“No entanto, a ciência tem um caráter de autocorreção. Nenhuma grande falácia pode persistir por muito tempo diante do aumento progressivo de conhecimentos.” (Francis S. Collins).
Um esqueleto de hominídeo quase completo foi descoberto pelo paleoantropólogo norte-americano Donald Johanson em Hadar, na região de Danakil, Norte da Etiópia, em 1974. Lucy, o nome que recebeu, acabou classificada como um Australopithecus, que viveu há 3,18 milhões de anos, de uma espécie inteiramente nova, apelidada afarensis, com baixa estatura e aspecto mais simiesco do que humano: testa baixa, nariz achatado e grandes mandíbulas.
Duas espécies de australopitecos surgiram concomitantemente com o homem: os Australopithecus robustus (a forma sul-africana do Australopithecus boisei) e os Australopithecus africanus, que viveram entre 3,7 milhões de anos e 1,5 milhão de anos. Os primeiros, maiores e mais atarracados, e os segundos, tipos mais esguios, contemporâneos do Homo habilis e também do Homo erectus, acabaram extintos diante de sua incapacidade de enfrentar o meio adverso.
Para o paleoantropólogo inglês naturalizado queniano, Richard E. Leakey, “Lucy, com 3 milhões de anos de idade, é tida agora como um precursor do Australopithecus africanus, e, em 1979, Johanson denominou esse fóssil de A. afarensis” (“O Homem na Pré-História do Norte de Minas”, deste mesmo autor, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1983, págs. 15/16 e 18). O Australopithecus africanus descenderia do Australopithecus afarensis pelas significativas semelhanças entre ambos. Há quem assegure que ambos não passariam de um mesmo ser.
Em um sítio arqueológico da África do Sul, denominado Sterkfontein, foi encontrado o Australopithecus africanus (R. Leakey e Roger Lewin, em “Origens”, pág. 11). É considerável a distância separando Lucy desse A. africanus, entre a Etiópia e a África do Sul. Mas o tipo africanus surgiu especialmente na região considerada berço da humanidade, como um exemplar que apareceu perto do Lago Turkana, e ocupou quase o mesmo nicho ecológico dos babuínos modernos (Leakey e Lewin, idem, págs. 110 e 116, respectivamente).
Estudiosos e mais estudiosos vêm se debruçando sobre Lucy, o qual, se teria hábitos bípedes, ou mesmo, e mais provavelmente, semibípedes, também demonstrou viver confortavelmente balançando por entre as árvores. Em outras palavras, sem suas mãos inteiramente livres, a espiral evolutiva responsável por cérebros maiores dotados de inteligência humana não deslanchou, parecendo não mais que os afarensis deram origem tão somente aos atuais chimpanzés e bonobos, também chamados de chimpanzés pigmeus. Parece-nos hoje ser quase incompreensível existirem pessoas que ainda acreditam no Criacionismo bíblico, em detrimento das provas reais da evolução, achando a ideia da ascendência ou parentesco com símios do homem como um acinte ao seu brio ou sua nobreza.
Apesar de opinar por uma postura bípede do A. afarensis, mas não crendo ter sido a espécie antepassada ou ascendente do homem, pela contemporaneidade entre ambos, Richard E. Leakey, em seu livro “O Povo do Lago”, Editora UnB/Melhoramentos, 1988, pág. 67 (obra que tem como coautor Roger Lewin, a quem parece pertencer somente o texto, conclusão que vale também para outro livro bem mais famoso de Leakey, “Origens”), revela que, como os grandes macacos de hoje, Lucy possuía braços compridos em relação às pernas, indicativo de subir em árvores, além de outros detalhes que, bem sopesados, não tornam críveis para nós as presenças desses afarensis na linhagem do homem:
“O importante é que, nesse indivíduo, os braços eram longos de forma incomum em relação às pernas, um detalhe que indicava que, por mais que fizesse, o hominídeo antigo provavelmente subia em árvores.
Igualmente importante era a natureza do hominídeo. Ele era, sem dúvida, “avançado”, pois já andava ereto. Todavia, o maxilar tinha algumas características indubitavelmente primitivas, que fazem lembrar o Ramapithecus. O maxilar tem nitidamente o formato em V; os molares, relativamente grandes, são achatados; e o primeiro pré-molar tem uma cúspide única, uma característica muito primitiva, semelhante à do antropoide.
O formato da pelve sugere que era uma fêmea, e as proporções gerais apresentam-se, de fato, como muito pequena, não ultrapassando 91 cm de altura, conforme nos demonstram seus dentes.”
A propósito do Ramapithecus, o mesmo está presentemente totalmente afastado da linha evolutiva do homem ao ser reconstituído um seu crânio completo descoberto na China. Assim feito, constatou-se que o mesmo não passava de um ancestral dos orangotangos. Outros restos de Ramapithecus surgiram no Quênia e no Paquistão, mas de um ramo diferente. Estudos outros concluíram que dois outros seres que seriam descendentes desse Ramapithecus, o Oreopithecus e o Gigantopithecus, tidos como gêneros de australopitecos, são na verdade fósseis de símios, agora extintos. Um crânio de oito milhões de anos achado no Paquistão, que recebeu o nome de Sivapithecus, combina alguns traços com o Ramapithecus e outros, com o orangotango, como órbitas oculares muito juntas. E um único molar descoberto em Lukeino, em Tugen Hilss, de 6,5 milhões de anos, foi associado como representante do último antecessor comum do homem e do chimpanzé.
Os primeiros símios reconhecidos como tal apareceram nos registros fósseis há 30 milhões de anos, mas pelo menos há seis milhões de anos houve a sua separação dos nossos antecessores. Ou seja, é ainda por demais incerta a história daqueles símios e de sua separação da também difusa família Hominidae.
Continua (“O Povo do Lago”, pág. 78):
“Infelizmente, não há número suficiente de joelhos bem preservados no arquivo fóssil para permitir que cada tipo de hominídeo seja testado separadamente. Em contrapartida, podemos examinar a parte superior do osso da coxa e da pelve. Não há dúvida, no momento, de que esses ossos, nos australopitecíneos, são diferentes daqueles do Homo e dos humanos modernos: nos australopitecíneos a pelve é mais estreita e mais comprida, a cabeça do fêmur é menor, e o colo do fêmur, que liga a cabeça à diáfise do osso da coxa, é estranhamente achatado. Antigamente, muitas pessoas interpretavam essas diferenças como indicativas de um modo de andar recurvado nos australopitecíneos sem nenhuma justificativa, apenas porque esse ossos são diferentes dos do Homo, segundo mais uma colocação chauvinista do Homo.”
A evolução dos dentes dos hominídeos, com atenção para a redução dos caninos e o aumento da espessura do esmalte, vem sendo objeto de interpretações. A conclusão correta é que o fenômeno está relacionado com a dieta. O nosso esmalte nos dentes é bem mais grosso que nos primatas africanos, cuja dentição apresenta vãos, e estes não são registrados entre humanos. A redução nos caninos do homem fez com que esses pequenos espaços desaparecessem entre seus dentes. Os caninos nos símios têm esses vãos. Os maxilares do Australopithecus afarensis mostram irrefutavelmente este espacejamento entre os caninos e os dentes adjacentes. No homem, os caninos são menores quando comparados aos dos macacos, sugerindo uma menor competição e maior cooperação para a vida social em nossa espécie.
O maxilar superior do Australopithecus afarensis mostra claramente o vão entre os dentes caninos e os adjacentes, o que é peculiar aos símios, e não ao homem.
Arcada dentária inferior de um Homo habilis mostrando uma dentição basicamente humana, notadamente diferente da dos australopitecos.
Os humanos, após a primeira dentição (dentição de leite), mostram uma segunda e definitiva composta de 28 a 32 dentes. Os dianteiros, incisivos, se prestam ao corte de alimentos, os caninos são perfurantes e os pré-molares e os molares são empregados para triturar e moer alimentos.
Acontece que preteritamente os hábitos alimentares de mastigação não seriam uma exclusividade humana. “É possível que os antepassados dos hominídeos se tivessem especializado em comer sementes e frutos duros, que eram difíceis de abrir e requeriam mais mastigação. Estes traços aparecem cedo demais para relacioná-los com a fabricação de utensílios e com a elaboração dos alimentos. Também evoluíram nos mandris Theropithecus, que comem sementes duras”, segundo John Gowlett, no livro “Arqueologia das Primeiras Culturas (A Alvorada da Humanidade)”, Ediciones Folio S.A., Barcelona, 2007, págs. 16/17.
Seus fortes caninos e adjacentes e o vão presente entre tal dentição revela que o Australopithecus afarensis era portador de bons músculos maxilares para facilitar sua mastigação, o que é típico de símios, não sendo inerente ao homem. Para Francis S. Collins, diretor do Projeto Genoma (“A Linguagem de Deus”, 4ª. edição, Editora Gente, págs. 144/145), mesmo frisando tratar-se de uma hipótese, escreveu que a presença desse maxilar mais fraco no homem facilitou, paradoxalmente, seu crescimento craniano para cima na acomodação de um cérebro maior:
“Agora podemos também começar a explicar as origens de uma fração ínfima de diferenças mais mecânicas entre nós e nossos parentes mais próximos, algumas das quais podem desempenhar funções de destaque em nossa natureza humana. Por exemplo, um gene para a proteína dos músculos maxilares (MYH16) parece ter sofrido uma mutação para um pseudogene nos humanos, mas continua desempenhando um papel importante no desenvolvimento e na força dos músculos maxilares em outros primatas. Percebe-se que a desativação desse gene leva a uma redução na massa desses músculos nos humanos. A maior parte dos macacos tem mandíbulas relativamente maiores e mais fortes que as nossas. Crânios de humanos e de macacos devem, entre outras coisas, servir de sustentação a esses músculos maxilares. É possível que o desenvolvimento de um maxilar mais fraco permita, paradoxalmente, que nosso crânio cresça para cima, para acomodar nosso cérebro maior. Trata-se de uma especulação, é claro, e outras alterações genéticas seriam necessárias para responsabilizar o córtex cerebral muito maior que representa um componente essencial na diferença entre homens e chimpanzés.”
De mais a mais, refrisando, há quem considere que o Australopithecus afarensis de Hadar nada mais seria do que uma variedade do Australopithecus africanus. Mas existe um detalhe muito importante e inquestionável na anatomia de Lucy: sua pélvis não evoluiu a lhe permitir dar à luz uma criatura com a cabeça grande. Dali nunca sairia um feto Homo, por absoluta falta de espaço para vir ao mundo.
Giro outro, existem cientistas que não creem que os afarensis tenham deixado sequer descendência, não passando de um ramo seco dos hominídeos, no que acreditamos. É que inúmeros fósseis da espécie foram achados com a mesma idade do Homo habilis. Afinal chegaram a ser contemporâneos e até do segundo homem, o Homo erectus, que surgiu há 1,6 milhões de anos. E, se ambos conviveram há 2 milhões de anos no mesmo espaço, aquele tipo de australopiteco, mais propriamente levando uma vida arbórea e que desapareceu há 1,5 milhão de anos, não poderia ser elo encadeador da linha evolutiva do homem.
A todas as luzes, é impossível que nossos ancestrais remotos tenham descendido de outros animais que existiram simultaneamente com eles. Nossa espécie seguiu sozinha em sua escalada evolutiva, a partir do Homo habilis, sendo que este não é ancestral do Homo sapiens, e sim o primeiro homem, cuja evolução redundou no Homo erectus e, por fim, em nós.
Os hominídeos evoluíram muito mais cedo do que se imaginava. Em Laetoli, na Tanzânia, foi achada uma série de pegadas preservadas em cinzas vulcânicas pulverizadas e molhadas pela chuva, tratando-se de icnofósseis na rocha. Outra camada de cinzas oriunda do vulcanismo cobriu a seguir essas marcas, após virando rochas duras, datadas de 3,5 milhões de anos atrás, isto em 1976. A todas as luzes, depreende-se que esses indivíduos abandonavam apressadamente o lugar em busca de outro distante daquele vulcão então ativo, percorrendo um caminho sobre a larva morna de dias anteriores. Um desses animais chegou a dar uma ligeira parada e se virou em direção ao leste, provavelmente olhando para o vulcão ativo, prosseguindo com os seus a seguir.
Conclui-se daí que pelo menos os três indivíduos dessas pegadas, atribuídas aos Australopithecus afarensis, passaram pelo lugar sobre dois pés, estando do lado direito dos mesmos a cratera do perigoso vulcão Sadiman. Essas pegadas revelam pés chatos e um ângulo bem maior entre o dedão e os demais dedos dos pés.
Aqui é forçoso imaginar, em análise meticulosa, uma anatomia apropriada para subir e descer árvores. Esses pés indicavam que ainda agarravam o chão, e não que habitualmente o pisavam. Não foi possível imaginar como um pé mais parecido com o de macaco pudesse vir a desenvolver-se para uma versão moderna de pés humanos. Richard Leakey formula esta pergunta, que ele mesmo responde (obra citada, pág. 71):
“Essas criaturas seriam formas primitivas do Homo? É difícil imaginar como essa pergunta pode algum dia ser respondida com certeza.”
As impressões em Laetoli, de 17 cm de comprimento por 11 de largura, descobertas a uma profundidade de 5 metros, foram recebidas com desdém por parte dos pesquisadores. Kevin Hatala, da Universidade de Chatham, na Pensilvânia (EUA), concluiu que aquela marcha de afarensis se apresentava bastante estranha aos olhos modernos, pois eles deviam curvar os joelhos quando cada pé tocasse o chão, como fazem os humanos.
Em outras palavras, poderia ter ocorrido em Laetoli um raro bipedismo em andar gingado, forçado ao que parece pelo temor daqueles seres ao meio ambiente então hostil. Como diz o ditado, necessidade faz sapo pular. Pequena nota na revista “Visão”, de 27 de novembro de 1978, diz que “há muito tempo – 3,5 milhões de anos – a criatura queimou a sola dos pés ao caminhar sobre as cinzas ainda quentes de um vulcão, deixando sobre elas suas marcas. Estas se fossilizaram e agora voltam à luz, após uma escavação dirigida pela paleontóloga britânica Mary Leakey financiada pela Nacional Geografic, associação americana que estimula e patrocina esse tipo de pesquisa.”
A corrente simpática ao afarensis como nosso ancestral argumenta, porém, conforme já dissemos antes, que o lugar estaria úmido no momento, sendo uma segunda erupção a lançar mais cinzas sobre as pegadas, preservando-as afinal. Pingos possivelmente de uma chuva momentânea também ficaram preservados, ao lado daquela marcha animal.
“A cratera fumegante do Sadiman encontrava-se à sua direita”, conforme Richard E. Leakey (filho de Mary e Louis Leakey) e Lewin (idem, pág. 71), que procuraram explicar este andar gingado com os chimpanzés (ibidem, pág. 76):
“Os outros músculos nos permitem andar equilibradamente em vez de gingarmos, como acontece com os patos ou os chimpanzés em suas breves incursões no bipedismo. (…). Se, no entanto, você fosse um chimpanzé, formar-se-iam duas linhas de pegadas: o chimpanzé coloca o peso do corpo sobre o pé direito, por exemplo, movendo seu corpo naquela direção e depois sobre o esquerdo, mudando outra vez o movimento; daí o andar gingado. Os humanos certificam-se de que os pés estão no centro antes de começar a andar.”
O antropólogo francês André Leroi-Gouhan concorda que esse australopiteco já apresentava sinais de artelhos voltados para fora e apoiando-se sobre a parte externa dos pés, mais ou menos como os patos.
