Ainda sobre a casa velha que tanto me assombrou…

Vizinhos nos alertaram que aquela casa era mal-assombrada

Apesar de tímida, diria até meio desconfiada, minha mãe proseava eventualmente com vizinhos próximos. Mas nunca revelava nossa intimidade caseira, mantendo certa reserva cautelosa; orientação do meu pai…

Se o dito vizinho(a) ganhava sua confiança, aí, sim, as conversas fluíam divertidas, espontâneas. Testemunhei isso um sem número de vezes.

Foi assim que fiquei sabendo que minha genitora, então normalista, era colega de sala de Virgínia Barbosa, Miss Minas Gerais.

A nossa vizinha, realmente belíssima, virou sucesso total depois de conquistar o disputado título. Naquela época, concursos do tipo convergiam atenção nacional.

Acontece que, numa dessas prosas de alpendre, a mãe de Virgínia nos convidou para visitá-los. Sentimos sinceridade naquele convite.

Insinuante, a vizinha acrescentou que nos aguardaria com doces fantásticos, preparados por ela mesma.

Gostei de ter vizinha assim, tão receptiva e fácil de ser encontrada: bastava apenas atravessar a rua…

Não recordo, sinceramente, o nome dessa senhora, apenas dos seus sorrisos puros e bochechas rosadas. Ao conversar, falava sempre alto, muito animada, estampando brilho feliz nos olhos claros.

Hoje, adulto, analiso que tanta animosidade traduzia seu jeito humilde de agradecer a Deus pela dádiva da vida…

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Ainda com esse convite tentador sibilando na mente, já no dia seguinte dirigi-me à casa da vizinha,  afoito para espiar tudo que acontecia por lá. O horário, cerca de 15h, facilitou tais espiadelas, posto que nossa rua registrava quase zero de movimentação de pessoas. Calor excessivo…

Ágil, encaixei meus pés descalços numa saliência da divisória da base concretada do murinho. Assim pude descortinar visão panorâmica da casa. O imóvel dispunha de amplo quintal, espaço sombreado por frutíferas.

De tanto esticar a cabeça, recolhendo-a estrategicamente quando aparecia alguém na área, terminei sendo descoberto, previsível… Esperto, fingi procurar algo que caíra lá dentro, talvez na parte frontal. Olhava lá e cá, sempre despistando…

A senhora toda sorrisos, em ziguezague ininterrupto pelas alas interna e externa da residência, afazeres domésticos, terminou flagrando minha bisbilhotice. Logo veio me questionar o que fazia ali…

Eticamente, fingiu acreditar ao ouvir a safada mentirinha de um guri de sete anos:

– Perdi a chave do cadeado do portão; acho que deve ter caído por aqui… Nem tenho como entrar em casa, agora…

A mulher nem inquiriu o motivo de também estar vasculhando o interior do seu quintal.

Olhando-me fraterna, convidou:

– Se sua mãe saiu, você pode esperá-la aqui! Tem um doce fresquinho ainda na mesa, acho que vai gostar… – disse ao abrir o portão de ferro.

Entrei sem hesitar; na sequência, devo ter impresso ar atarantado ao ver as novidades locais.

Muitas coisas interessantes estavam escancaradas em cada cômodo da arejada residência, a começar de uma vitrola imensa, ainda com disco de vinil acoplado.

“Seria só enfeite ou aquela geringonça realmente funcionava?”, relampejei mentalmente.

Essa vitrola mereceu de mim mais do que um olhar minucioso: utilizando o dedo indicador, passei a girar o disco devagar, ouvidos sincronizados à mudança de som ambiente.

Assim, ao efetuar mais giros, pude ouvir uma espécie de grunhido musical…

“Legal…” – comemorei.

Na sala principal, dois imensos sofás convidavam a cochilos memoráveis. Sisudos móveis, dispostos em outros cômodos e pelo corredor principal da casa, pareciam guardar segredos preciosos. Alguns refletiam luz dourada, ou prateada; todos valiosos, no mínimo…

Voltei a mexer na vitrola, imaginando “acordá-la” pelo simples giro persistente do dedinho intruso.  Mais grunhidos incompreensíveis…

Percebendo meu interesse, a mulher informou que ligaria o rústico aparelho.

Meus olhos acenderam expectativa geral, e quase eclodi um grito de “SÉRIO?!”

