Ainda há almas penadas vagando por aí

(SEGUNDA PARTE)

Anteriormente, discorri sobre as viagens que realizei com o primo adotado, Chico Lopes, a bordo da Kombi do meu velho pai. Ele adquiriu o utilitário da VW para dar celeridade ao negócio de entregas rápidas no Norte de Minas Gerais e em outros lugares do Estado. Hoje sequencio esse simplório relato com outro motorista da Kombi, meu mano José Antônio…

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Montes Claros, anos 70 – Também meu irmão, José Antônio, após pedir demissão da COBAL, Companhia de Abastecimento, tornou-se motorista da Kombi nesse vai-e-vem pelas péssimas estradas cascalhadas do Norte de Minas Gerais e em outras asfaltadas, parcialmente deploráveis.

Naqueles anos, trafegar pelas rodovias estaduais e federais de todo o País exigia atenção máxima, em decorrência da maltratada malha viária. Qualquer descuido significava acidente sério.

Enquanto tocava seu negócio de entregas rápidas, aproveitando que também gerenciava a empresa transportadora Expresso Mineiro, meu pai começou a se queixar da falta de lucros. Muito hábil em contabilidade, ele só detectava saída de capital, e nenhum retorno promissor.

Mesmo inexperiente no ramo, eu percebera que aquele negócio não vingaria: a quase totalidade do lucro das viagens, por assim dizer, praticamente se desintegrava com gastos de combustível, refeições e hotel. Sobrava pouco, quase nada. E esse pouco era empregado na manutenção regular da Kombi: pneus, oficina, troca de óleo, tarifas de licenciamento, etc.

Entusiasmado na nova função, meu mano mais velho não tinha preguiça em dirigir por horas e mais horas, seja com sol, chuva, frio ou calor. E quanto mais longe fôssemos, melhor!

– Entreguem esse material em Corinto e Várzea da Palma – palavras do patrão paterno.

SAÍMOS de Montes Claros no início da tarde, finalizando a única entrega em Corinto às 19h. Farmácia não fecha no horário normal dos demais empreendimentos.

O mano Zé foi orientado a seguir por uma estrada secundária até Várzea da Palma, atalho que encurtaria o percurso original em mais de 50 quilômetros. Só não nos informaram que se tratava de estradinha repleta de pedregulhos e rampas que os praticantes de trilhas adorariam!

Ao abastecermos, dois homens nos pediram carona até uma comunidade rural localizada no meio do trecho. Inocentes, aceitamos embarcar os desconhecidos. Fosse hoje, nossa resposta seria não.

Felizmente, os estranhos não fizeram nenhuma maldade conosco, comportando-se bem. E agradeceram bastante pela ajuda dada.

– Deus os acompanhe! – disseram.

Sequenciamos a viagem recordando dos causos sombrios que contaram durante a viagem. Um deles falava da ajuda que um colega caminhoneiro recebeu do diabo, responsável por desatolar seu caminhão carregado.

– Pelo que contam, esse caminhoneiro ficou sem entender quando um homem surgiu a cavalo e pediu que ligasse o caminhão. Há horas, o Mercedes-Benz estava afundado na lama, sem possibilidade de sair dali sozinho. Mesmo um trator encontraria resistência – relato de um deles.

Segundo os motoristas, mal ligou o caminhão e o pesado veículo já deu um salto à frente, e em minutos largou o atoleiro pra trás. Surpreso, e querendo retribuir a gentileza do desconhecido, ele apenas exclamou:

– Nossa! Como você conseguiu desatolar o caminhão, cara? Deus te ajude!

Aproximando-se da cabine, o homem respondeu seco:

– Deus me ajude?! Mexo com isso, não!

E seguiu trotando pela estrada…

Impressionado, o caminhoneiro desceu e retornou ao local em que seu caminhão jazia na lama há pouco, e além dos cascos de cavalo, ao invés de pegadas humanas próximas às rodas do Mercedes, ele viu pegadas de bode. Entendeu finalmente ter sido auxiliado pelo diabo.

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Chegamos a Várzea da Palma lá pelas 2h, dormindo numa pensão. Pela manhã realizamos as entregas locais, partindo de volta a MOC.

– Vocês podem ir pela Serra da Onça. Encurta bem o caminho até à BR… – outra orientação.

Tentei para que meu mano não seguisse tal conselho, mas ele ignorou. E zarpamos em direção à Serra da Onça, conhecida pelo entremeado de curvas traiçoeiras. Independente de estar vazia, a Kombi sentiu certa dificuldade logo no início…

No meio da serra, o pneu furou. Eu disse ser preferível que tivéssemos ido pela rodovia, apesar de mais longe. Agora, estávamos num lugar deserto. Trocar pneu naquele cascalho escorregadio se constituía em desafio.

O mano retirou o estepe, macaco hidráulico e demais ferramentas, procurando pedras fortes para suportar o peso da Kombi, Aí, feito cantilena de boteco, escutamos o barulho ritmado de motor de caminhão subindo a serra, gradualmente próximo de nós. No entanto, o caminhão nunca surgia na curva abaixo, o que nos intrigou…

Conseguimos substituir o pneu furado e o caminhão misterioso não apareceu, mesmo continuando a metralhar os paredões da serra com seu gemido de força motorizada.

QUILÔMETROS à frente, ao parar para comer numa pensão de beira de estrada, ficamos sabendo que a Serra da Onça é mal-assombrada por esse caminhão há anos. “Capotou pela ribanceira e matou motorista e auxiliar”, disse a proprietária.

Já próximo ao Posto Miguelzinho, a poucos quilômetros de Montes Claros, cruzamos duas vezes com um caminhão cegonha todo iluminado.

– Nós já não cruzamos antes com esse caminhão? – comentou o mano.

O mais interessante foi quando o mesmo veículo se posicionou a frente da Kombi, tremulando luzes de várias cores. O mano tentou acompanhá-lo, mas era bem veloz, e numa das curvas fechadas simplesmente sumiu. Não  tardou para que voltasse a cruzar conosco em sentido contrário, também em velocidade avançada…

Por João Carlos de Queiroz