Montes Claros-MG, 1980 – Meu saudoso mano caçula, Marcelo, era fanático por carros. Não apenas para pilotá-los, mas também para fuçar suas partes. Cansei de vê-lo desmontando painéis e outras partes dos diversos modelos que adquiriu. Incrível como conseguia consertá-los facilmente!
Na verdade, o mano herdara do meu velho pai o talento para reparar qualquer coisa. O lado mecânico se sobressaiu logo nesse aspecto…
O mano também defendia total desapego por veículos, salientando que as máquinas, de forma infalível, começam a dar problemas após três anos de uso. Tanto que extrapolava pouco tal prazo ao passar seus carros adiante, deixando suspiros saudosos nos familiares.
Recordo de minha mãe lamentando a venda de uma confortável perua GM. “Gostava tanto dela”, disse várias vezes. Marcelo apenas sorriu compreensivo ao explicar:
– Você não pode se apegar a nenhum carro: após três anos, começam os problemas.
Aos poucos, todos nós nos acostumamos a esse seu jeito desapegado pelas máquinas que nos levavam pra lá e pra cá. Marcelo trocava de carros quase como quem troca de cuecas: ora estava dirigindo um sóbrio utilitário de serviços; no dia seguinte, já surgia buzinando com algum modelo esportivo.
Conforme tentou me explicar, isso não se constituía em mania, mas num atrativo pela novidade, do negócio a ser fechado.
Ao viajar certa vez com a família para a Bahia, ele surpreendeu a todos ao negociar seu carro com um baiano, já retornando a Montes Claros com outro automóvel mais novo.
Anteriormente, o mano nutriu paixão escancarada por carrões potentes, a exemplo do Dodge Dart e Maverick. Por pouco não morreu ao bater o Maverick branco, quatro cilindros, num poste da Avenida Mestra Fininha. Ainda recordo quando abri o portão e ele mal se aguentava de pé, todo ensanguentado. O carro acabou.
Foi justamente num outro Maverick, o potente seis cilindros, câmbio ao volante, que eu também vi a morte de perto. Ao descer alta madrugada por uma das ruas do bairro Morrinhos, que atravessa as linhas da RFFSA, não percebi que vinha um cargueiro. A música alta impediu talvez que escutasse os berros da locomotiva.
Outra coisa: os excessivos ponches numa chacrinha mais acima torpedearam meus sentidos, ou seja: bebi excessivamente.
Naquela madrugada, Deus teve muita piedade desse pecador: mal o Maverick atravessou o imenso capô sobre os trilhos, a luz fortíssima da locomotiva inundou o interior do carro. Foi quando finalmente escutei o buzinaço escandaloso, sentindo arrepios apavorantes.
O Maverick em questão, apesar dos seis cilindros, não ostentava agilidade de torque, arrancada. Engatei a segunda marcha para forçar impulso e sair da frente do trem, sentindo o motor chacoalhar preguiçoso. Tive convicção de que não conseguiria, seria colhido pela composição ferroviária. Acelerei forte com os olhos fechados, preparado para o inevitável choque. Mas nada aconteceu…
Difícil acreditar que consegui sair dos trilhos e pude assistir o desfile voraz de vagões carregados à minha retaguarda. Nunca esse episódio ficou muito bem explicado. Afinal, o trem estava praticamente em cima de mim quando buzinou e suas luzes fortes irromperam dentro do Ford.
Logo abaixo da ribanceira dos trilhos, ainda trêmulo e completamente curado da bebedeira, agradeci a Deus pelo estupendo empurrão de emergência. Por pouco não virei carne moída naquele local sinistro,,,
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HÁ UM paredão lateral que impede quem desce essa rua, creio que Dona Tiburtina, de ver a aproximação de trens. Pelo fato de os trilhos estarem situados numa curva e em plano superior às casas, o farol não se reflete em nada. Por conseguinte, apenas a buzina da locomotiva pode ser salvo conduto. Isto é, se você não estiver bêbado e escutando música…