Postei-me, solene, à espera do ‘show’ da vitrola…

Novamente sorrindo, a mulher rodopiou uma espécie de manivelinha lateral, que entendi ser ‘corda’ do antigo aparelho. Explicou, em tom de voz estudado, a magia reinante ali:

“É uma vitrola mágica: ela toca sem energia elétrica”.

Posteriormente a esse comentário, feito em tom de cochicho, a simpática senhora posicionou dois dedos nos lábios finos, pedindo segredo. Achei graça…

A seguir, afastou-se alguns passos, aguardando a vitrola cumprir sua missão musical.

“Vai gostar desse disco”, comentou.

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Por incrível que pareça, a música inicial alardeada pelo disco giro enlouquecido do vinil se enquadrava entre as minhas prediletas: “Ôôôôô… filme triste,/que me fez chorar!”

Ouvi tal canção várias vezes, quando moramos perto da Catedral. Lá havia uma unidade geradora de energia da CEMIG, composta de monstrengos motorizados, idênticos às locomotivas da R.F.F.S.A.

Nas pausas do barulhão dos geradores, o radinho do vigilante dominava a noite, irrompendo boa música no nosso barraco.

Melhor, agora, prestar atenção na vitrola…

Acomodei-me na cadeira próxima, deslumbrado pelo ritmo alucinante com que o disco de vinil rodava. A agulha da vitrola, afixada num braço metálico pesado, tamborilava nesses rodopios, igualmente desatinada.

Nem sei quanto tempo fiquei, feito bobão, olhando o disco rodar e rodar…

Atenta, a delicada anfitriã voltou à sala trazendo generoso pedaço de bolo de chocolate, mais um potinho de goiabada caseira. Aquela visita valeu a pena!

– Traga a limonada, Rita! – pediu.

Foi aí que soube da existência de outra mulher naquela casa. Uma senhora baixinha, também sorrindo não sei de quê. Vi, satisfeito, a jarra de limonada com gelo boiando. Adeus, calor…

A mãe de Virgínia ficou contente de me ver bem-servido:

– Fique à vontade, menininho! Curtindo as músicas? Lindas, não? São todas ótimas! Logo sua mãe chega! – informou.

Nem eu sabia que minha mãe havia saído…

Sequenciei atenção máxima a outras canções animadas do disco de vinil, ritmos indefinidos, em sua maioria. Curti, principalmente, as marchinhas carnavalescas, inseridas no lado oposto; miscelânea musical interessante.

“Ei, você aí! Me dá um dinheiro aí!”

Gostei, também, daquela que fala da tristeza de Florentina:

“Ô, Florentina, por que está tão triste!???/O que foi que aconteceu?”

Extasiado pelas melodias, nem percebi a chegada de uma menina morena na sala, igualmente sorridente.

Naquela casa, pelo visto, tudo se traduzia em sorrisos…

Tratava-se de uma garota um pouco mais velha do que eu, mas pra lá de sapeca, atentada ao extremo.

Mal chegou, a desconhecida deu início a ininterrupto corre-corre pela sala, gritando esbaforida, sem o menor temor de ser repreendida.

O mais interessante é que nenhuma das senhoras a recriminou pela gritaria explícita e pula-pula nos móveis. E se quebrasse algum? Abusada, de fato…

“Se todos fingem não vê-la, e nem ligam para tanto barulho, essa menina deve ser importante”, imaginei ao observá-la.

Ela sorria escancarado ao me olhar, aparentando estar comovida pelo encontro. Gostou obviamente de mim.

De repente, a garotinha parou de pular e gritar, e me convidou para brincarmos no quintal. Disse, em tom de êxtase, ser tudo ali maravilhoso.

Ainda fiquei sabendo de sua aversão à permanência no interior da casa, onde permaneceu apenas para pular e correr sobre os sofás.

A boa senhora apareceu na varanda para dar uma rápida fiscalizada no que eu fazia, e gesticulou simpática ao me ver. Já em relação à menina, foi indiferente.

Até quis perguntar à garotinha se ela morava ali, ou nas proximidades, mas desisti.

Soltos pelo quintal, quis entabular roteiro de brincadeiras. Só que a traquina criança esquematizara tudo, foi outra surpresa.