O Dr. Russel Tuttle, professor de antropologia da Universidade de Chicago, acredita que a estrutura do pé e do joelho de Lucy poderia ser inteiramente esticada (“The New York Times”). Como dissemos antes, uma perna inteiramente esticada trazia então e traz a condição de um ser não poder dobrar os joelhos quando cada pé tocasse no chão. O homem, no seu andar, dobra os joelhos – simples assim. Conforme ainda o Dr. Russel Tuttle, a bacia e os pés de Lucy ainda conservam traços de habitantes de árvores, mas indicando uma recente transição para a vida terrestre. Isto, refrisando, não procede porque o afarensis era basicamente arbóreo. E, como quer que seja, tendo sido contemporâneo tanto do Homo habilis como do Homo erectus, impossível afirmar ter o mesmo evoluído para o que nós somos hoje.
Em análise posterior do terreno, por determinação das autoridades da Tanzânia, que queriam construir um museu em Laetoli, o pesquisador Fidelis Masao, da universidade local Dar es Salaam, e seus colegas encontraram outras pegadas de mais dois indivíduos. As primeiras pegadas foram atribuídas a uma família de dois adultos e um jovem. Com a identificação de pegadas de mais dois indivíduos, estudiosos da matéria propuseram uma nova teoria sobre a ordem social do grupo, de aplicação inimaginável à espécie humana. “Ao ver que mais dois adultos estavam presentes, podemos supor que eles eram semelhantes aos gorilas: um único macho dominante, acompanhado por suas fêmeas e seus descendentes”, afirmou Giorgio Manzi, da Universidade Sapienza, em Roma.
A descoberta de um fóssil de um hominídeo do sexo feminino, com três anos de idade, foi descrita na revista científica inglesa “Nature”, de 21 de setembro de 2006. A criatura estava num sítio arqueológico de Dikika, situado na margem direita do Rio Aonache, na Etiópia. A localidade é bem próxima de Hadar, onde em 1974 foi encontrada Lucy.
O novo achado, em bom estado de conservação, coube a uma equipe internacional liderada pelo pesquisador etíope Zaresenay Aleniseged, que trabalha no Instituto Max Planck de Leipzig, Alemanha. Como era da mesma espécie da famosa Lucy, recebeu o nome de “filha” desta.
O estudioso chileno René Bobe, da Universidade de Geórgia (EUA), frisou sobre o fóssil da “filha de Lucy”:
“O espécime é muito frágil, mas de diversas maneiras está mais para um chimpanzé do que para um ser humano. Ficou tão bem preservado, porque foi enterrado logo depois de morrer, talvez em uma inundação. Com três anos, essa garota provavelmente ainda era muito dependente de sua mãe. Mas já devia estar explorando a paisagem sozinha, por períodos curtos.”
Para Bernard Wood, da Universidade de George Washington, “o bebê de A. afarensis tinha braços capazes de subir em árvores, como o macaco. Era mais independente, como um chimpanzé.”
Retomando o tema da origem africana de hominídeos, ainda vem sendo procurado um suposto candidato para ancestral comum das espécies de Australopithecus posteriores e a corrente humana da evolução. Como mais ossadas de australopitecos se revelaram no Danakil, muitos paleoantropólogos observaram destacada divergência em seus crânios e tamanhos corporais.
Vale dizer que não uma, mas várias espécies de Australopithecus existiram em Danakil. E mais, qualquer uma delas – ou nenhuma delas, mais acertadamente – poderia ser ancestral do primeiro homem, o Homo habilis, nosso antepassado direto. Se bem observado comparativamente, o afarensis, não passou de um antropoide arbóreo, quiçá um grande símio, com raros hábitos semibípedes em descidas ligeiras até o solo. Detinha um cérebro cerca de 50 por cento menor do que o do homem moderno (650 cc contra 1.350 cc), do que se deduz uma inteligência limitada.
Achamos, todavia, que este seu referido bipedismo, badalado em reiteradas publicações científicas, não se sustenta. Haja vista que não lhe seria possível manter-se ereto por percursos médios e longos, carregando obviamente sobre suas inábeis pernas curtas um tronco pesado e braços enormes, além da cabeça. A relação do osso do seu braço superior (úmero) para o osso da perna superior ((fêmur) é próxima da de um chimpanzé em 95 por cento, sendo parecida com a do homem moderno somente em 70 por cento. A seu turno, o Homo habilis era dotado de bipedalismo a lhe proporcionar um melhor ângulo de visão, olhando as savanas por cima, e inteligência. Era também inteiramente divorciado da vida arbórea.
Essas primeiras criaturas humanas no parque natural da Terra deixaram provas de uso de ferramentas, como pedras afiadas para separar a carne da caça do osso, marcando o início do que chamamos de pedra lascada. Esses instrumentos líticos foram associados à tradição Oldowan, ou Olduvaiense, em referência à Garganta de Olduvai, na Tanzânia, onde foram primeiramente identificados, ou seja, sua localidade típica, que também precedeu as descobertas de Homo habilis.
O termo Olduvaiense, que se refere às primeiras indústrias líticas de hominídeos no Paleolítico Inferior africano, equivale ao que fora da África se denominou de Pré-Acheulense, Paleolítico Inferior Arcaico ou Cultura dos Seixos Trabalhados. Necessário destacar que os líticos africanos são mais antigos. O mesmo tipo de trabalho manual surgiu em Kada Gona, na Etiópia, com aproximadamente 2,6 milhões de anos atrás, e, um pouco mais tarde, no território de Hadar e novamente no Norte do Quênia, perto do Lago Turcana.
Lascas empoeiradas provenientes de lugar a Oeste do citado Lago Turcana, confeccionadas há 3,3 milhões de anos, não foram identificadas num primeiro momento como ferramentas. O interessante dessas lascas é sua datação, antecedendo o Homo habilis e coincidindo com o afarensis, que não produzia e nem manuseava líticos. Mais prudente seria frisar que o material não representou ferramenta nenhuma. O seu aspecto decorre de atritos naturais, como tantos e tantos fragmentos rochosos existentes no fundo de rios e lagos, em cascalheiras e até mesmo dentro de cavernas. Ademais, o primeiro homem foi datado de 2 milhões de anos atrás (o 1470), seguindo-se a descoberta da mandíbula de outro elemento de 2,8 milhões de anos passados, na Etiópia, sendo mais acertado, caso aquelas lascas, evidente pobres criativamente falado, sejam mesmo utensílios elaborados por alguma inteligência, atribuí-los ao primeiro homem mesmo, com elementos fósseis até presentemente não descobertos nas imediações da muito provavelmente inútil pedraria em questão.
A Garganta de Olduvai obteve notoriedade mundial no início dos anos 60, quando Louis e Mary Leakey trouxeram à tona um número expressivo de fósseis estudados à luz da evolução humana. Outros espécimes de hominídeos, provenientes do Quênia, demonstraram que eles se espalharam pelo Leste da África pelo Vale do Rift.
O mais famoso fóssil de um Homo habilis, de 2 milhões de anos, foi achado às margens leste do Lago Turkana. Recebeu o número de 1470 e acabou ficando assim conhecido. Foi exaustivamente estudado por Richard Leakey, sendo uma sua fotografia a capa do seu livro “Origens”. Esse antropólogo apontou como sua principal característica o cérebro grande, “com cerca de 800 cc (mais da metade do de um homem moderno)”, calculando sua idade entre 2 milhões e 2,5 milhões de anos.
Um achado que permitiu novas análises desse hominoide se deu em 1994, quando a primeira ossada completa de um Australopithecus afarensis masculino apareceu a menos de 10 quilômetros do local da morte de Lucy (que era uma fêmea de 1,1m e 29 quilos). No seu período de existência, o clima era seco, com as savanas substituindo as florestas anteriores.
Restaram visíveis as diferenças entre machos e fêmeas afarensis. O macho apresentava quase duas vezes o peso e o tamanho de uma fêmea, obviamente com massa muscular sobremodo destacada. É o que hoje chamamos de dimorfismo sexual, que serve para diferenciar os indivíduos de sexos distintos. Nos mamíferos o dimorfismo sexual se liga ao comportamento sexual, mas é difícil afirmar muito sobre o comportamento social dos afarensis. Assim examinado, quando comparado com a fêmea, depreende-se ter sido o macho bem mais esbelto, o mesmo provavelmente valendo em confronto com os demais tipos de australopitecos africanos do mesmo sexo. Enquanto existiu, o afarensis foi também melhor sucedido em relação aos demais da família Hominidae, ao que tudo indica, com exceção do gênero Homo.
A seleção sexual e o comportamento animal são dois fatores intimamente relacionados. Quando do ciclo reprodutor, animais do sexo masculino exibem características ornamentais raramente vistas nas fêmeas. Conforme registrou Charles Darwin, antes do acasalamento, a fêmea pode escolher um macho apenas entre seus inúmeros pretendentes. Ela opta por aquele portador de determinadas diferenças favoráveis em relação aos demais, que podem estar na coloração, na forma das penas e outros detalhes. Os caracteres do macho escolhido são transmitidos, pelos genes, para os descendentes machos. Consequentemente, os animais providos de cores vivas e atraentes, comportamentos sofisticados e estruturas bem desenvolvidas cruzam com maior frequência e deixam maior número de descendentes.
Podemos citar outro exemplo: o Australopithecus robustus macho tinha crânio maior que era dotado de uma crista dorsal proeminente. Este detalhe a mais lhe foi importante na competição com outros machos por uma fêmea para a cópula. A fêmea robustus era menor e não dotada da referida crista dorsal proeminente. Se bem que essa crista óssea no alto do crânio era uma inserção aos resistentes músculos mastigadores, estando presente em grande parte dos australopitecos, mas é ausente no A. afarensis. Os pré-molares e molares eram dentes grandes em relação aos incisivos.
O comportamento seletivo sempre definiu o comportamento sexual entre os humanos. Exemplificativamente, as fêmeas têm relações menos frequentes do que os machos, por lhe incumbir conceber e criar a prole, o que demanda tempo. Pelas ideias darwinianas, ela pode avaliar as características de um possível parceiro, tanto suas qualidades genéticas quanto a sua capacidade de sustentar os filhos. Para o homem, a cópula chega a ser uma atividade frequente e de baixo custo. Com um número significativo de parceiras disponíveis, ele tem probabilidade maior de disseminação dos seus genes, sendo, assim, menos exigente em suas escolhas no meio do universo feminino.
Segundo Marco Aurélio Baggio, presidente emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, no seu livro “69 Etapas Evolucionistas”, Santa Clara Editora, 2007, “a evolução quis destacar dois tipos distintos de conformação física, criando o papel específico do macho e da fêmea para se complementarem ao reproduzir um novo ser da espécie. A separação dos sexos foi uma esperta estratégia evolutiva para aumentar a diversidade das espécies, permitindo maior segurança contra a consanguinidade. A masculinidade produz milhões de gametas nadadores – os espermatozoides. As fêmeas produzem um único enorme gameta por vez – o óvulo. Sua fecundação por anisogamia – heterogamia – constitui um entre muitos outros sistemas naturais de reprodução. (…). A sexualidade é extremamente vantajosa para a ampliação do número de espécies de fungos, de plantas e de animais. O preço a pagar pela sexualização é o envelhecimento e a morte. Esta se dá mediante o desgaste interno do ser vivo, ao longo do seu ciclo vital, por apoptose ou tanose. A morte é a primeira e principal “doença” sexualmente transmissível.” Heterogamia é o tipo de reprodução sexuada com gametas diferentes, podendo ser do tipo anisogamia, na qual os gametas diferem no aspecto morfológico. O feminino é maior que o masculino. A apoptose é um tipo de morte celular programada, também sendo chamada de “suicídio celular”.
A subordem Anthropoidea é considerada a mais evoluída dos primatas e se subdivide em três superfamílias: dos Ceboidea, que são os macacos do Novo Mundo; os Cercopithecoidea, macacos do Velo Mundo; e os Hominoidea, que abrangem os pongídeos (gibões, chimpanzés, gorilas e homens). Estas três grandes famílias estrearam no cenário da Terra no Oligoceno (38 milhões de anos). Em épocas anteriores (Paleoceno e Eoceno), os prossímios arbóreos, como lêmures, társios, lóris e aiais (lêmure noturno de Madagascar), são os únicos fósseis. Restos de pongídeos são mais encontradiços que os dos demais macacos. Esses primatas sem cauda são tidos como os mais evoluídos do mundo animal, e podemos frisar que os ancestrais dos homens se ligam aos mesmos.
O homem não descende de nenhum macaco, sendo apenas primo deste. Os primatas atuais mais próximos do homem são os monos, compreendendo chimpanzé, gorila, gibão e orangotango. Mono é designação comum a antropoides primatas em geral, particularmente aos não dotados de cauda e detentores de longos braços. Todos possuem esqueleto, fisiologia, susceptibilidade aos parasitas, grupos sanguíneos e outros caracteres muito semelhantes aos Homo, porém sem ser nossos ancestrais. Nossa evolução foi separada da desses símios, que hoje vivem nas matas.
O gibão, por exemplo, um primata superior como os homens, tem uma curiosa aparência que o distingue de nós: quando abandona os galhos, nos quais se locomove em braquiação (balanceamento dos braços), em busca do chão, o faz de maneira bípede, ao contrário dos outros seus três congêneres (gorila, chimpanzé e o orangotango), que o fazem com os quatro membros. Porém, para andar a céu aberto, em busca de um equilíbrio, o gibão estica os braços para trás, assim sem liberar propriamente as mãos. A liberação das mãos foi essencial à hominização.
A bipedia no homem é perfeita, tendo a sua bacia pélvica como suporte do tronco. A coluna vertebral, com as quatro curvas que se opõem simultaneamente, cria, ao lado da bipedia, a verticalidade completa em nossa espécie. Esta mesma coluna vertebral mantém o crânio no topo, em posição de equilíbrio. Duas consequências resultam desta postura: a liberação das mãos e a possibilidade do desenvolvimento do crânio com relação à diminuição do tamanho da face e dos maxilares. Estes fatores essenciais à hominização não estão presentes nos demais primatas. O desenvolvimento do crânio e aprimoramento da face e dos maxilares estão implícitos na bipedia, sem serem isoladamente causas da hominização.
O aumento do volume do crânio e a diminuição do tamanho da face e dos maxilares são consequências da posição de equilíbrio do crânio humano sobre a coluna vertebral. Esta, nos símios, não sustenta o crânio por baixo, mas vem encontrar o buraco occipital por trás. No homem, o buraco occipital encontra-se exatamente no centro inferior. A cabeça do símio teria assim tendência a cair para a frente, se não fosse a poderosa musculatura que, partindo em feixe do pescoço e da nuca, vem retê-la sobre a coluna vertebral.
Os seres humanos, ao contrário de outros primatas, têm pouco pelo no corpo, o que se explica por ele ser dotado de um sistema de refrigeração próprio, ausente em qualquer outro primata: a transpiração pelos poros do seu corpo. Acreditamos que todos os diversos tipos de australopitecos eram inteiramente cobertos de pelos, porque nunca foram propriamente pertencentes ao puro gênero Homo. O afarensis, em particular, para nós um hominoide traduzido em um grande símio, a exemplo daqueles seus congêneres, se mostrava revestido de pelos, o que é uma conclusão nossa.
Para sobreviver debaixo do sol equatorial africano, a pele assim desnuda do homem teria de ser (como era) protegida por uma quantidade considerável de melanina, pigmento escuro que protege o tecido da luz ultravioleta. Esta é a razão de o homem ser originariamente negro. Quando ele migrou para regiões ao norte da Terra, nas quais os raios solares são bem mais escassos, há cerca de 45 mil anos, tempo este relativamente recente, sua cor foi clareando porque a referida pigmentação, proteção natural contra possíveis queimaduras e doenças como câncer de pele, foi perdendo sua importância e permitindo uma melhor absorção da luz ultravioleta, fonte vital de vitamina D.
