(PRIMEIRA PARTE)
Anos 70 – Por algum tempo, entre meus 17 e 20 anos, auxiliei meu pai num negócio que ele cismou de ser rentável: transporte de encomendas rápidas. Entusiasmado, Carlão adquiriu uma Kombi usada, cores verde/ musgo e branco/perolado. As calotas brancas e cortinas nas pequenas janelas realçavam o luxo do mais famoso utilitário da VW. Uma pena descaracterizá-lo para o transporte de mercadorias; os bancos traseiros foram retirados para abrir mais espaço.
Geralmente, 90% da carga transportada se limitava a medicamentos, entregues num legítimo cata-endereço pelas cidades de Minas. Algumas bem interessantes, outras deprimentes, em legítima chaga-viva social. Incrível como as pessoas ainda sorriam por lá!
Mas, pra conhecer novos lugares, nunca me queixei desse perambular insosso em estradas poeirentas ou asfaltadas, pois imaginava estar fazendo turismo. De certo modo, estava…
Inicialmente, meu velho optou por contratar motoristas familiares, entre eles Chico Lopes, primo adotado, que há anos lutava contra obesidade mórbida. Um rapaz falante, bem-humorado, contador de piadas. Boa gente.
Chico tinha o costume de dormir após as refeições, e nem sei por quantas vezes fiquei sentado ao volante da Kombi, à espera de que acordasse. Vontade de acionar o motor nunca me faltou. Vez ou outra, em lugares inóspitos, Chico me deixava dirigir…
Eu e o primo/gorducho corremos assim bons trechos a bordo dessa silenciosa Kombi. Na viagem de ida, coitada, ela emitia cansaço sôfrego, reclamando pela carga embarcada. Óbvio o resfolegar esforçado do motor de 1.600 cilindradas nas rampas mais íngremes…
Já no retorno a Montes Claros, livre do peso extra, a Kombi trepidava feliz a lataria ao ganhar velocidade, balançando graciosa ao cruzar com ônibus e caminhões. Chico exultava na função de motorista.
Certa vez, fui com ele a Espinosa, divisa de Minas com a Bahia. Lá pelas 22h, ao passar ao lado de rústico cemitério, Campo Santo largado à esquerda da rodovia, perto de Monte Azul, avistei um senhor sentado em cima do muro, aparentemente compenetrado em observar o marasmo da noite, banhada por generoso luar.
Na condição de motorista auxiliar, posto que Chico roncava lá atrás, senti incômoda sensação ao notar que o estranho guardião de cemitério me observava, virando o pescoço à medida que a Kombi avançava pela estrada. Inútil tentar acordar Chico…
O sujeito vestia-se sobriamente, deu para perceber ao entremear olhares rápidos em sua direção, quando queria ter certeza de não estar vendo nenhum fantasma.
Passei em frente ao cemitério e ele ficou me olhando impassivelmente, e segui viagem pela rodovia cascalhada, com fortes calafrios acometendo meu corpo. Aquele guardião já aparecera para outras pessoas, informaram.
O maior susto aconteceu quando fomos a Unaí, cidade próxima a Brasília. Cansado, Chico pediu que guiasse a Kombi até a BR-040, temeroso de que a Polícia Rodoviária Federal nos parasse.
Os roncos do primo gordão sobrepujaram a barulheira da trepidação da Kombi nos quase 100 quilômetros que separam Unaí da 040. Ao ganhar o asfalto, preocupei-me em ser abordado pelos patrulheiros da PRF. Menor de idade {e sem carteira} se constituía em problema sério…
No entanto, para minha alegria, o posto da PRF estava às escuras, vi de longe. Pelo horário, quase 23h, os patrulheiros deviam estar dormindo. Não quis acordar Chico e toquei em frente, sem ser parado. Ao passar pelo posto, vi reflexos azulados na cabine de vidro. No mínimo, uma TV ligada…
A Kombi interagiu de felicidade ao perceber que estávamos indo pra casa, e ganhou gás veloz. Cruzei Paracatu sem parar, e só fui beber Coca-Cola em Pirapora, numa zona boêmia. Único lugar aberto alta madrugada. As meninas, curiosas, quiseram saber o que levava no utilitário.
– Um porco! E dos grandes! – respondi. – Se quiserem olhar, basta abrir a porta…
– Meu Pai! É um homem gordão! Está vivo, menino? – quis saber uma delas. Nem precisei responder, pois a amiga foi mais perspicaz:
– Vivo, está, sim. Porém, bêbado, cruzes! Não está sentindo o bafo de cachaça, moça?
Elas deram altas risadas e cutucaram Chico à vontade, que mais parecia Maria-Mole. Não acordou.
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Novamente na estrada, não via a hora de chegar em Montes Claros e dormir largado, idêntico ao primo adotado, que transportava no espaço sem bancos…
De repente, reflexo automático, acionei os freios da Kombi par não atropelar uma coruja gigante. O pássaro noturno veio direto ao encontro do carro. Jamais vira uma ave daquele porte, bem superior ao condor dos Andes…
Enquanto a Kombi cantava os pneus de modo escandaloso, a coruja gigante saracoteou as impressionantes asas a palmos de mim, e foi inevitável a colisão. Fechei os olhos para tentar amenizar o impacto. Só que não bati em nada, esquisito…
Fiquei procurando respostas com o utilitário parado em plena rodovia. O motor apagou na freada; liguei-o rápido, temendo ser colhido por algum veículo que acaso estivesse vindo na retaguarda…
Chico acordou com o forte solavanco dos freios, e perguntou o que acontecia. Falei ter quase abalroado uma coruja gigante.
– O quê?! Você tá doido, Grande? (ele me apelidou de Grande).
– Não, Chico, eu vi ela de pertinho. Sumiu nem sei como…
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Ficou a dúvida: vi uma assombração ou foi o subconsciente que provocou tal visagem, a fim de me obrigar a parar? Não é incomum motoristas verem coisas inexplicáveis ao extrapolar suas condições físicas.
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Chico deve ter pensado que ainda estávamos no trecho entre Unaí e a BR-040, e assim voltou aos roncos estrondosos. Só se deu conta de ter chegado em Montes Claros quando encostei a Kombi na Rua Dom Pedro II, em frente ao prédio dos bancários, onde morava.
– Ué, Grande: estamos onde?! – indagou ao conseguir erguer seu respeitável corpanzil e olhar ao redor com cara nitidamente sonolenta.
– Chegamos, Chico! Vá pra casa. E vê se não dorme ao volante pelo caminho, viu?
Por dias, o primo me agradeceu pela força que dei ao guiar a Kombi entre Unaí e Montes Claros.
– Eu não ia aguentar mesmo, Grande: estava com sono perdido há dias, e precisava recompor as forças. Valeu!
Por João Carlos de Queiroz