porão gelado do misterioso casarão guardava um tronco e argolas, dispositivos utilizados na era colonial para torturar escravos; passado que todos queremos esquecer.
A madeira desse tronco, a despeito dos anos transcorridos, ainda apresentava manchas escuras, similares a sangue. Detalhes que levantavam arrepios em quem exercitava a imaginação rumo ao passado… Aquele casarão se constituía, de fato, num dos capítulos sombrios da história do coronelismo…
Nos momentos de folga, eu costumava esticar conversa com Ricardinho Versiani, encarregado de zelar por uma garagem lateral à Reitoria, divisória com muro conjugado. Ricardinho contava, por exemplo, que os trabalhos de escavação das valas do muro revelaram a existência de esqueletos humanos, certamente pertencentes a escravos enterrados no entorno daquela área.
– Alguns restos mortais ostentavam correntes nas mãos e pés; eram utilizados para imobilizar os escravos durante o processo letal de tortura!, garantiu. E complementava seriamente:
– Isso aqui tudo é mal-assombrado!
Questionei se ele chegara a ver algo estranho, obtendo resposta aterradora:
– Muitas e muitas vezes vislumbrei vultos correndo rápidos bem ali (apontando para os fundos da garagem), e ouvi gritos e gemidos medonhos de dor. Coisas de levantar o cabelo de qualquer um…
Essas aparições aconteciam nos finais de semana, disse, quando a Reitoria não funcionava, imperando silêncio mordaz no cair da noite; quietude alquebrada por distintos rompantes humanos.
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Ricardinho frisava respeitar essa movimentação, considerando-a justa pelo sofrimento que encampava. “Eles não esquecem a dor que sofreram”, costumava repetir.
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– Quem sofreu e morreu por aqui, decididamente parece não ter paz: está cobrando justiça!, analisava eventualmente. Devia ter razão,pensei.
Sendo o responsável pelo fechamento do casarão, constituído de portas e tramelas pesadas, tais informações mexeram com minha cabeça. Consequentemente, ao perceber que os funcionários da Reitoria já desciam rapidamente a escadaria lateral, após às 17:30h, final do expediente, eu corria contra o tempo para que a noite não me flagrasse ali, dentro das sombrias dependências do pavoroso sobrado.
Relembro o quanto era ruim escutar meus passos solitários no tablado seco pelos longos corredores da Reitoria, instantes em que ouvia rangidos misteriosos, perturbadores. Vez ou outra, jurei escutar até passos atrás de mim, ou talvez tenha imaginado ver vultos cruzando os corredores. O medo cria imagens, já sabia…
Esse procedimento ‘fecha-portas’ não cabia exatamente ao guarda oficial da Reitoria, “seo” Abelardo. Nem sempre ele estava no prédio após o expediente, momentos em que tranquei as portas centenárias, já suando frio. No fundo, torcia para encontrá-lo em pé no corredor superior, admirando a rua em frente. Porém, no geral, nada de vê-lo na área. Decididamente, estava sozinho no velho casarão…
“Seo” Abelardo, senhor de uns 60 anos, jurava que muitos fantasmas habitavam aquele prédio, mas já se acostumara com o movimento das almas todas as noites. “Quando chega a madrugada, aí começa o baile, dança que demora horas e horas. Cansei de assistir”, dizia. Segundo ele, a ‘valsa dos mortos’ tinha lugar no salão de reuniões da Reitoria. “Dançam ali o tempo todo. Esse prédio é bem movimentado quando vocês saem, nem imaginam a bagunça que vira…”
O misterioso vigia chegou a me convidar para passar um final de semana no prédio, a fim de constatar que não mentia. “De repente, você também resolve bailar”, disse risonho. Naturalmente recusei, afirmando acreditar piamente nas suas palavras.
Para não ser incomodado pelas almas locais, Abelardo exibiu as cruzes que desenhou com giz na porta do seu quarto. “Elas (almas) respeitam as cruzes. De outra maneira, eu não teria paz”, explicou. Garantiu que o quarto era constantemente torpedeado por pancadas fortes, madrugada afora. “Querem entrar, mas são “barradas” pela cruz”.
Eu questionei como ele conseguia assistir a sucessão de bailes sem ser incomodado. “Fingem que não me veem. Sabem que estou em trânsito passivo, sem qualquer maldade, deve ser isso… Agora, ao me recolher para dormir, costumam abalroar a porta. Talvez queiram que retorne ao salão para continuar assistindo suas danças, não sei…”
O vigia Abelardo ostentava várias correntes e amuletos. Tinha certa semelhança com os povos indígenas, cabelos lisos, pretos, pele dourada e olhos repuxados, e gostava de manter a camisa semi-aberta, para exibir os medalhões. Por algumas vezes, pensei que ele fosse um desenho humano, figura realmente incomum, lembrando um cacique indígena. Até pelo fato de interagir com gente que já morreu, assistindo valsas noturnas do além…
Por essas e outras solicitei dele, Abelardo, para me auxiliar a fechar o casarão todos os dias. “Tem porta pesada demais, as trancas não encaixam”, argumentei. Pedido reforçado por uma das secretárias da Reitoria, Cleonice Souto. “Ajude o menino, Abelardo!” Lógico que ele desconfiou do meu medo, mas não falou nada…
Em síntese, foi mesmo um alívio saber que, todos os finais de tarde, Abelardo estava por ali, percorrendo comigo os labirintos do tétrico sobrado. Nem gostava de ver aquela imensa banheira enferrujada num dos sanitários, imaginando quantos defuntos não se banharam dentro dela…
ÁREA HISTÓRICA
Só pra se ter uma ideia, a primeira casa de Montes Claros existia bem ao lado desse casarão da Reitoria, construída à base de barro e taboca. Difícil acreditar como resistiu por tanto tempo! Na época, eram dezenas de casarões habitados entre a Praça da Matriz e adjacências, com vários becos apertados, pontos de rodada de animado samba e agito seresteiro. Quase consigo escutar os acordes dos cavaquinhos no beco lateral à Faculdade de Filosofia, na Rua Coronel Celestino.
Na verdade, a Montes Claros de ontem sempre “viveu por ali”. Melhor: ainda vive, nos casarões que sobraram, a maioria já com aspecto lúgubre, de abandono, à exceção de alguns reformados pelos garimpeiros da História. No geral, apenas morcegos percorrem hoje os cômodos desérticos de sobrados que sediaram festas monumentais e o dia a dia de famílias importantes do passado colonial….
Deixei a Reitoria da Fundação de Ensino Superior do Norte de Minas Gerais para ir trabalhar na Peugeot, fábrica de bicicletas em Montes Claros. Anos após, retornaria ao velho prédio, na condição inicial de revisor de textos e, sequencialmente, de repórter de cidades. Tempos em que o casarão vestiu-se de informativo zeloso da sociedade, no papel do “Jornal do Norte”.
Por João Carlos de Queiroz, jornalista Mtb 381.18-MT