Acresce notar, a propósito, que estudos em um esqueleto de 10 mil anos, batizado de homem de Cheddar, encontrado em Cheddar, no Reino Unido, especialmente com a reconstituição do seu rosto em um scanner de alta tecnologia, revelou um fenótipo totalmente oposto à pele branca de muitos britânicos. Era um tipo negro de olhos azuis. “A combinação de uma pele muito escura com olhos azuis não é o que normalmente imaginamos, mas essa era a aparência real dessas pessoas”, disse Chris Stringer, do Museu de Ciências Naturais de Londres, onde a imagem do homem de Cheddar foi exposta.
O Homo habilis (“pessoa habilidosa”) era onívoro, alimentando-se tanto de animais como de vegetais, podendo colher seus alimentos e levá-los para comer tranquilamente longe de competidores, desenvolvendo também destreza artesanal. A seu turno, o Australopithecus afarensis, que cientificamente não é classificada no gênero Homo, sendo apenas da família Hominidae, tinha uma dieta suave voltada para lagartos, ovos, pequenos mamíferos e frutas. Seus dentes eram pequenos e sem especialização. E nem seria conveniente se pensar de forma diferente, uma vez que a cabeça de um afarensis comportava um cérebro que não era muito maior que o de um chimpanzé, indicativo de uma inteligência rudimentar, sem ter sequer produzido ferramentas e não fazendo uso do fogo.
Se bem que a inteligência não é apenas uma conquista humana. Ela é notada em outros animais, mesmo em proporções diminutas, que possuem algum grau de reconhecimento, capacidade de elaboração de instrumentos de trabalho e tendo soluções simples para buscar alimentos. Cientistas da atualidade concluíram por vários graus de complexidade inteligente em mamíferos, como golfinhos, elefantes e principalmente entre primatas. Constataram que o homem compartilha com eles algumas características, que antes se achava exclusividade nossa. A linguagem simbólica é um desses exemplos, sendo compartilhada entre primatas como o chimpanzé. Também a caça cooperativa, comum entre os homens pré-históricos, sempre foi praticada entre inúmeros mamíferos.
Por outro lado, o desaparecimento de determinadas espécies nunca foi fato incomum na pré-história. Tomemos como melhor exemplo o próprio Australopithecus afarensis, que, quanto mais estudamos, percebemos tratar-se de um aborígene com alguma capacidade de descer até o solo. O Homo habilis, o Homo erectus e o Homo sapiens nunca levaram a vida, ou mesmo parte dela, em árvores, chegando a escalá-las em ocasiões específicas, como fugindo de um predador, em busca de frutas ou para verificação de um território propício a caçadas, por exemplo.
Conhecemos uma reconstituição do seu fóssil mais famoso, Lucy, no Museu de História Natural dos Estados Unidos, em Nova Yorque, em 2017. Se muitos a querem como um ser bípede, estudos recentes mostraram que Lucy passava grande parte do seu dia em árvores, possuindo braços fortes o suficiente para subidas regulares em suas ramagens superiores, ao passo que suas pernas eram relativamente fracas, não utilizadas na escalada e ineficazes para caminhar.
Outra pesquisa, publicada em setembro de 2016, na revista “Nature”, concluiu que esse A. afarensis morreu ao cair de uma árvore particularmente alta, ao pular de um galho para outro, conclusão a que se chegou ao se analisar uma fratura óssea nos restos fossilizados desse hominídeo.
“WASHINGTON, EUA. Lucy, a famosa Australopithecus que viveu há 3,18 milhões de anos, provavelmente passava ao menos um terço do seu dia em árvores, de acordo com uma pesquisa divulgada na última quarta-feira.
Nossa antiga ancestral (sic), cujo esqueleto parcial fossilizado foi descoberto na Etiópia em 1974, provavelmente se movia tanto como um chimpanzé moderno quanto como um homem moderno, de acordo com um novo estudo publicado na revista científica “Plos One” por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, Maryland, e da Universidade do Texas, em Austin.
Esse exemplar de Australopithecus afarensis, de cerca de um metro de altura, vem confundindo os paleontólogos há anos. Eles debatem se o hominídeo bípede de 27 quilos passava a maior parte do tempo no chão, como os seres humanos modernos, ou nas árvores, como os chimpanzés.
O estudo concluiu que Lucy tinha braços fortes, sugerindo que ela subia em árvores regularmente, e pernas relativamente fracas, que não eram utilizadas na escalada e que eram ineficazes para caminhar.
A combinação das duas descobertas levou os pesquisadores a concluírem que Lucy provavelmente se aninhava em galhos de árvores durante a noite, a fim de evitar predadores, usava seus braços para se locomover entre as árvores e possivelmente procurava alimentos entre os ramos.
Os pesquisadores analisaram os ossos de Lucy combinando 35 mil imagens individuais tomadas por um poderoso scanner capaz de penetrar nas camadas de minerais em seus restos fossilizados e de produzir imagens de alta definição.
Eles estudaram as estruturas internas dos ossos superiores dos dois braços de Lucy e do fêmur de sua perna esquerda e descobriram que seus membros superiores eram altamente desenvolvidos – sugerindo que eles tinham músculos fortes, semelhantes aos dos chimpanzés modernos que escalam árvores.
“É um fato bem estabelecido que o esqueleto responde às cargas durante a vida, adicionando ossos para resistir a forças elevadas e subtraindo ossos quando as forças são reduzidas”, disse John Kappelman, professor de antropologia da Universidade do Texas e um dos principais autores da pesquisa.
Robustez. Os esqueletos de chimpanzés têm membros superiores mais robustos, porque usam os braços para escalar, enquanto os humanos têm membros inferiores mais desenvolvidos devido à caminhada, de acordo com Christophe Ruff, professor de anatomia da Universidade Johns Hopkins e coautor do estudo. “Os resultados sobre Lucy são convincentes”, disse.
Outro estudo divulgado em setembro concluiu que Lucy provavelmente morreu ao cair de uma árvore particularmente alta. A pesquisa, publicada na revista britânica “Nature”, chegou a essa conclusão após a análise de uma fratura óssea nos restos fossilizados do hominídeo. Mas os cientistas tiveram dificuldades para determinar exatamente quanto tempo Lucy passava fora do chão. O novo estudo sugere que, se ela dormisse cerca de oito horas por dia, teria passado pelo menos um terço de seu tempo entre os galhos.
Outras comparações sugerem que, mesmo quando Lucy caminhava sobre suas duas pernas, ela fazia isso de forma menos eficiente do que os humanos modernos, com uma capacidade limitada de se mover por longas distâncias a pé.” (Jornal “O Tempo”, Belo Horizonte, 03/12/2016).
Este autor ao lado da reprodução do fóssil de Lucy, no Museu de História Natural dos EUA, em Nova York. (Foto de Lorena Campos).
A razão do surgimento do bipedalismo continua sendo estudada, mas sem nada conclusivo, e tal assunto por certo permanerá inconclusivo por todo o sempre. Uma entre tantas especulações pode ser encontrada no livro “Os Primeiros Americanos”, de J. M. Adovasio e Jake Page (Editora Record, Rio de Janeior e São Paulo, 2011, págs. 100/101):
“Na verdade, a postura ereta e a locomoção bípede foram as adaptações mais radicais levadas a cabo pelos nossos ancestrais naqueles tempos remotos. Provavelmente nunca saberemos quais as características do meio ambiente ou outros fatores que estimularam aquela adaptação revolucionária e fundamental, mas é possível que um surto de temperaturas frias em algum momento do Plioceno, entre 6,5 milhões de anos e 5 milhões de anos atrás, tenha desempenhado um papel. De acordo com essa hipótese, a expansão da camada de gelo no Antártico fez baixar o nível do mar no mundo inteiro, incluindo o Mediterrâneo. Isso, por sua vez, alterou o esquema de precipitação pluvial nas florestas da África e acabou por fazer com que se retraíssem. Em consequência da redução da cobertura florestal, numerosas espécies arbóreas de primatas sumiram, enquanto outras se tornaram, pelo menos em parte, terrestres.
“Para alguns desses novos animais terrestres, o andar ereto ofereceu certas vantagens. Eles poderiam, por exemplo, percorrer longas distâncias com menor dispêndio de energia. A vida nas árvores pode parecer simples, a julgar pelo comportamento dos macacos de hoje: basta deslocar-se sem precipitação e acompanhar o ciclo regular de frutificação das árvores da floresta. Já os que caminhavam no solo precisavam explorar áreas mais vastas a fim de encontrar o que comer. Do mesmo modo, o bipedalismo liberava os membros superiores para poderem carregar o alimento coletado, e também para manejar objetos (varas, por exemplo), os quais por sua vez, podiam facilitar o achado da comida. Com os membros superiores livres, o bípede era capaz também de carregar os filhos para onde quisesse.”
Os mesmos autores são de opinião que numerosos episódios de esfriamento e secagem ocorreram nas latitudes médias do planeta, entre 3 milhões e 2 milhões de anos atrás, sendo que “como resultado, a cobertura florestal na África voltou a diminuir, a savana aberta cresceu, e a transferência de espécies adaptadas à floresta para a savana continuou”.
Ora, como já consignado, a postura bípede existia há cerca de 3 milhões de anos, portanto aqueles novos fenêmenos ambientais registrados entre 3 milhões e 2 milhões de anos atrás poderiam ter representando pouco para a bipedia humana, lembrando ainda que o A. afarensis tinha pelo menos um andar bastante precário no solo, há 3,18 milhões de anos. Ademais, há as pegadas de criaturas que caminharam em pé em cinzas vulcânicas pulverizadas com 3,5 milhões de anos atrás, em Laetoli, na Tanzânia. Queremos crer que pelo menos o processo de diminuição do ciclo de águas, que deu lugar aos campos abertos na África, teve início há mais de três milhões de anos, talvez se iniciando há cerca de quatro milhões de anos, não mais, lembrando que os mesmos autores mencionam temperaturas frias em algum momento do Plioceno, entre 6,5 milhões de anos e 5 milhões de anos atrás, quando as florestas dominavam o cenário.
Enfim, o homem surgiu ali pelas planícies das atuais nações africanas Quênia, Tanzânia e Etiópia (situadas numa linha denominada de Vale da Grande Fenda, uma decorrência de falha na crosta terrestre), há 2,8 milhões de anos. Era o supramencionado Homo habilis, o pai da nossa espécie, estreando no parque natural da Terra.
Esta sua idade novamente se comprovou com a descoberta, por um estudante, de um fragmento de sua mandíbula com cinco dentes, em 2013, em uma região de rastreamento em Ledi-Geraru, na Etiópia, o que levou a comunidade científica a proclamar tratar-se do mais antigo resto do indivíduo Homo, ou seja, o Homo habilis, que inaugurou nossa linhagem. O extraordinário achado, antecipando em 400 mil anos a origem do homem, logo ocupou as revistas científicas especializadas no tema e a mídia internacional:
“Encontrados há apenas dois anos na árida região de Ledi-Geraru, no Estado de Afar da atual Etiópia, fragmentos de uma mandíbula datados de 2,8 milhões de anos podem ser os mais antigos restos de um indivíduo do gênero Homo conhecidos, anteriores em 400 mil anos aos mais velhos que já tinham sido achados.
Com dentes menores que os vistos nos australopitecos e um formato mais proporcional e peculiar, os pesquisadores acreditam que a mandíbula reconstituída pertenceria a um representante da espécie Homo habilis (…). Além disso, a idade do fóssil e o local onde foi encontrado o coloca perto do tempo e no espaço ao fóssil da famosa Lucy, que está entre os mais bem preservados e antigos restos de um indivíduo da espécie Autralopithecus afarensis, encontrados em 1974 no sítio de Hadar e datados em pouco mais de três milhões de anos.
– O registro fóssil no Leste da África, entre dois milhões e três milhões de anos atrás, é muito pobre, e existem relativamente poucos fósseis que podem nos dar informações sobre as origens do gênero Homo – lembrou Brian Villmoare, paleoantropólogo da Univerisade de Nevada, nos EUA, e um dos líderes da pesquisa, publicada na edição desta semana da revista “Science”, em teleconferência ontem. – Este, porém, é um dos períodos mais importantes da evolução humana, já que, nesta época pouco conhecida, os humanos fizeram a transição dos mais símios autralopitecos para os padrões adaptativos modernos vistos nos Homo. Assim, o que há de tão especial nessa mandíbula não é só sua idade, muito mais velha que qualquer exemplar de Homo conhecido até agora, mas também sua combinação única de traços, da altura da mandíbula ao formato dos dentes, que a faz uma clara transição entre os australopítecos e os Homo. O fato de ter características tão claras alinhadas com as dos Homo há 2,8 milhões de anos nos ajuda a restringir o tempo dessa transição e sugere que ela foi relativamente rápida.
Em outro artigo também publicado na “Science” desta semana e que acompanha o estudo sobre o fóssil, os cientistas procuraram descrever o contexto geológico e ambiental onde ele foi encontrado. Há tempos os especialistas desconfiam que mudanças climáticas ocorridas nesta época na África, com exuberantes selvas dando lugar a uma paisagem mais árida, parecida com as atuais savanas, estimularam um processo de adaptação que foi responsável pelo fim dos australopitecos e emergência dos Homo. Na mesma área onde a mandíbula foi encontrada, os pesquisadores acharam fósseis de espécies pré-históricas de antílopes, elefantes, hipopótamos e outros animais relacionados com habitats mais abertos, dominado por grama alta e arbustos e com árvores mais espaçadas.
– Podemos observar esse sinal de maior aridez há 2,8 milhões de anos na fauna comunal de Ledi-Geraru – disse Kaye Reed, professor da Universidade do Estado do Arizona, outro integrante da equipe responsável pela descoberta, que participou da teleconferência da Etiópia. – Ainda é cedo para dizer que isso significa que as mudanças climáticas foram responsáveis pela origem do gênero Homo. Para isso, precisamos de uma amostragem maior de fósseis de hominídeos e é por isso que continuamos a vir para a região de Ledi-Geraru em busca deles. O que sabemos é que esses Homo antigos conseguiram viver neste habitat razoavelmente extremo e que, aparentemente, a espécie de Lucy, os Australopithecus afarensis, não.
Já um terceiro estudo relacionado ao tema, também publicado ontem, mas na revista “Nature”, revisitou o fóssil original que permitiu a identificação pela primeira vez do Homo habilis há pouco mais de 50 anos e revelou que, entre 2,1 milhões e 1,6 milhões de anos atrás, pelo menos três espécies representantes do gênero conviveram na África: além do H. Habilis, o H. Erectus e o H. rudolfensis. Encontrados nos anos 1960 pelo respeitado e já falecido Louis Leakey na região de Olduvai, na Tanzânia – e que, por isso, recebeu o apelido de “Berço da Humanidade” -, os restos fragmentados de crânio e mandíbula serviram de base para uma reconstrução em 3D de como seria a cabeça completa de um representante da espécie, evidenciando características que antes não puderam ser notadas pelos especialistas.” (“O Globo”, globo.com, Cesar Baima, 04/03/2015).
Os fragmentos fósseis de uma mandíbula do mais antigo representante gênero humano (Homo habilis), encontrados na Etiópia em 2013.
A propósito deste Homo rudolfensis, pesquisas diversas o consideraram tão somente uma variação do Homo habilis, com uma coexistência há dois milhões de anos e compartilhando muitas semelhanças, sendo ambos, por conseguinte, uma única espécie. Estudos outros mostraram que seriam grandes as diferenças entre os dois. Esta a razão para não serem inseridos dentro de uma mesma espécie. Esse elemento chegou a ser considerado habilis e rudolfensis, isto é, dois tipos raciais coexistindo, quando é certo ser a raça humana uma só, não comportando nenhuma exceção.
