Ainda sobre as viagens no Trem Azul…

Ainda que, na época, focada exclusivamente no quesito comercial, mas sempre prestando bons serviços aos usuários, a R.F.F.S.A. – antiga Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima protagonizou sonhos. Cada viagem simbolizava um dos atos dessa peça turística em esplendoroso cartaz, imbuída de popularidade incontestável em Minas Gerais e em outros rincões do país.

O buzinaço {nada cerimonioso} das locomotivas jamais foi incômodo para quantos apreciavam o deslizar gracioso da imensa lagarta metálica que partia ao entardecer de Montes Claros.

A linha férrea estatelava heroicamente à passagem dos vagões, emitindo suspiros de resignação às centenas de toneladas que levavam carga e vidas esperançosas.

Fui um dos felizes embarcados nessa peça teatralmente realista, realizada sobre trilhos por centenas e centenas de quilômetros durante décadas. Difícil deletar isso da memória…

Apesar dos anos, as imagens ainda ecoam saudosamente fortes, iniciando-se pela arrancada triunfal do comboio na estação de Montes Claros; início de mais uma aventura estradeira…

Geralmente, o trem não se fazia de rogado para ultrapassar o miolo urbano da cidade, ecoando contínuos “sai da frente” em berros maravilhosos aos ouvidos de quem gosta de ferrovias.

À janela, extasiado pelo vento quente do Norte de Minas, eu não queria perder um só instante daquele espetáculo móvel: interagia cantarolando com o balanço frenético dos vagões nos trilhos, acenando a quantos estivessem posicionados nos barrancos. Pelo visto, espectadores jamais faltariam…

Em escala simultânea, quase mágica, os bairros cortados pela via férrea (Morrinhos, Vila Guilhermina) ficavam então pra trás. Também a Igrejinha de São Judas Tadeu se tornava figura palidamente apática no cenário fugaz utilizado a cada tarde pelo Trem Azul.

Próximo dali, o viaduto da BR- 135 nos aguardava, e bastava transpô-lo para a música de fundo do comboio se transformar em batucada carnavalesca na passagem por trechos barrancados. Alguns galhos fustigavam rispidamente as janelas…

No interior do trem, as conversas assumiam tom animado, pois todos sabiam ser uma viagem prazerosa. Ouvia-se ruidosa alegria da criançada, alguns dos pequenos experimentando andar de trem pela primeira vez…

O levanta-geral começava aí: os passageiros deixavam os assentos tradicionais para andar a esmo pela composição. O vagão poltrona-leito, onde eu sempre viajava, ficava quase vazio. Ninguém queria perder um minuto sequer daquele show viajante…

O destino mais comum dos turistas a bordo, pude comprovar, era o vagão-restaurante; lugar ideal para boa conversa e panorâmica do dia a dia campestre, com degustação visual regada a cerveja ou guaraná. Urgia, assim, apreciar tudo enquanto as sombras da noite não chegassem, e um toldo negro ofuscasse o show de imagens…

Havia quem preferisse perambular pelos demais carros, ou simplesmente ficar em pé, desafiando as sacudidelas intermitentes do trem.

Pra variar, logo surgia a figura emblemática do chefe do trem, em admirável equilíbrio. Um deles primava por usar brilhantina excessiva nos cabelos ralos, óleo que, dependendo do calor a bordo, empastelava a camisa do uniforme. Tímida “cachoeira” de suor…

Os cobradores de passagens, via de regra, mantinham as pernas levemente abertas, caneta presa à orelha e segurando pequeno alicate.

O frio olhar impessoal de todos eles denotava um profissionalismo nada sentimental. No ato da conferência, já picotavam e devolviam rápido os bilhetes. “Passagem! Passagem!”, saíam pedindo, de poltrona em poltrona…

Glaucilândia, Pires e Albuquerque, Camilo Prates…

Depois de breve parada nas estações dos distritos acima, totalmente envolvido pelo negrume da noite, o Trem Azul cortava trecho sereno até outros terminais de polos maiores. Ninguém tinha pressa de chegar em Belo Horizonte, previsão de desembarque na manhã do dia seguinte, perto do meio-dia.

 

 

 

 

 

 

 

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