Pediu-me para acompanhá-la para experimentar um brinquedo bem bacana, o balanço do pé de manga. Em minutos, embalado pelos movimentos do corpo, pude ver mais além do quintal, a cada vez que o balanço subia.

Não contente, a menina me convidou para conhecer sua casinha de bonecas. Achei esquisito aquilo: menino que é menino não entra em casinhas do tipo.

No entanto, minha curiosidade foi maior, e me surpreendi pela arrumação das coisinhas internas da casinha da morena sapeca. Lá tinha mesinha e cadeirinhas perfiladas, que nem as do filme Branca de Neve, casa dos Sete Anões.

Sentamo-nos um pouco à sombra do pé de jabuticaba. Melhor descansar…

A mulher e a serviçal da casa [concluí isso ao ver ela usando avental] conversavam no corredor lateral da casa sobre algum assunto sério; estatizaram sorrisos. Depois, elas se dirigiram à cozinha, montada externamente nos fundos da casa. “Vão preparar o jantar”, deduzi.

As horas voaram a partir daí, e em minutos o horizonte exigiu vermelhidão crepuscular.

A menina ficou em pé e indicou que teríamos mais novidades para brincar. Voltamos ao interior da casa, à sala principal. Em tom de chacota, ela apontou o dedo para o retrato de um senhor bigodudo. Inquietamente, pediu para acompanhá-la novamente ao quintal, onde tinha segredo interessante.

Pulando alternadamente, em sincronia de dança improvisada, ela se postou diante de um monte de caixotes velhos. Munida de pedaço de vassoura, cutucou os caixotes.

O segredo que anunciara não passava de abrigo de uma galinha graúda e seus pintinhos. A ave/mãe despontou irritada das sombras do madeiramento, indo procurar lugar mais tranquilo para abrigar sua prole. Os pintinhos a seguiram…

Perguntei à menina se o ninho escondido no entulho de caixotes comportava ovos, ao que ela demonstrou expressão evasiva, estupefata, tipo: “Como vou saber?!”

Por mais um punhado de minutos, brincamos os famosos pega-pega e esconde-esconde.

Em algumas ocasiões, ensaiei puxar sua mão para me acompanhar, mas a menina foi esguia, desvencilhando-se de qualquer contato.

No esconde-esconde, ela conseguiu me localizar sem esforço.

“Ah, assim não vale!” – discordei. “Você sabe sempre como me achar!”

O sorriso contente da menina não deixou que me sentisse perdedor…

Na sequência, a senhora sorrisos surgiu na varanda da casa, informando que minha mãe já chegara.

– Esteve aqui agorinha, no portão. Você não viu? Foi no mercadinho buscar algumas coisas. Pediu que a aguardasse aqui. Seu irmão está com ela.

Como minha mãe descobrira meu paradeiro na vizinha?

Bom saber que poderia brincar mais um pouco na casa dos grã-finos…

Daí em diante, eu e a menina – com carinha mista de índia/japonesa – desandamos a empreender legítima maratona pelo quintal de selva, repleto de frutíferas e sombras.

Sem mais nem menos, nas primeiras sombras noturnas, horário de debandada total do sol, a garotinha acenou tchau impessoal e saiu calada. Nem vi quando passou pelo portão…

“Ué… Então, ela não mora aqui…

Não foi uma atitude educada da minha nova amiga sair sem se despedir dos donos da casa.

Novamente, a senhora sorrisos voltou a me chamar, desta feita para ir jantar.

Que notícia maravilhosa!

Meu apetite nem foi afetado pelo doce de goiaba com bolo, mais limonada: sonhava há tempos em comer algo melhor, enjoado do trivial arroz, feijão, verdura e ovos servidos em casa.

As “misturas” à mesa me seduziram de imediato, momento em que lembrei das ceias natalinas na casa dos tios maternos. Quanta fartura gastronômica!

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Barriga cheia, só bebi um pouco d’água, já informando à senhora que minha mãe deveria ter voltado.

– Obrigado pelo jantar e por me receber! – disse educado.

A outra senhora também se despediu de mim carinhosamente.

– Volte sempre, guri! Você é um garoto bonzinho!

Elas ainda me deram mais bolo e doce de goiaba para levar pra casa.