Condições ambientais diversas buscadas para habitação e sobrevivência hominídea e também isolamentos geográficos acabam por vezes mostrando pequenas mutações numa mesma raça. O isolamento genético de um grupo social acaba trazendo tais alterações. Os genes mutados se misturam nos seres de cada grupo populacional, e cada um desses grupos tem alterado seu genótipo e mesmo o fenótipo, pela incorporação ao seu patrimônio hereditário dos genes que sofreram mudanças. Confinamentos de tal ordem chegam mesmo a redundar no aparecimento de subespécies ou variedades de uma mesma espécie.
Todavia, esse H. rudolfensis chegou a também ser contemporâneo do Homo erectus, tendo este último vivido entre 1,8 milhões de anos ou 1,6 milhões de anos atrás e 100-200 mil anos atrás. A coincidência da igualdade temporal dos dois não é um bom sinal para tentarmos colocar o homem de Rudolf como o primeiro homem, em detrimento do Homo habilis. Para ser o primeiro homem, o mesmo teria de vir antes do Homo erectus, e nunca ter sido seu contemporâneo.
Através de trabalhos com moldes do interior de crânios fósseis que fez, o antropólogo americano Ralph L. Holloway, da Universidade Colúmbia, localizou indícios da área de Broca (um dos vários centros da região cerebral imprescindíveis à fala) num fóssil de Homo habilis de mais de dois milhões de anos, do que se conclui que o desenvolvimento da linguagem pode ter começado ao lado já das primeiras indústrias líticas (no caso, uma linguagem onomatopaica), conforme é possível ler no antes citado livro “O Homem na Pré-História do Norte de Minas”, pág. 17. Cérebros humanos modernos têm uma protuberância que corresponde à área de Broca, que, refrisando, é importante centro da fala.
Acresce notar ainda que o Homo habilis difere do A. afarensis na base do crânio. O buraco occipital, que é a abertura para a medula espinhal, é mais próximo da média do crânio. O rosto desse primeiro homem diminuiu em largura e sua abertura nasal é mais bem definida, sendo seus dentes postcaninos menores do que em australopitecos.
Ostentava um cérebro que poderíamos considerar pequeno para os padrões atuais, mas que se destacou a seu tempo se comparado com o de seus predecesssores: entre 650 e 700 centímetros cúbicos (e não 800 centímetros cúbicos, “o dobro do tamanho do de Lucy”, como sugeriu R. Leakey). Seu sucessor, o Homo erectus, possuía 900 centímetros cúbicos, vindo após o Homo sapiens, os homens modernos que somos nós, com cerca de 1.300/1.400 centímetros cúbicos de cérebro (no homem de Neanderthal o cérebro chegava a 1.500 cc).
Se não somos propriamente velocistas quando nos comparamos aos quadrúpedes, somos os únicos primatas e um dos poucos mamíferos a praticar corridas de resistência, como cavalos e cães: “Pensa-se que a corrida de resistência evoluiu com o gênero Homo, uma vez que algumas das especializações que permitem resistência em execução (como dedos curtos, um dedão do pé aduzido, uma cabeça mais equilibrada, ligamentos do pescoço e um cacâneo alargado) evoluiu no Homo habilis. Outras características (tais como canais ampliados semicirculares, antebraços mais curtos e maior quadril, perna e locais de fixação muscular nas costas, pernas mais longas e uma articulação sacro-ilíaca mais forte) evoluíram em Homo erectus. E vários outros recursos (a cabeça que era mais independente a partir do ombro, uma estreita pleve, um pé arqueado e um longo tendão calcâneo) evoluíram cedo na linhagem Homo, embora o ponto exato seja desconhecido” (Bramble, 2004).
A hominização, que é a evolução física e intelectual do homem, de sua origem até hoje, se mostrou diferente em relação aos antropoides, mormente pelo tamanho do seu encéfalo e mandíbula, por sua postura ereta e constituição de relações sociais complexas. O nosso desenvolvimento e morfologia se resumem na genética. O DNA, que traz o código genético de um organismo, é que mostra as diferenças registradas entre nós e os demais animais. Os cromossomos, que estão em cada uma das células, é que constituem o DNA. A célula é a unidade vital dos organismos complexos, sendo a vida resultante das funções de todas as células. Os organismos vivos podem ser manipulados pelo homem pela engenharia genética, o que já acontece.
Incursões pelo genoma ainda são tímidas, quando o ideal seria seu manejo com mais coragem e acuidade. Infelizmente, desde o nascedouro do Projeto Genoma, descortinando novas perspectivas alvissareiras para a humanidade e com o condão de abrir muitas cortinas sobre nossas origens, este marco, talvez o passo mais avançado da ciência moderna, encontra-se hoje praticamente estagnado.
Como se pode perceber raciocinando mesmo razoavelmente, uma parte considerável dos pesquisadores envolvidos mostra-se temerosa diante do pensamento e julgamento conservador de terceiros, com suporte especialmente em princípios religiosos, como sempre, proclamando estar o homem “brincando de Deus”. Ou seja, levado novamente adiante, o genoma nos proporcionará horizontes mais amplos sobre passado, presente e futuro, ao lado de aguardadas novas descobertas no campo da arqueologia.
“O conjunto de evidências indica que nossa evolução não foi nem especial nem atípica com relação à de outros animais. Assim, seria de esperar que aquilo que sabemos sobre a evolução de outras formas de animais também deve servir, de modo geral, aos humanos. De fato, nossa extrema proximidade genética dos chimpanzés, bem como as semelhanças genetícas entre primatas e outros mamíferos, apontam para um tema familiar. Os conjuntos de genes para a formação desses animais e dos seres humanos são bastante parecidos. As diferenças na morfologia final – tanto as grandes quanto as pequenas – devem, portanto, estar relacionadas ao modo como esses genes são utilizados – ou (…) como deixam de ser usados.
A causa essencial das alterações evolutivas no desenvolvimento e na morfologia dos seres humanos é a genética. Em algum lugar de nosso DNA residem as diferenças entre nós, os grandes primatas e os primeiros hominídeos. (…) A boa notícia é que já conhecemos a sequência completa dos genomas de um ser humano, um chimpanzé e um camundongo. A má notícia envolve um pouco de aritmética. A sequência do DNA humano é composta por três bilhões de pares de bases. A do chimpanzé é cerca de 98,8% igual à nossa. É uma dirença total de apenas 1,2% a menor entre qualquer outro animal do planeta. (…)
…mudanças nos interruptores genéticos são responsáveis por muitas diferenças na morfologia animal. Como a evolução humana se dá essencialmente pela alteração do tamanho, forma e anatomia detalhada das estruturas e do momento em que são geradas ao longo da enbriogênese, é natural que a evolução dos interruptores tenha um papel relevante. Cada aspecto de nosso corpo é uma variação do modelo geral dos mamíferos ou primatas. Isto nos permite acreditar que os indícios genéricos nos mostram a evolução dos primatas e humanos devendo-se mais a alterações no controle dos genes que nas proteínas que condificam.” (Sean B. Carrol, professor e biólogo, em “Infinitas formas de grande beleza”).
Giro outro, os pouquíssimos fósseis humanos conhecidos da sua aurora surgiram em pontos ínfimos da Terra, ao contrário de restos de organismos mais remotos, tipo plantas e animais como trilobites e amonites. Fósseis marinhos pulularam por uma diversidade de locais em que surgiram e viveram, ao que se soma um tempo sobremodo maior de vida naqueles ambientes bastante favoráveis à fossilização.
Os homens são tardios na escala do tempo biológico e sequer surgiram em grande número. Inteligentes, ocuparam terras firmes, evitando por inteiro charcos, proximidades de areias movediças, atoleiros, lugares pantanosos e barreiros (os cinco últimos apropriados à fossilização), ao contrário de uma gama de outros animais muito bem documentados no registro fóssil ocupantes desses lugares inconvenientes ao Homo. Mesmo caçadores/coletores, aqueles nossos antepassados ainda buscavam caminhos mais seguros em suas andanças e mudanças.
Portanto, quando morriam, de um modo geral, os seus ossos eram facilmente triturados por animais predadores ou carniceiros, sendo também roídos por roedores e mesmo corroídos ou raspados po diversas espécies de formigas. Esta a razão do escasso registro fóssil dos primeiros homens, e mesmo seu verdadeiro ancestral sequer foi encontrado até presentemente. É uma balela querer inferir verdade em estudos pífios e apressados tentando dar o Australopithecus afarenis como esse ancentral. Tudo bem sopesado, refriso ser Lucy e congêneres, contemporâneos do primeiro e do segundo homens, tão somente grandes símios peludos, de vida basicamente em cima de árvores e inteiramente fracassados evolutivamente.
Somente quando o homem mais evoluído e, por conseguinte, portador de uma cultura mais acurada passou a ter domínio do fogo e a enterrar seus mortos – Homo erectus e o Homem de Neanderthal -, é que esses restos e muitos dos seus materiais, como líticos e adornos, se tornaram abundantes à coleta arqueológica, em escavações nas moradias pré-históricas, mormente em cavernas da Europa, Oriente Médio, Índia e China.
Essa escassez de registros fósseis da aurora da humanidade é que tem levado uns poucos cientistas a repreender um número até exagerado de colegas entusiasmados que, de posse de um fragmento fóssil qualquer, principalmente se for de procedência africana, partem para a publicação de artigos em revistas especializadas prometendo revolucionar a história da nossa origem.
Na verdade, creio que uma parte considerável desses achados absolutamente nada têm a ver com o homem ou, quando muito, seriam de seus primos distantes. Para mim, é o caso, por exemplo, do Australopithecus afarensis.
Vejamos.
“Cientistas questionam fósseis de hominídeos. (…) “Não me leve a mal, todas essas descobertas são muito importantes”, disse a Nature o coator do artigo Bernard Wood, professsor de origens humanas e evolução anatômica da Universidade George Washington, além de diretor do Centro de Estudos Avançados de Paleontobiologia Hominídea da instituição. “Mas também não podemos dizer que qualquer coisa encontrada daquela época tem de ser um ancestral humano”, podera.
O artigo The evolutionary context of the first hominins (O contexto evolutivo dos primeiros hominídeos) reconsidera a relação evolutiva de fósseis batizados de Orrorin, Saelantropus e Ardipithecus, que datam de sete milhões de anos atrás e foram aclamados como os mais antigos ancestrais do homem moderno. O Ardipitecus, mais conhecido como Ardi, foi descoberto na Etiópia e, segundo os autores, é radicalmente diferente do que muitos pesquisadores esperavam de um primeiro ancestral humano. Ainda assim, os cientistas que acharam o fóssil insistiram que Ardi era uma espécie de Adão.
“Não estamos dizendo que os fósseis não são ancestrais humanos. Mas temos de levar em conta interpretações alternativas. Acreditamos que esses fósseis são mais provavelmente de primatas que, na árvore da vida, estão situados muito próximos ao ancestral comum dos grandes símios e dos humanos”, explicou outro autor do artigo, Terry Harrison, professor do Departamento de Antropologia e diretor do Centro para Estudo de Origens Humanas da Universidade de Nova York. Os autores confessam que são céticos quanto às interpretações e descobertas da última década e defendem uma nova abordagem para a classificação dos fósseis. Harrison e Wood argumentam ser precoce assumir que todos os ossos escavados são ancestrais de criaturas que vivem no mundo moderno.
A comunidade científica concluiu, há tempos, que a linhagem humana divergiu daquela que deu origem aos chimpanzés entre 6 e 8 milhões de anos atrás. É fácil diferenciar, hoje, o fóssil de um chimpanzé moderno dos ossos de um homem moderno. Porém, a tarefa fica mais árdua quando as espécies em questão são muito antigas. Quanto mais próximas do ancestral comum, mais difícil é diferenciá-las. Em seu artigo, os antropólogos dizem que os cientistas têm sido pouco críticos nesse quesito, o que pode levar a conclusões erradas sobre as relações evolutivas.” (PO – jornal “Estado de Minas”, 17/02/2011).
Ou seja, o processo de hominização, através do qual o homem evoluiu física e intelectualmente desde sua origem primata ao que representa hoje, com sua diferenciação dos antropoides pelo andar perfeitamente ereto, cérebro e arcadas dentárias maiores, crescimento craniano paralelamente com a remodelagem da pelve, permitindo o nascimento de crias de cérebros avantajados, seu modus vivendi com relações sociais complexas, etc., com certeza, foi muito mais rápido do que se pensa. Creio mesmo que esse elo perdido, digamos assim, nosso verdadeiro ancestral, surgiu não entre 6 e 8 milhões de anos atrás, mas em época mais próxima do Homo habilis com seus aproximadamente 3 milhões de anos. Não se conhece muita coisa no período compreendido entre 4 milhões de 12 milhões de anos atrás.
Dissemos que mudanças climáticas vinham destruindo as florestas habitadas pelos grandes símios. Uma drástica redução nas precipitações pluviais naquela vasta extensão de terreno coberta de grandes árvores com suas copas se tocando acabou por retraí-las. Inúmeros primatas arbóreos se extinguiram, dando lugar a outras criaturas, entre elas diversas que se arriscavam pelo chão, pelo menos em parte, porque sua evolução compreendeu também uma convivência em campos abertos.
Alfred Russel Wallace (1823 – 1913) concluiu que “as espécies são compostas por diversas variedades e que mudanças ambientais podem levar à perda de variedades pior adaptadas e ao sucesso e sobrevivência das mais favorecidas. Em outras palavras, ele chegou, em paralelo, às mesmas conclusões de Darwin sobre um aspecto-chave da teoria evolucionista” (“Evolução – A História da Vida”, de Douglas Palmer, Larousse, edição brasileira de 2009).
Os seres readaptados deparavam-se frequentemente com predadores como tigres e hienas, numa evidente pressão seletiva rumo a criaturas mais parecidas com a espécie humana. A alteração do clima no berço da humanidade – Quênia, Tanzânia e Etiópia – constituiu-se, pois, na mola propulsora rumo à hominização. Foi ela, com certeza, fator preponderante, como pressão seletiva, para o surgimento do elemento inteligente para, por exemplo, produzir artefatos de defesa e de caça de sobrevivência.
Etiópia, Quênia e Tanzânia, berço da humanidade, e seus pontos marcantes.
Ante deduções precipitadas acerca da diferenciação de uma espécie de outra, ademais quando tratamos de seres próximos nesta escala de tempo, é indubitável que conclusões errôneas se multipliquem entre os afobados na remontagem do início da história humana. Isto é, qualquer fóssil, mesmo o mais insignificante, é abraçado pela corrente dos apressados na descoberta do ser que efetivamente redundou na nossa família. Grosso modo, interpretações alternativas vêm sendo deixadas de lado, esquecendo-se do que realmente temos hoje: fósseis, muitos dos quais evidentemente mais próximos dos grandes símios, sendo avocados como pré-humanos.
Por exemplo, foi descoberto em 2001, no Chade, no deserto do Saara, um pedaço de crânio, nada mais, o qual combinaria traços entre chimpanzés e hominídeos. Com idade de 7 milhões de anos, foi batizado de Saheanthropus tchadensis, portanto seria o mais primitivo hominídeo. Mas diante da ausência de outros ossos, a não ser o pedaço de crânio, sequer foi possível saber qual a postura desse indivíduo, hoje sem grande importância.
Ora, os novos campos abertos, como as savanas, surgidos pelos novos tempos de aridez, em grande parte, eram inapropriados à fossilização, principalmente quando tratamos dos homens, originariamente pouco numerosos e tardios na escala do tempo biológico. Como já registramos, na nossa aurora, vivemos em solo firme, evitando charcos, proximidades de areias movediças, atoleiros, lugares pantanosos e barreiros, cuja lama, ou aluvião, deles oriunda, uma vez revestindo um animal morto, assegurava a sua fossilização e uma descoberta arqueológica posterior relativamente fácil.
É o que ficou frequentemente registrado nas cavernas geralmente úmidas, muitas invadidas por águas de enxurrada, sendo comuns nessas cavidades, que serviram de moradia ao nosso troglodita, o encontro de restos humanos.
Os cientistas são de opinião que a origem dos hominídeos ocorreu há 10 milhões de anos. Foi quando eles se afastaram dos demais primatas. O chimpanzé, o primata mais próximo geneticamente do homem, não passa de nosso primo, e não de nosso avô. O ancestral comum e de tronco único é o fóssil ainda não encontrado, sendo bastante incerta a sua descoberta.
As regiões úmidas de determinadas coberturas vegetais africanas anteriores às mudanças climáticas seriam propícias à fossilização das espécies. Mas nada temos de concreto ou de palpável oriundo dessas extintas florestas. O mais certo seria achar o elo perdido naquelas áreas que substituíram as grandes coberturas florestais, apesar dos seus predadores e também outros fatores adversos. Todavia, esta sorte não foi dada a ninguém até este momento, e um achado de tamanha importância só se daria em caso extremamente fortuito. Se a evolução é descendência com modificação, segundo Charles Darwin, a descendência está atrelada às antigas florestas africanas, sendo que as modificações levando ao Homo habilis aconteceram mercê da nossa adaptação às savanas.
Em nosso referido livro, “O Homem na Pré-História do Norte de Minas”, que é de 1983, na página 18/19, quando se encontrava estabelecida uma idade de 2 milhões de anos para o crânio 1470, depois de novas avaliações, e não entre 2 milhões e 2,5 milhões de anos atrás, como queria Richard Leakey, já deixávamos consignado que, com o prosseguimento do estudo da Pré-História humana, o mais certo é ser aumentada a sua antiguidade, que poderia ficar situada em torno de 4 a 5 milhões de anos, desaparecendo, evidentemente, a polêmica advinda de Lucy e ganhando o Homo habilis.
Observamos mais que, em qualquer circunstância, é pretensão demais alguém anunciar ter descoberto o primeiro representante de uma espécie. De mais a mais, é relativamente inexpressiva a diferença de idade entre o Australopithecus afarensis e o Homo habilis, este contemporâneo de uma infinidade de seres afins com aquele, quando sabemos que o grande e belo livro da evolução trata fatos e evidências em milhões de anos.
E acertamos, pois, exatos 30 anos depois da edição do nosso livro, os fragmentos de uma mandíbula da árida região de Ledi-Geraru, no Estado etíope de Afar, em 2013, receberam uma datação de 2,8 milhões de anos passados, o que deixa o primeiro homem com uma idade bem próxima do afarensis do mesmo sítio de Afar, que existiu há pouco mais de 3 milhões de anos. A precipitação da nossa parte foi achar que a idade primeva da real transição de um verdadeiro pré-homem para um homem poderia ficar situada em torno de 4 a 5 milhões de anos atrás. Hoje já pensamos que a nossa história na Terra, quando muito, poderia se estender a 4 milhões de anos atrás, se tanto.
Um fóssil de representante humano com aquela idade provavelmente não será encontrado. E muito menos do nosso ancestral direto, o verdadeiro pré-homem, que ocupou seu espaço evolutivo em área de preservação fossilífera extremamente difícil, quando muito há 4 milhões, 4,5 milhões de anos. Então, como dúvidas não restam sobre a extrema pobreza de fósseis da própria linhagem do homem, este fato recomenda uma cautela extremada diante de ossos que sequer dizem respeito aos nossos primórdios.
E, basicamente por sabermos que se nada se compara à inteligência humana, descortinando-se no palco da vida há poucos milhões de anos, tal maravilha corresponde a uns poucos décimos de um por cento da idade do planeta, o que nos remonta ao fim de dezembro, pelo calendário cósmico, conforme cálculo de Carl Sagan.
Também Francis S. Collins (obra citada, pág. 154/155) chama a atenção para os espaços de tempo da evolução colocando o homem nos últimos segundos da vida na Terra:
“Uma parte essencial do problema de aceitar a teoria da evolução é que esta exige que se compreenda a importância de espaços de tempo extremamente extensos envolvidos no processo. Tais períodos acham-se além da experiência individual de uma maneira inimaginável. Um modo de reduzir os éons” (espaço de tempo muito grande, como uma era ou a eternidade, conforme nota de tradução da editora) “num formato mais compreensível é imaginar o que aconteceria se os 4,5 bilhões de existência do planeta, desde sua formação inicial até hoje, fossem comprimidos num dia de 24 horas. (…). A diferenciação de ramificações que levariam a chimpanzés e humanos ocorreria em apenas um minuto e dezessete segundos restantes do dia e os humanos anatomicamente modernos apareceriam três segundos depois. A vida de um ser humano de meia-idade na Terra hoje tomaria somente o último milissegundo (um milésimo de segundo). Não é de se admirar que muitos de nós tenhamos tanta dificuldade em considerar o tempo evolucionário.”
Enfim, podemos asseverar que, em nossa tão decantada sapiência, sabemos quase o ínfimo do nada. O verdadeiro indivíduo pensante é, invariavelmente, humilde e sabedor que o livro da vida nunca foi nem é inteiramente aprendido, inclusive por nossa exiguidade de tempo, e, quando muito, conseguimos preencher algumas das imensuráveis lacunas que carregamos vida afora também no acréscimo do aprendizado e experiência de terceiros.
(Março/dezembro de 2020).
O primeiro crânio é de um Australopithecus afarensis, sendo os dois ao seu lado do Homo habilis. O do centro é o famoso 1470.
“No entanto, a ciência tem um caráter de autocorreção. Nenhuma grande falácia pode persistir por muito tempo diante do aumento progressivo de conhecimentos.” (Francis S. Collins).
Um esqueleto de hominídeo quase completo foi descoberto pelo paleoantropólogo norte-americano Donald Johanson em Hadar, na região de Danakil, Norte da Etiópia, em 1974. Lucy, o nome que recebeu, acabou classificada como um Australopithecus, que viveu há 3,18 milhões de anos, de uma espécie inteiramente nova, apelidada afarensis, com baixa estatura e aspecto mais simiesco do que humano: testa baixa, nariz achatado e grandes mandíbulas.
Duas espécies de australopitecos surgiram concomitantemente com o homem: os Australopithecus robustus (a forma sul-africana do Australopithecus boisei) e os Australopithecus africanus, que viveram entre 3,7 milhões de anos e 1,5 milhão de anos. Os primeiros, maiores e mais atarracados, e os segundos, tipos mais esguios, contemporâneos do Homo habilis e também do Homo erectus, acabaram extintos diante de sua incapacidade de enfrentar o meio adverso.
Para o paleoantropólogo inglês naturalizado queniano, Richard E. Leakey, “Lucy, com 3 milhões de anos de idade, é tida agora como um precursor do Australopithecus africanus, e, em 1979, Johanson denominou esse fóssil de A. afarensis” (“O Homem na Pré-História do Norte de Minas”, deste mesmo autor, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1983, págs. 15/16 e 18). O Australopithecus africanus descenderia do Australopithecus afarensis pelas significativas semelhanças entre ambos. Há quem assegure que ambos não passariam de um mesmo ser.
Em um sítio arqueológico da África do Sul, denominado Sterkfontein, foi encontrado o Australopithecus africanus (R. Leakey e Roger Lewin, em “Origens”, pág. 11). É considerável a distância separando Lucy desse A. africanus, entre a Etiópia e a África do Sul. Mas o tipo africanus surgiu especialmente na região considerada berço da humanidade, como um exemplar que apareceu perto do Lago Turkana, e ocupou quase o mesmo nicho ecológico dos babuínos modernos (Leakey e Lewin, idem, págs. 110 e 116, respectivamente).
Estudiosos e mais estudiosos vêm se debruçando sobre Lucy, o qual, se teria hábitos bípedes, ou mesmo, e mais provavelmente, semibípedes, também demonstrou viver confortavelmente balançando por entre as árvores. Em outras palavras, sem suas mãos inteiramente livres, a espiral evolutiva responsável por cérebros maiores dotados de inteligência humana não deslanchou, parecendo não mais que os afarensis deram origem tão somente aos atuais chimpanzés e bonobos, também chamados de chimpanzés pigmeus. Parece-nos hoje ser quase incompreensível existirem pessoas que ainda acreditam no Criacionismo bíblico, em detrimento das provas reais da evolução, achando a ideia da ascendência ou parentesco com símios do homem como um acinte ao seu brio ou sua nobreza.
Apesar de opinar por uma postura bípede do A. afarensis, mas não crendo ter sido a espécie antepassada ou ascendente do homem, pela contemporaneidade entre ambos, Richard E. Leakey, em seu livro “O Povo do Lago”, Editora UnB/Melhoramentos, 1988, pág. 67 (obra que tem como coautor Roger Lewin, a quem parece pertencer somente o texto, conclusão que vale também para outro livro bem mais famoso de Leakey, “Origens”), revela que, como os grandes macacos de hoje, Lucy possuía braços compridos em relação às pernas, indicativo de subir em árvores, além de outros detalhes que, bem sopesados, não tornam críveis para nós as presenças desses afarensis na linhagem do homem:
“O importante é que, nesse indivíduo, os braços eram longos de forma incomum em relação às pernas, um detalhe que indicava que, por mais que fizesse, o hominídeo antigo provavelmente subia em árvores.
Igualmente importante era a natureza do hominídeo. Ele era, sem dúvida, “avançado”, pois já andava ereto. Todavia, o maxilar tinha algumas características indubitavelmente primitivas, que fazem lembrar o Ramapithecus. O maxilar tem nitidamente o formato em V; os molares, relativamente grandes, são achatados; e o primeiro pré-molar tem uma cúspide única, uma característica muito primitiva, semelhante à do antropoide.
O formato da pelve sugere que era uma fêmea, e as proporções gerais apresentam-se, de fato, como muito pequena, não ultrapassando 91 cm de altura, conforme nos demonstram seus dentes.”
A propósito do Ramapithecus, o mesmo está presentemente totalmente afastado da linha evolutiva do homem ao ser reconstituído um seu crânio completo descoberto na China. Assim feito, constatou-se que o mesmo não passava de um ancestral dos orangotangos. Outros restos de Ramapithecus surgiram no Quênia e no Paquistão, mas de um ramo diferente. Estudos outros concluíram que dois outros seres que seriam descendentes desse Ramapithecus, o Oreopithecus e o Gigantopithecus, tidos como gêneros de australopitecos, são na verdade fósseis de símios, agora extintos. Um crânio de oito milhões de anos achado no Paquistão, que recebeu o nome de Sivapithecus, combina alguns traços com o Ramapithecus e outros, com o orangotango, como órbitas oculares muito juntas. E um único molar descoberto em Lukeino, em Tugen Hilss, de 6,5 milhões de anos, foi associado como representante do último antecessor comum do homem e do chimpanzé.
Os primeiros símios reconhecidos como tal apareceram nos registros fósseis há 30 milhões de anos, mas pelo menos há seis milhões de anos houve a sua separação dos nossos antecessores. Ou seja, é ainda por demais incerta a história daqueles símios e de sua separação da também difusa família Hominidae.
Continua (“O Povo do Lago”, pág. 78):
“Infelizmente, não há número suficiente de joelhos bem preservados no arquivo fóssil para permitir que cada tipo de hominídeo seja testado separadamente. Em contrapartida, podemos examinar a parte superior do osso da coxa e da pelve. Não há dúvida, no momento, de que esses ossos, nos australopitecíneos, são diferentes daqueles do Homo e dos humanos modernos: nos australopitecíneos a pelve é mais estreita e mais comprida, a cabeça do fêmur é menor, e o colo do fêmur, que liga a cabeça à diáfise do osso da coxa, é estranhamente achatado. Antigamente, muitas pessoas interpretavam essas diferenças como indicativas de um modo de andar recurvado nos australopitecíneos sem nenhuma justificativa, apenas porque esse ossos são diferentes dos do Homo, segundo mais uma colocação chauvinista do Homo.”
A evolução dos dentes dos hominídeos, com atenção para a redução dos caninos e o aumento da espessura do esmalte, vem sendo objeto de interpretações. A conclusão correta é que o fenômeno está relacionado com a dieta. O nosso esmalte nos dentes é bem mais grosso que nos primatas africanos, cuja dentição apresenta vãos, e estes não são registrados entre humanos. A redução nos caninos do homem fez com que esses pequenos espaços desaparecessem entre seus dentes. Os caninos nos símios têm esses vãos. Os maxilares do Australopithecus afarensis mostram irrefutavelmente este espacejamento entre os caninos e os dentes adjacentes. No homem, os caninos são menores quando comparados aos dos macacos, sugerindo uma menor competição e maior cooperação para a vida social em nossa espécie.
O maxilar superior do Australopithecus afarensis mostra claramente o vão entre os dentes caninos e os adjacentes, o que é peculiar aos símios, e não ao homem.
Arcada dentária inferior de um Homo habilis mostrando uma dentição basicamente humana, notadamente diferente da dos australopitecos.
Os humanos, após a primeira dentição (dentição de leite), mostram uma segunda e definitiva composta de 28 a 32 dentes. Os dianteiros, incisivos, se prestam ao corte de alimentos, os caninos são perfurantes e os pré-molares e os molares são empregados para triturar e moer alimentos.
Acontece que preteritamente os hábitos alimentares de mastigação não seriam uma exclusividade humana. “É possível que os antepassados dos hominídeos se tivessem especializado em comer sementes e frutos duros, que eram difíceis de abrir e requeriam mais mastigação. Estes traços aparecem cedo demais para relacioná-los com a fabricação de utensílios e com a elaboração dos alimentos. Também evoluíram nos mandris Theropithecus, que comem sementes duras”, segundo John Gowlett, no livro “Arqueologia das Primeiras Culturas (A Alvorada da Humanidade)”, Ediciones Folio S.A., Barcelona, 2007, págs. 16/17.
Seus fortes caninos e adjacentes e o vão presente entre tal dentição revela que o Australopithecus afarensis era portador de bons músculos maxilares para facilitar sua mastigação, o que é típico de símios, não sendo inerente ao homem. Para Francis S. Collins, diretor do Projeto Genoma (“A Linguagem de Deus”, 4ª. edição, Editora Gente, págs. 144/145), mesmo frisando tratar-se de uma hipótese, escreveu que a presença desse maxilar mais fraco no homem facilitou, paradoxalmente, seu crescimento craniano para cima na acomodação de um cérebro maior:
“Agora podemos também começar a explicar as origens de uma fração ínfima de diferenças mais mecânicas entre nós e nossos parentes mais próximos, algumas das quais podem desempenhar funções de destaque em nossa natureza humana. Por exemplo, um gene para a proteína dos músculos maxilares (MYH16) parece ter sofrido uma mutação para um pseudogene nos humanos, mas continua desempenhando um papel importante no desenvolvimento e na força dos músculos maxilares em outros primatas. Percebe-se que a desativação desse gene leva a uma redução na massa desses músculos nos humanos. A maior parte dos macacos tem mandíbulas relativamente maiores e mais fortes que as nossas. Crânios de humanos e de macacos devem, entre outras coisas, servir de sustentação a esses músculos maxilares. É possível que o desenvolvimento de um maxilar mais fraco permita, paradoxalmente, que nosso crânio cresça para cima, para acomodar nosso cérebro maior. Trata-se de uma especulação, é claro, e outras alterações genéticas seriam necessárias para responsabilizar o córtex cerebral muito maior que representa um componente essencial na diferença entre homens e chimpanzés.”