Só achei estranhíssimo o gelo das duas senhoras à menininha tão simpática que foi lá brincar comigo. Decerto aprontou alguma coisa feia no pedaço…

Afinal, pelo pouco que vi, as duas anfitriãs jamais seriam indelicadas com alguém, muito menos com uma criança…

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Sentindo o aroma tentador do doce de goiaba esvair-se da compota de vidro, cruzei a rua, imaginando a cara de satisfação do mano Zé, ao ver o doce.

Vez ou outra, o glutão brigava comigo, impondo idiota disputa para ficar com o maior pedaço de rapadura.

Particularmente, eu gostava das rapaduras de leite, daquelas mais macias, recheadas com pedaços de laranja da terra. Delícia pura…

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Mal entrei na nossa modesta casa, senti a mudança drástica de classe social: tudo muito pobre!

Não devia ter experimentado da vida de ricos, pensei desanimado. Difícil voltar a conviver com as simplórias coisas regradas do nosso lar.

Sentei-me no pequeno sofá alquebrado da sala de estar, decidido a aliviar os pensamentos e recompor o baque causado pelo retorno à minha realidade humilde.

Chamei pela mãe e pelo mano, nada! A porta frontal não estava trancada; então, deviam estar lá…

“Só se minha mãe saiu novamente, e o mano está no banho…” – raciocínio lógico.

Atravessei a ala da cozinha para acessar o banheiro; essa mesma porta escancarava o quintal cemitério, tema citado anteriormente.

Trata-se do quintal onde meu pai anunciou ter achado ossos humanos, exibindo suposta canela de cadáver. Isso aconteceu quando ele foi preparar horta na parte mais macia da terra.

Minha mãe o recriminou por fazer medo na gente, dizendo ser uma de suas historinhas fantasiosas.

Difícil foi esquecer essa descoberta macabra…

NA PORTA DO BANHEIRO…

Chamei pelo mano e bati na porta, trancada por dentro. O silêncio persistente, pós-pancadas, respondeu ausência…

Tampouco o mano Zé estava no “laboratório” montado no corredor lateral da casa, pois ouviria ruídos de vidrinhos farmacêuticos. É o laboratório que pegou fogo meses depois, fato igualmente narrado nesse espaço…

Se o mano não chegara, quem, afinal, estava no banheiro?

Talvez estivesse ainda no mercadinho, tentando convencer minha mãe a comprar caramelos. Há dias, apesar das recomendações do meu pai, chegou com pipoca doce e paçoca.  Mano Zé não tinha dó da labuta do velho na cooperativa de laticínios.

Já quase desistindo, ouvi o tilintar do balde com água do banheiro. Entendi que o mano se fingira de surdo, certamente por cumprir reinado fisiológico. Agora, partia para o banho…

– Já sei que está aí, Zé! Pode abrir!

Bati novamente na porta! Que pirracento!

– Vou comer seu bolo e doce de goiaba! – avisei furioso.

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De volta ao centro da cozinha, deu para ver o momento em que minha mãe entrou rápida no quarto, acendendo a luz.

– Mãeeeee! Zé Antônio está trancado no banheiro e não quer sair!

Disse isso ao escutar inequívoco barulho na penteadeira, certamente ela arrumando algo que comprou no mercadinho. Mas… não foi lá pra comprar alimentos?

NÃO HAVIA ninguém também no quarto, apesar da luz acesa. Nem sinal da mãe nem do mano Zé!

– Ué, sô! Cadê eles?! – mentalizei preocupado, pensando em retornar à casa da Miss Minas Gerais.

Pela janela, vi que eles acenderam as luzes, irradiando muita claridade.

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O resfolegar de passos e sacolas substituiu meus pensamentos: minha mãe e o mano Zé entravam na casa. UFAAAA! Ela ficou feliz ao me ver.

Já fui contando que pensei ter escutado o mano tomando banho, mas trancaram o banheiro por dentro. Ou que vira ela entrar no quarto, minutos atrás.

– Banheiro trancado?! – perguntou ela. Foi checar e voltou dizendo que estava aberto.

Perguntei se meu pai demoraria a vir jantar.

– Ainda vou preparar a comida. Mas… malandrinho: já sei que você jantou lá! – polegar indicando a casa vizinha.

Não tive como negar isso…

FIM DA PRIMEIRA PARTE

João Carlos de Queiroz

 

 

 

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