De mais a mais, refrisando, há quem considere que o Australopithecus afarensis de Hadar nada mais seria do que uma variedade do Australopithecus africanus. Mas existe um detalhe muito importante e inquestionável na anatomia de Lucy: sua pélvis não evoluiu a lhe permitir dar à luz uma criatura com a cabeça grande. Dali nunca sairia um feto Homo, por absoluta falta de espaço para vir ao mundo.
Giro outro, existem cientistas que não creem que os afarensis tenham deixado sequer descendência, não passando de um ramo seco dos hominídeos, no que acreditamos. É que inúmeros fósseis da espécie foram achados com a mesma idade do Homo habilis. Afinal chegaram a ser contemporâneos e até do segundo homem, o Homo erectus, que surgiu há 1,6 milhões de anos. E, se ambos conviveram há 2 milhões de anos no mesmo espaço, aquele tipo de australopiteco, mais propriamente levando uma vida arbórea e que desapareceu há 1,5 milhão de anos, não poderia ser elo encadeador da linha evolutiva do homem.
A todas as luzes, é impossível que nossos ancestrais remotos tenham descendido de outros animais que existiram simultaneamente com eles. Nossa espécie seguiu sozinha em sua escalada evolutiva, a partir do Homo habilis, sendo que este não é ancestral do Homo sapiens, e sim o primeiro homem, cuja evolução redundou no Homo erectus e, por fim, em nós.
Os hominídeos evoluíram muito mais cedo do que se imaginava. Em Laetoli, na Tanzânia, foi achada uma série de pegadas preservadas em cinzas vulcânicas pulverizadas e molhadas pela chuva, tratando-se de icnofósseis na rocha. Outra camada de cinzas oriunda do vulcanismo cobriu a seguir essas marcas, após virando rochas duras, datadas de 3,5 milhões de anos atrás, isto em 1976. A todas as luzes, depreende-se que esses indivíduos abandonavam apressadamente o lugar em busca de outro distante daquele vulcão então ativo, percorrendo um caminho sobre a larva morna de dias anteriores. Um desses animais chegou a dar uma ligeira parada e se virou em direção ao leste, provavelmente olhando para o vulcão ativo, prosseguindo com os seus a seguir.
Conclui-se daí que pelo menos os três indivíduos dessas pegadas, atribuídas aos Australopithecus afarensis, passaram pelo lugar sobre dois pés, estando do lado direito dos mesmos a cratera do perigoso vulcão Sadiman. Essas pegadas revelam pés chatos e um ângulo bem maior entre o dedão e os demais dedos dos pés.
Aqui é forçoso imaginar, em análise meticulosa, uma anatomia apropriada para subir e descer árvores. Esses pés indicavam que ainda agarravam o chão, e não que habitualmente o pisavam. Não foi possível imaginar como um pé mais parecido com o de macaco pudesse vir a desenvolver-se para uma versão moderna de pés humanos. Richard Leakey formula esta pergunta, que ele mesmo responde (obra citada, pág. 71):
“Essas criaturas seriam formas primitivas do Homo? É difícil imaginar como essa pergunta pode algum dia ser respondida com certeza.”
As impressões em Laetoli, de 17 cm de comprimento por 11 de largura, descobertas a uma profundidade de 5 metros, foram recebidas com desdém por parte dos pesquisadores. Kevin Hatala, da Universidade de Chatham, na Pensilvânia (EUA), concluiu que aquela marcha de afarensis se apresentava bastante estranha aos olhos modernos, pois eles deviam curvar os joelhos quando cada pé tocasse o chão, como fazem os humanos.
Em outras palavras, poderia ter ocorrido em Laetoli um raro bipedismo em andar gingado, forçado ao que parece pelo temor daqueles seres ao meio ambiente então hostil. Como diz o ditado, necessidade faz sapo pular. Pequena nota na revista “Visão”, de 27 de novembro de 1978, diz que “há muito tempo – 3,5 milhões de anos – a criatura queimou a sola dos pés ao caminhar sobre as cinzas ainda quentes de um vulcão, deixando sobre elas suas marcas. Estas se fossilizaram e agora voltam à luz, após uma escavação dirigida pela paleontóloga britânica Mary Leakey financiada pela Nacional Geografic, associação americana que estimula e patrocina esse tipo de pesquisa.”
A corrente simpática ao afarensis como nosso ancestral argumenta, porém, conforme já dissemos antes, que o lugar estaria úmido no momento, sendo uma segunda erupção a lançar mais cinzas sobre as pegadas, preservando-as afinal. Pingos possivelmente de uma chuva momentânea também ficaram preservados, ao lado daquela marcha animal.
“A cratera fumegante do Sadiman encontrava-se à sua direita”, conforme Richard E. Leakey (filho de Mary e Louis Leakey) e Lewin (idem, pág. 71), que procuraram explicar este andar gingado com os chimpanzés (ibidem, pág. 76):
“Os outros músculos nos permitem andar equilibradamente em vez de gingarmos, como acontece com os patos ou os chimpanzés em suas breves incursões no bipedismo. (…). Se, no entanto, você fosse um chimpanzé, formar-se-iam duas linhas de pegadas: o chimpanzé coloca o peso do corpo sobre o pé direito, por exemplo, movendo seu corpo naquela direção e depois sobre o esquerdo, mudando outra vez o movimento; daí o andar gingado. Os humanos certificam-se de que os pés estão no centro antes de começar a andar.”
O antropólogo francês André Leroi-Gouhan concorda que esse australopiteco já apresentava sinais de artelhos voltados para fora e apoiando-se sobre a parte externa dos pés, mais ou menos como os patos.
O Dr. Russel Tuttle, professor de antropologia da Universidade de Chicago, acredita que a estrutura do pé e do joelho de Lucy poderia ser inteiramente esticada (“The New York Times”). Como dissemos antes, uma perna inteiramente esticada trazia então e traz a condição de um ser não poder dobrar os joelhos quando cada pé tocasse no chão. O homem, no seu andar, dobra os joelhos – simples assim. Conforme ainda o Dr. Russel Tuttle, a bacia e os pés de Lucy ainda conservam traços de habitantes de árvores, mas indicando uma recente transição para a vida terrestre. Isto, refrisando, não procede porque o afarensis era basicamente arbóreo. E, como quer que seja, tendo sido contemporâneo tanto do Homo habilis como do Homo erectus, impossível afirmar ter o mesmo evoluído para o que nós somos hoje.
Em análise posterior do terreno, por determinação das autoridades da Tanzânia, que queriam construir um museu em Laetoli, o pesquisador Fidelis Masao, da universidade local Dar es Salaam, e seus colegas encontraram outras pegadas de mais dois indivíduos. As primeiras pegadas foram atribuídas a uma família de dois adultos e um jovem. Com a identificação de pegadas de mais dois indivíduos, estudiosos da matéria propuseram uma nova teoria sobre a ordem social do grupo, de aplicação inimaginável à espécie humana. “Ao ver que mais dois adultos estavam presentes, podemos supor que eles eram semelhantes aos gorilas: um único macho dominante, acompanhado por suas fêmeas e seus descendentes”, afirmou Giorgio Manzi, da Universidade Sapienza, em Roma.
A descoberta de um fóssil de um hominídeo do sexo feminino, com três anos de idade, foi descrita na revista científica inglesa “Nature”, de 21 de setembro de 2006. A criatura estava num sítio arqueológico de Dikika, situado na margem direita do Rio Aonache, na Etiópia. A localidade é bem próxima de Hadar, onde em 1974 foi encontrada Lucy.
O novo achado, em bom estado de conservação, coube a uma equipe internacional liderada pelo pesquisador etíope Zaresenay Aleniseged, que trabalha no Instituto Max Planck de Leipzig, Alemanha. Como era da mesma espécie da famosa Lucy, recebeu o nome de “filha” desta.
O estudioso chileno René Bobe, da Universidade de Geórgia (EUA), frisou sobre o fóssil da “filha de Lucy”:
“O espécime é muito frágil, mas de diversas maneiras está mais para um chimpanzé do que para um ser humano. Ficou tão bem preservado, porque foi enterrado logo depois de morrer, talvez em uma inundação. Com três anos, essa garota provavelmente ainda era muito dependente de sua mãe. Mas já devia estar explorando a paisagem sozinha, por períodos curtos.”
Para Bernard Wood, da Universidade de George Washington, “o bebê de A. afarensis tinha braços capazes de subir em árvores, como o macaco. Era mais independente, como um chimpanzé.”
Retomando o tema da origem africana de hominídeos, ainda vem sendo procurado um suposto candidato para ancestral comum das espécies de Australopithecus posteriores e a corrente humana da evolução. Como mais ossadas de australopitecos se revelaram no Danakil, muitos paleoantropólogos observaram destacada divergência em seus crânios e tamanhos corporais.
Vale dizer que não uma, mas várias espécies de Australopithecus existiram em Danakil. E mais, qualquer uma delas – ou nenhuma delas, mais acertadamente – poderia ser ancestral do primeiro homem, o Homo habilis, nosso antepassado direto. Se bem observado comparativamente, o afarensis, não passou de um antropoide arbóreo, quiçá um grande símio, com raros hábitos semibípedes em descidas ligeiras até o solo. Detinha um cérebro cerca de 50 por cento menor do que o do homem moderno (650 cc contra 1.350 cc), do que se deduz uma inteligência limitada.
Achamos, todavia, que este seu referido bipedismo, badalado em reiteradas publicações científicas, não se sustenta. Haja vista que não lhe seria possível manter-se ereto por percursos médios e longos, carregando obviamente sobre suas inábeis pernas curtas um tronco pesado e braços enormes, além da cabeça. A relação do osso do seu braço superior (úmero) para o osso da perna superior ((fêmur) é próxima da de um chimpanzé em 95 por cento, sendo parecida com a do homem moderno somente em 70 por cento. A seu turno, o Homo habilis era dotado de bipedalismo a lhe proporcionar um melhor ângulo de visão, olhando as savanas por cima, e inteligência. Era também inteiramente divorciado da vida arbórea.
Essas primeiras criaturas humanas no parque natural da Terra deixaram provas de uso de ferramentas, como pedras afiadas para separar a carne da caça do osso, marcando o início do que chamamos de pedra lascada. Esses instrumentos líticos foram associados à tradição Oldowan, ou Olduvaiense, em referência à Garganta de Olduvai, na Tanzânia, onde foram primeiramente identificados, ou seja, sua localidade típica, que também precedeu as descobertas de Homo habilis.
O termo Olduvaiense, que se refere às primeiras indústrias líticas de hominídeos no Paleolítico Inferior africano, equivale ao que fora da África se denominou de Pré-Acheulense, Paleolítico Inferior Arcaico ou Cultura dos Seixos Trabalhados. Necessário destacar que os líticos africanos são mais antigos. O mesmo tipo de trabalho manual surgiu em Kada Gona, na Etiópia, com aproximadamente 2,6 milhões de anos atrás, e, um pouco mais tarde, no território de Hadar e novamente no Norte do Quênia, perto do Lago Turcana.
Lascas empoeiradas provenientes de lugar a Oeste do citado Lago Turcana, confeccionadas há 3,3 milhões de anos, não foram identificadas num primeiro momento como ferramentas. O interessante dessas lascas é sua datação, antecedendo o Homo habilis e coincidindo com o afarensis, que não produzia e nem manuseava líticos. Mais prudente seria frisar que o material não representou ferramenta nenhuma. O seu aspecto decorre de atritos naturais, como tantos e tantos fragmentos rochosos existentes no fundo de rios e lagos, em cascalheiras e até mesmo dentro de cavernas. Ademais, o primeiro homem foi datado de 2 milhões de anos atrás (o 1470), seguindo-se a descoberta da mandíbula de outro elemento de 2,8 milhões de anos passados, na Etiópia, sendo mais acertado, caso aquelas lascas, evidente pobres criativamente falado, sejam mesmo utensílios elaborados por alguma inteligência, atribuí-los ao primeiro homem mesmo, com elementos fósseis até presentemente não descobertos nas imediações da muito provavelmente inútil pedraria em questão.
A Garganta de Olduvai obteve notoriedade mundial no início dos anos 60, quando Louis e Mary Leakey trouxeram à tona um número expressivo de fósseis estudados à luz da evolução humana. Outros espécimes de hominídeos, provenientes do Quênia, demonstraram que eles se espalharam pelo Leste da África pelo Vale do Rift.
O mais famoso fóssil de um Homo habilis, de 2 milhões de anos, foi achado às margens leste do Lago Turkana. Recebeu o número de 1470 e acabou ficando assim conhecido. Foi exaustivamente estudado por Richard Leakey, sendo uma sua fotografia a capa do seu livro “Origens”. Esse antropólogo apontou como sua principal característica o cérebro grande, “com cerca de 800 cc (mais da metade do de um homem moderno)”, calculando sua idade entre 2 milhões e 2,5 milhões de anos.
Um achado que permitiu novas análises desse hominoide se deu em 1994, quando a primeira ossada completa de um Australopithecus afarensis masculino apareceu a menos de 10 quilômetros do local da morte de Lucy (que era uma fêmea de 1,1m e 29 quilos). No seu período de existência, o clima era seco, com as savanas substituindo as florestas anteriores.
Restaram visíveis as diferenças entre machos e fêmeas afarensis. O macho apresentava quase duas vezes o peso e o tamanho de uma fêmea, obviamente com massa muscular sobremodo destacada. É o que hoje chamamos de dimorfismo sexual, que serve para diferenciar os indivíduos de sexos distintos. Nos mamíferos o dimorfismo sexual se liga ao comportamento sexual, mas é difícil afirmar muito sobre o comportamento social dos afarensis. Assim examinado, quando comparado com a fêmea, depreende-se ter sido o macho bem mais esbelto, o mesmo provavelmente valendo em confronto com os demais tipos de australopitecos africanos do mesmo sexo. Enquanto existiu, o afarensis foi também melhor sucedido em relação aos demais da família Hominidae, ao que tudo indica, com exceção do gênero Homo.
A seleção sexual e o comportamento animal são dois fatores intimamente relacionados. Quando do ciclo reprodutor, animais do sexo masculino exibem características ornamentais raramente vistas nas fêmeas. Conforme registrou Charles Darwin, antes do acasalamento, a fêmea pode escolher um macho apenas entre seus inúmeros pretendentes. Ela opta por aquele portador de determinadas diferenças favoráveis em relação aos demais, que podem estar na coloração, na forma das penas e outros detalhes. Os caracteres do macho escolhido são transmitidos, pelos genes, para os descendentes machos. Consequentemente, os animais providos de cores vivas e atraentes, comportamentos sofisticados e estruturas bem desenvolvidas cruzam com maior frequência e deixam maior número de descendentes.
Podemos citar outro exemplo: o Australopithecus robustus macho tinha crânio maior que era dotado de uma crista dorsal proeminente. Este detalhe a mais lhe foi importante na competição com outros machos por uma fêmea para a cópula. A fêmea robustus era menor e não dotada da referida crista dorsal proeminente. Se bem que essa crista óssea no alto do crânio era uma inserção aos resistentes músculos mastigadores, estando presente em grande parte dos australopitecos, mas é ausente no A. afarensis. Os pré-molares e molares eram dentes grandes em relação aos incisivos.
O comportamento seletivo sempre definiu o comportamento sexual entre os humanos. Exemplificativamente, as fêmeas têm relações menos frequentes do que os machos, por lhe incumbir conceber e criar a prole, o que demanda tempo. Pelas ideias darwinianas, ela pode avaliar as características de um possível parceiro, tanto suas qualidades genéticas quanto a sua capacidade de sustentar os filhos. Para o homem, a cópula chega a ser uma atividade frequente e de baixo custo. Com um número significativo de parceiras disponíveis, ele tem probabilidade maior de disseminação dos seus genes, sendo, assim, menos exigente em suas escolhas no meio do universo feminino.
Segundo Marco Aurélio Baggio, presidente emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, no seu livro “69 Etapas Evolucionistas”, Santa Clara Editora, 2007, “a evolução quis destacar dois tipos distintos de conformação física, criando o papel específico do macho e da fêmea para se complementarem ao reproduzir um novo ser da espécie. A separação dos sexos foi uma esperta estratégia evolutiva para aumentar a diversidade das espécies, permitindo maior segurança contra a consanguinidade. A masculinidade produz milhões de gametas nadadores – os espermatozoides. As fêmeas produzem um único enorme gameta por vez – o óvulo. Sua fecundação por anisogamia – heterogamia – constitui um entre muitos outros sistemas naturais de reprodução. (…). A sexualidade é extremamente vantajosa para a ampliação do número de espécies de fungos, de plantas e de animais. O preço a pagar pela sexualização é o envelhecimento e a morte. Esta se dá mediante o desgaste interno do ser vivo, ao longo do seu ciclo vital, por apoptose ou tanose. A morte é a primeira e principal “doença” sexualmente transmissível.” Heterogamia é o tipo de reprodução sexuada com gametas diferentes, podendo ser do tipo anisogamia, na qual os gametas diferem no aspecto morfológico. O feminino é maior que o masculino. A apoptose é um tipo de morte celular programada, também sendo chamada de “suicídio celular”.
A subordem Anthropoidea é considerada a mais evoluída dos primatas e se subdivide em três superfamílias: dos Ceboidea, que são os macacos do Novo Mundo; os Cercopithecoidea, macacos do Velo Mundo; e os Hominoidea, que abrangem os pongídeos (gibões, chimpanzés, gorilas e homens). Estas três grandes famílias estrearam no cenário da Terra no Oligoceno (38 milhões de anos). Em épocas anteriores (Paleoceno e Eoceno), os prossímios arbóreos, como lêmures, társios, lóris e aiais (lêmure noturno de Madagascar), são os únicos fósseis. Restos de pongídeos são mais encontradiços que os dos demais macacos. Esses primatas sem cauda são tidos como os mais evoluídos do mundo animal, e podemos frisar que os ancestrais dos homens se ligam aos mesmos.
O homem não descende de nenhum macaco, sendo apenas primo deste. Os primatas atuais mais próximos do homem são os monos, compreendendo chimpanzé, gorila, gibão e orangotango. Mono é designação comum a antropoides primatas em geral, particularmente aos não dotados de cauda e detentores de longos braços. Todos possuem esqueleto, fisiologia, susceptibilidade aos parasitas, grupos sanguíneos e outros caracteres muito semelhantes aos Homo, porém sem ser nossos ancestrais. Nossa evolução foi separada da desses símios, que hoje vivem nas matas.
O gibão, por exemplo, um primata superior como os homens, tem uma curiosa aparência que o distingue de nós: quando abandona os galhos, nos quais se locomove em braquiação (balanceamento dos braços), em busca do chão, o faz de maneira bípede, ao contrário dos outros seus três congêneres (gorila, chimpanzé e o orangotango), que o fazem com os quatro membros. Porém, para andar a céu aberto, em busca de um equilíbrio, o gibão estica os braços para trás, assim sem liberar propriamente as mãos. A liberação das mãos foi essencial à hominização.
A bipedia no homem é perfeita, tendo a sua bacia pélvica como suporte do tronco. A coluna vertebral, com as quatro curvas que se opõem simultaneamente, cria, ao lado da bipedia, a verticalidade completa em nossa espécie. Esta mesma coluna vertebral mantém o crânio no topo, em posição de equilíbrio. Duas consequências resultam desta postura: a liberação das mãos e a possibilidade do desenvolvimento do crânio com relação à diminuição do tamanho da face e dos maxilares. Estes fatores essenciais à hominização não estão presentes nos demais primatas. O desenvolvimento do crânio e aprimoramento da face e dos maxilares estão implícitos na bipedia, sem serem isoladamente causas da hominização.
O aumento do volume do crânio e a diminuição do tamanho da face e dos maxilares são consequências da posição de equilíbrio do crânio humano sobre a coluna vertebral. Esta, nos símios, não sustenta o crânio por baixo, mas vem encontrar o buraco occipital por trás. No homem, o buraco occipital encontra-se exatamente no centro inferior. A cabeça do símio teria assim tendência a cair para a frente, se não fosse a poderosa musculatura que, partindo em feixe do pescoço e da nuca, vem retê-la sobre a coluna vertebral.
Os seres humanos, ao contrário de outros primatas, têm pouco pelo no corpo, o que se explica por ele ser dotado de um sistema de refrigeração próprio, ausente em qualquer outro primata: a transpiração pelos poros do seu corpo. Acreditamos que todos os diversos tipos de australopitecos eram inteiramente cobertos de pelos, porque nunca foram propriamente pertencentes ao puro gênero Homo. O afarensis, em particular, para nós um hominoide traduzido em um grande símio, a exemplo daqueles seus congêneres, se mostrava revestido de pelos, o que é uma conclusão nossa.
Para sobreviver debaixo do sol equatorial africano, a pele assim desnuda do homem teria de ser (como era) protegida por uma quantidade considerável de melanina, pigmento escuro que protege o tecido da luz ultravioleta. Esta é a razão de o homem ser originariamente negro. Quando ele migrou para regiões ao norte da Terra, nas quais os raios solares são bem mais escassos, há cerca de 45 mil anos, tempo este relativamente recente, sua cor foi clareando porque a referida pigmentação, proteção natural contra possíveis queimaduras e doenças como câncer de pele, foi perdendo sua importância e permitindo uma melhor absorção da luz ultravioleta, fonte vital de vitamina D.
Acresce notar, a propósito, que estudos em um esqueleto de 10 mil anos, batizado de homem de Cheddar, encontrado em Cheddar, no Reino Unido, especialmente com a reconstituição do seu rosto em um scanner de alta tecnologia, revelou um fenótipo totalmente oposto à pele branca de muitos britânicos. Era um tipo negro de olhos azuis. “A combinação de uma pele muito escura com olhos azuis não é o que normalmente imaginamos, mas essa era a aparência real dessas pessoas”, disse Chris Stringer, do Museu de Ciências Naturais de Londres, onde a imagem do homem de Cheddar foi exposta.
O Homo habilis (“pessoa habilidosa”) era onívoro, alimentando-se tanto de animais como de vegetais, podendo colher seus alimentos e levá-los para comer tranquilamente longe de competidores, desenvolvendo também destreza artesanal. A seu turno, o Australopithecus afarensis, que cientificamente não é classificada no gênero Homo, sendo apenas da família Hominidae, tinha uma dieta suave voltada para lagartos, ovos, pequenos mamíferos e frutas. Seus dentes eram pequenos e sem especialização. E nem seria conveniente se pensar de forma diferente, uma vez que a cabeça de um afarensis comportava um cérebro que não era muito maior que o de um chimpanzé, indicativo de uma inteligência rudimentar, sem ter sequer produzido ferramentas e não fazendo uso do fogo.
Se bem que a inteligência não é apenas uma conquista humana. Ela é notada em outros animais, mesmo em proporções diminutas, que possuem algum grau de reconhecimento, capacidade de elaboração de instrumentos de trabalho e tendo soluções simples para buscar alimentos. Cientistas da atualidade concluíram por vários graus de complexidade inteligente em mamíferos, como golfinhos, elefantes e principalmente entre primatas. Constataram que o homem compartilha com eles algumas características, que antes se achava exclusividade nossa. A linguagem simbólica é um desses exemplos, sendo compartilhada entre primatas como o chimpanzé. Também a caça cooperativa, comum entre os homens pré-históricos, sempre foi praticada entre inúmeros mamíferos.
Por outro lado, o desaparecimento de determinadas espécies nunca foi fato incomum na pré-história. Tomemos como melhor exemplo o próprio Australopithecus afarensis, que, quanto mais estudamos, percebemos tratar-se de um aborígene com alguma capacidade de descer até o solo. O Homo habilis, o Homo erectus e o Homo sapiens nunca levaram a vida, ou mesmo parte dela, em árvores, chegando a escalá-las em ocasiões específicas, como fugindo de um predador, em busca de frutas ou para verificação de um território propício a caçadas, por exemplo.
Conhecemos uma reconstituição do seu fóssil mais famoso, Lucy, no Museu de História Natural dos Estados Unidos, em Nova Yorque, em 2017. Se muitos a querem como um ser bípede, estudos recentes mostraram que Lucy passava grande parte do seu dia em árvores, possuindo braços fortes o suficiente para subidas regulares em suas ramagens superiores, ao passo que suas pernas eram relativamente fracas, não utilizadas na escalada e ineficazes para caminhar.
Outra pesquisa, publicada em setembro de 2016, na revista “Nature”, concluiu que esse A. afarensis morreu ao cair de uma árvore particularmente alta, ao pular de um galho para outro, conclusão a que se chegou ao se analisar uma fratura óssea nos restos fossilizados desse hominídeo.
“WASHINGTON, EUA. Lucy, a famosa Australopithecus que viveu há 3,18 milhões de anos, provavelmente passava ao menos um terço do seu dia em árvores, de acordo com uma pesquisa divulgada na última quarta-feira.
Nossa antiga ancestral (sic), cujo esqueleto parcial fossilizado foi descoberto na Etiópia em 1974, provavelmente se movia tanto como um chimpanzé moderno quanto como um homem moderno, de acordo com um novo estudo publicado na revista científica “Plos One” por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, Maryland, e da Universidade do Texas, em Austin.
Esse exemplar de Australopithecus afarensis, de cerca de um metro de altura, vem confundindo os paleontólogos há anos. Eles debatem se o hominídeo bípede de 27 quilos passava a maior parte do tempo no chão, como os seres humanos modernos, ou nas árvores, como os chimpanzés.
O estudo concluiu que Lucy tinha braços fortes, sugerindo que ela subia em árvores regularmente, e pernas relativamente fracas, que não eram utilizadas na escalada e que eram ineficazes para caminhar.
A combinação das duas descobertas levou os pesquisadores a concluírem que Lucy provavelmente se aninhava em galhos de árvores durante a noite, a fim de evitar predadores, usava seus braços para se locomover entre as árvores e possivelmente procurava alimentos entre os ramos.
Os pesquisadores analisaram os ossos de Lucy combinando 35 mil imagens individuais tomadas por um poderoso scanner capaz de penetrar nas camadas de minerais em seus restos fossilizados e de produzir imagens de alta definição.
Eles estudaram as estruturas internas dos ossos superiores dos dois braços de Lucy e do fêmur de sua perna esquerda e descobriram que seus membros superiores eram altamente desenvolvidos – sugerindo que eles tinham músculos fortes, semelhantes aos dos chimpanzés modernos que escalam árvores.
“É um fato bem estabelecido que o esqueleto responde às cargas durante a vida, adicionando ossos para resistir a forças elevadas e subtraindo ossos quando as forças são reduzidas”, disse John Kappelman, professor de antropologia da Universidade do Texas e um dos principais autores da pesquisa.
Robustez. Os esqueletos de chimpanzés têm membros superiores mais robustos, porque usam os braços para escalar, enquanto os humanos têm membros inferiores mais desenvolvidos devido à caminhada, de acordo com Christophe Ruff, professor de anatomia da Universidade Johns Hopkins e coautor do estudo. “Os resultados sobre Lucy são convincentes”, disse.
Outro estudo divulgado em setembro concluiu que Lucy provavelmente morreu ao cair de uma árvore particularmente alta. A pesquisa, publicada na revista britânica “Nature”, chegou a essa conclusão após a análise de uma fratura óssea nos restos fossilizados do hominídeo. Mas os cientistas tiveram dificuldades para determinar exatamente quanto tempo Lucy passava fora do chão. O novo estudo sugere que, se ela dormisse cerca de oito horas por dia, teria passado pelo menos um terço de seu tempo entre os galhos.
Outras comparações sugerem que, mesmo quando Lucy caminhava sobre suas duas pernas, ela fazia isso de forma menos eficiente do que os humanos modernos, com uma capacidade limitada de se mover por longas distâncias a pé.” (Jornal “O Tempo”, Belo Horizonte, 03/12/2016).
Este autor ao lado da reprodução do fóssil de Lucy, no Museu de História Natural dos EUA, em Nova York. (Foto de Lorena Campos).
A razão do surgimento do bipedalismo continua sendo estudada, mas sem nada conclusivo, e tal assunto por certo permanerá inconclusivo por todo o sempre. Uma entre tantas especulações pode ser encontrada no livro “Os Primeiros Americanos”, de J. M. Adovasio e Jake Page (Editora Record, Rio de Janeior e São Paulo, 2011, págs. 100/101):
“Na verdade, a postura ereta e a locomoção bípede foram as adaptações mais radicais levadas a cabo pelos nossos ancestrais naqueles tempos remotos. Provavelmente nunca saberemos quais as características do meio ambiente ou outros fatores que estimularam aquela adaptação revolucionária e fundamental, mas é possível que um surto de temperaturas frias em algum momento do Plioceno, entre 6,5 milhões de anos e 5 milhões de anos atrás, tenha desempenhado um papel. De acordo com essa hipótese, a expansão da camada de gelo no Antártico fez baixar o nível do mar no mundo inteiro, incluindo o Mediterrâneo. Isso, por sua vez, alterou o esquema de precipitação pluvial nas florestas da África e acabou por fazer com que se retraíssem. Em consequência da redução da cobertura florestal, numerosas espécies arbóreas de primatas sumiram, enquanto outras se tornaram, pelo menos em parte, terrestres.
“Para alguns desses novos animais terrestres, o andar ereto ofereceu certas vantagens. Eles poderiam, por exemplo, percorrer longas distâncias com menor dispêndio de energia. A vida nas árvores pode parecer simples, a julgar pelo comportamento dos macacos de hoje: basta deslocar-se sem precipitação e acompanhar o ciclo regular de frutificação das árvores da floresta. Já os que caminhavam no solo precisavam explorar áreas mais vastas a fim de encontrar o que comer. Do mesmo modo, o bipedalismo liberava os membros superiores para poderem carregar o alimento coletado, e também para manejar objetos (varas, por exemplo), os quais por sua vez, podiam facilitar o achado da comida. Com os membros superiores livres, o bípede era capaz também de carregar os filhos para onde quisesse.”
Os mesmos autores são de opinião que numerosos episódios de esfriamento e secagem ocorreram nas latitudes médias do planeta, entre 3 milhões e 2 milhões de anos atrás, sendo que “como resultado, a cobertura florestal na África voltou a diminuir, a savana aberta cresceu, e a transferência de espécies adaptadas à floresta para a savana continuou”.
Ora, como já consignado, a postura bípede existia há cerca de 3 milhões de anos, portanto aqueles novos fenêmenos ambientais registrados entre 3 milhões e 2 milhões de anos atrás poderiam ter representando pouco para a bipedia humana, lembrando ainda que o A. afarensis tinha pelo menos um andar bastante precário no solo, há 3,18 milhões de anos. Ademais, há as pegadas de criaturas que caminharam em pé em cinzas vulcânicas pulverizadas com 3,5 milhões de anos atrás, em Laetoli, na Tanzânia. Queremos crer que pelo menos o processo de diminuição do ciclo de águas, que deu lugar aos campos abertos na África, teve início há mais de três milhões de anos, talvez se iniciando há cerca de quatro milhões de anos, não mais, lembrando que os mesmos autores mencionam temperaturas frias em algum momento do Plioceno, entre 6,5 milhões de anos e 5 milhões de anos atrás, quando as florestas dominavam o cenário.
Enfim, o homem surgiu ali pelas planícies das atuais nações africanas Quênia, Tanzânia e Etiópia (situadas numa linha denominada de Vale da Grande Fenda, uma decorrência de falha na crosta terrestre), há 2,8 milhões de anos. Era o supramencionado Homo habilis, o pai da nossa espécie, estreando no parque natural da Terra.
Esta sua idade novamente se comprovou com a descoberta, por um estudante, de um fragmento de sua mandíbula com cinco dentes, em 2013, em uma região de rastreamento em Ledi-Geraru, na Etiópia, o que levou a comunidade científica a proclamar tratar-se do mais antigo resto do indivíduo Homo, ou seja, o Homo habilis, que inaugurou nossa linhagem. O extraordinário achado, antecipando em 400 mil anos a origem do homem, logo ocupou as revistas científicas especializadas no tema e a mídia internacional:
“Encontrados há apenas dois anos na árida região de Ledi-Geraru, no Estado de Afar da atual Etiópia, fragmentos de uma mandíbula datados de 2,8 milhões de anos podem ser os mais antigos restos de um indivíduo do gênero Homo conhecidos, anteriores em 400 mil anos aos mais velhos que já tinham sido achados.
Com dentes menores que os vistos nos australopitecos e um formato mais proporcional e peculiar, os pesquisadores acreditam que a mandíbula reconstituída pertenceria a um representante da espécie Homo habilis (…). Além disso, a idade do fóssil e o local onde foi encontrado o coloca perto do tempo e no espaço ao fóssil da famosa Lucy, que está entre os mais bem preservados e antigos restos de um indivíduo da espécie Autralopithecus afarensis, encontrados em 1974 no sítio de Hadar e datados em pouco mais de três milhões de anos.
– O registro fóssil no Leste da África, entre dois milhões e três milhões de anos atrás, é muito pobre, e existem relativamente poucos fósseis que podem nos dar informações sobre as origens do gênero Homo – lembrou Brian Villmoare, paleoantropólogo da Univerisade de Nevada, nos EUA, e um dos líderes da pesquisa, publicada na edição desta semana da revista “Science”, em teleconferência ontem. – Este, porém, é um dos períodos mais importantes da evolução humana, já que, nesta época pouco conhecida, os humanos fizeram a transição dos mais símios autralopitecos para os padrões adaptativos modernos vistos nos Homo. Assim, o que há de tão especial nessa mandíbula não é só sua idade, muito mais velha que qualquer exemplar de Homo conhecido até agora, mas também sua combinação única de traços, da altura da mandíbula ao formato dos dentes, que a faz uma clara transição entre os australopítecos e os Homo. O fato de ter características tão claras alinhadas com as dos Homo há 2,8 milhões de anos nos ajuda a restringir o tempo dessa transição e sugere que ela foi relativamente rápida.
Em outro artigo também publicado na “Science” desta semana e que acompanha o estudo sobre o fóssil, os cientistas procuraram descrever o contexto geológico e ambiental onde ele foi encontrado. Há tempos os especialistas desconfiam que mudanças climáticas ocorridas nesta época na África, com exuberantes selvas dando lugar a uma paisagem mais árida, parecida com as atuais savanas, estimularam um processo de adaptação que foi responsável pelo fim dos australopitecos e emergência dos Homo. Na mesma área onde a mandíbula foi encontrada, os pesquisadores acharam fósseis de espécies pré-históricas de antílopes, elefantes, hipopótamos e outros animais relacionados com habitats mais abertos, dominado por grama alta e arbustos e com árvores mais espaçadas.
– Podemos observar esse sinal de maior aridez há 2,8 milhões de anos na fauna comunal de Ledi-Geraru – disse Kaye Reed, professor da Universidade do Estado do Arizona, outro integrante da equipe responsável pela descoberta, que participou da teleconferência da Etiópia. – Ainda é cedo para dizer que isso significa que as mudanças climáticas foram responsáveis pela origem do gênero Homo. Para isso, precisamos de uma amostragem maior de fósseis de hominídeos e é por isso que continuamos a vir para a região de Ledi-Geraru em busca deles. O que sabemos é que esses Homo antigos conseguiram viver neste habitat razoavelmente extremo e que, aparentemente, a espécie de Lucy, os Australopithecus afarensis, não.
Já um terceiro estudo relacionado ao tema, também publicado ontem, mas na revista “Nature”, revisitou o fóssil original que permitiu a identificação pela primeira vez do Homo habilis há pouco mais de 50 anos e revelou que, entre 2,1 milhões e 1,6 milhões de anos atrás, pelo menos três espécies representantes do gênero conviveram na África: além do H. Habilis, o H. Erectus e o H. rudolfensis. Encontrados nos anos 1960 pelo respeitado e já falecido Louis Leakey na região de Olduvai, na Tanzânia – e que, por isso, recebeu o apelido de “Berço da Humanidade” -, os restos fragmentados de crânio e mandíbula serviram de base para uma reconstrução em 3D de como seria a cabeça completa de um representante da espécie, evidenciando características que antes não puderam ser notadas pelos especialistas.” (“O Globo”, globo.com, Cesar Baima, 04/03/2015).
Os fragmentos fósseis de uma mandíbula do mais antigo representante gênero humano (Homo habilis), encontrados na Etiópia em 2013.
A propósito deste Homo rudolfensis, pesquisas diversas o consideraram tão somente uma variação do Homo habilis, com uma coexistência há dois milhões de anos e compartilhando muitas semelhanças, sendo ambos, por conseguinte, uma única espécie. Estudos outros mostraram que seriam grandes as diferenças entre os dois. Esta a razão para não serem inseridos dentro de uma mesma espécie. Esse elemento chegou a ser considerado habilis e rudolfensis, isto é, dois tipos raciais coexistindo, quando é certo ser a raça humana uma só, não comportando nenhuma exceção.
Condições ambientais diversas buscadas para habitação e sobrevivência hominídea e também isolamentos geográficos acabam por vezes mostrando pequenas mutações numa mesma raça. O isolamento genético de um grupo social acaba trazendo tais alterações. Os genes mutados se misturam nos seres de cada grupo populacional, e cada um desses grupos tem alterado seu genótipo e mesmo o fenótipo, pela incorporação ao seu patrimônio hereditário dos genes que sofreram mudanças. Confinamentos de tal ordem chegam mesmo a redundar no aparecimento de subespécies ou variedades de uma mesma espécie.
Todavia, esse H. rudolfensis chegou a também ser contemporâneo do Homo erectus, tendo este último vivido entre 1,8 milhões de anos ou 1,6 milhões de anos atrás e 100-200 mil anos atrás. A coincidência da igualdade temporal dos dois não é um bom sinal para tentarmos colocar o homem de Rudolf como o primeiro homem, em detrimento do Homo habilis. Para ser o primeiro homem, o mesmo teria de vir antes do Homo erectus, e nunca ter sido seu contemporâneo.
Através de trabalhos com moldes do interior de crânios fósseis que fez, o antropólogo americano Ralph L. Holloway, da Universidade Colúmbia, localizou indícios da área de Broca (um dos vários centros da região cerebral imprescindíveis à fala) num fóssil de Homo habilis de mais de dois milhões de anos, do que se conclui que o desenvolvimento da linguagem pode ter começado ao lado já das primeiras indústrias líticas (no caso, uma linguagem onomatopaica), conforme é possível ler no antes citado livro “O Homem na Pré-História do Norte de Minas”, pág. 17. Cérebros humanos modernos têm uma protuberância que corresponde à área de Broca, que, refrisando, é importante centro da fala.
Acresce notar ainda que o Homo habilis difere do A. afarensis na base do crânio. O buraco occipital, que é a abertura para a medula espinhal, é mais próximo da média do crânio. O rosto desse primeiro homem diminuiu em largura e sua abertura nasal é mais bem definida, sendo seus dentes postcaninos menores do que em australopitecos.
Ostentava um cérebro que poderíamos considerar pequeno para os padrões atuais, mas que se destacou a seu tempo se comparado com o de seus predecesssores: entre 650 e 700 centímetros cúbicos (e não 800 centímetros cúbicos, “o dobro do tamanho do de Lucy”, como sugeriu R. Leakey). Seu sucessor, o Homo erectus, possuía 900 centímetros cúbicos, vindo após o Homo sapiens, os homens modernos que somos nós, com cerca de 1.300/1.400 centímetros cúbicos de cérebro (no homem de Neanderthal o cérebro chegava a 1.500 cc).
Se não somos propriamente velocistas quando nos comparamos aos quadrúpedes, somos os únicos primatas e um dos poucos mamíferos a praticar corridas de resistência, como cavalos e cães: “Pensa-se que a corrida de resistência evoluiu com o gênero Homo, uma vez que algumas das especializações que permitem resistência em execução (como dedos curtos, um dedão do pé aduzido, uma cabeça mais equilibrada, ligamentos do pescoço e um cacâneo alargado) evoluiu no Homo habilis. Outras características (tais como canais ampliados semicirculares, antebraços mais curtos e maior quadril, perna e locais de fixação muscular nas costas, pernas mais longas e uma articulação sacro-ilíaca mais forte) evoluíram em Homo erectus. E vários outros recursos (a cabeça que era mais independente a partir do ombro, uma estreita pleve, um pé arqueado e um longo tendão calcâneo) evoluíram cedo na linhagem Homo, embora o ponto exato seja desconhecido” (Bramble, 2004).
A hominização, que é a evolução física e intelectual do homem, de sua origem até hoje, se mostrou diferente em relação aos antropoides, mormente pelo tamanho do seu encéfalo e mandíbula, por sua postura ereta e constituição de relações sociais complexas. O nosso desenvolvimento e morfologia se resumem na genética. O DNA, que traz o código genético de um organismo, é que mostra as diferenças registradas entre nós e os demais animais. Os cromossomos, que estão em cada uma das células, é que constituem o DNA. A célula é a unidade vital dos organismos complexos, sendo a vida resultante das funções de todas as células. Os organismos vivos podem ser manipulados pelo homem pela engenharia genética, o que já acontece.
Incursões pelo genoma ainda são tímidas, quando o ideal seria seu manejo com mais coragem e acuidade. Infelizmente, desde o nascedouro do Projeto Genoma, descortinando novas perspectivas alvissareiras para a humanidade e com o condão de abrir muitas cortinas sobre nossas origens, este marco, talvez o passo mais avançado da ciência moderna, encontra-se hoje praticamente estagnado.
Como se pode perceber raciocinando mesmo razoavelmente, uma parte considerável dos pesquisadores envolvidos mostra-se temerosa diante do pensamento e julgamento conservador de terceiros, com suporte especialmente em princípios religiosos, como sempre, proclamando estar o homem “brincando de Deus”. Ou seja, levado novamente adiante, o genoma nos proporcionará horizontes mais amplos sobre passado, presente e futuro, ao lado de aguardadas novas descobertas no campo da arqueologia.
“O conjunto de evidências indica que nossa evolução não foi nem especial nem atípica com relação à de outros animais. Assim, seria de esperar que aquilo que sabemos sobre a evolução de outras formas de animais também deve servir, de modo geral, aos humanos. De fato, nossa extrema proximidade genética dos chimpanzés, bem como as semelhanças genetícas entre primatas e outros mamíferos, apontam para um tema familiar. Os conjuntos de genes para a formação desses animais e dos seres humanos são bastante parecidos. As diferenças na morfologia final – tanto as grandes quanto as pequenas – devem, portanto, estar relacionadas ao modo como esses genes são utilizados – ou (…) como deixam de ser usados.
A causa essencial das alterações evolutivas no desenvolvimento e na morfologia dos seres humanos é a genética. Em algum lugar de nosso DNA residem as diferenças entre nós, os grandes primatas e os primeiros hominídeos. (…) A boa notícia é que já conhecemos a sequência completa dos genomas de um ser humano, um chimpanzé e um camundongo. A má notícia envolve um pouco de aritmética. A sequência do DNA humano é composta por três bilhões de pares de bases. A do chimpanzé é cerca de 98,8% igual à nossa. É uma dirença total de apenas 1,2% a menor entre qualquer outro animal do planeta. (…)
…mudanças nos interruptores genéticos são responsáveis por muitas diferenças na morfologia animal. Como a evolução humana se dá essencialmente pela alteração do tamanho, forma e anatomia detalhada das estruturas e do momento em que são geradas ao longo da enbriogênese, é natural que a evolução dos interruptores tenha um papel relevante. Cada aspecto de nosso corpo é uma variação do modelo geral dos mamíferos ou primatas. Isto nos permite acreditar que os indícios genéricos nos mostram a evolução dos primatas e humanos devendo-se mais a alterações no controle dos genes que nas proteínas que condificam.” (Sean B. Carrol, professor e biólogo, em “Infinitas formas de grande beleza”).
Giro outro, os pouquíssimos fósseis humanos conhecidos da sua aurora surgiram em pontos ínfimos da Terra, ao contrário de restos de organismos mais remotos, tipo plantas e animais como trilobites e amonites. Fósseis marinhos pulularam por uma diversidade de locais em que surgiram e viveram, ao que se soma um tempo sobremodo maior de vida naqueles ambientes bastante favoráveis à fossilização.
Os homens são tardios na escala do tempo biológico e sequer surgiram em grande número. Inteligentes, ocuparam terras firmes, evitando por inteiro charcos, proximidades de areias movediças, atoleiros, lugares pantanosos e barreiros (os cinco últimos apropriados à fossilização), ao contrário de uma gama de outros animais muito bem documentados no registro fóssil ocupantes desses lugares inconvenientes ao Homo. Mesmo caçadores/coletores, aqueles nossos antepassados ainda buscavam caminhos mais seguros em suas andanças e mudanças.
Portanto, quando morriam, de um modo geral, os seus ossos eram facilmente triturados por animais predadores ou carniceiros, sendo também roídos por roedores e mesmo corroídos ou raspados po diversas espécies de formigas. Esta a razão do escasso registro fóssil dos primeiros homens, e mesmo seu verdadeiro ancestral sequer foi encontrado até presentemente. É uma balela querer inferir verdade em estudos pífios e apressados tentando dar o Australopithecus afarenis como esse ancentral. Tudo bem sopesado, refriso ser Lucy e congêneres, contemporâneos do primeiro e do segundo homens, tão somente grandes símios peludos, de vida basicamente em cima de árvores e inteiramente fracassados evolutivamente.
Somente quando o homem mais evoluído e, por conseguinte, portador de uma cultura mais acurada passou a ter domínio do fogo e a enterrar seus mortos – Homo erectus e o Homem de Neanderthal -, é que esses restos e muitos dos seus materiais, como líticos e adornos, se tornaram abundantes à coleta arqueológica, em escavações nas moradias pré-históricas, mormente em cavernas da Europa, Oriente Médio, Índia e China.
Essa escassez de registros fósseis da aurora da humanidade é que tem levado uns poucos cientistas a repreender um número até exagerado de colegas entusiasmados que, de posse de um fragmento fóssil qualquer, principalmente se for de procedência africana, partem para a publicação de artigos em revistas especializadas prometendo revolucionar a história da nossa origem.
Na verdade, creio que uma parte considerável desses achados absolutamente nada têm a ver com o homem ou, quando muito, seriam de seus primos distantes. Para mim, é o caso, por exemplo, do Australopithecus afarensis.
Vejamos.
“Cientistas questionam fósseis de hominídeos. (…) “Não me leve a mal, todas essas descobertas são muito importantes”, disse a Nature o coator do artigo Bernard Wood, professsor de origens humanas e evolução anatômica da Universidade George Washington, além de diretor do Centro de Estudos Avançados de Paleontobiologia Hominídea da instituição. “Mas também não podemos dizer que qualquer coisa encontrada daquela época tem de ser um ancestral humano”, podera.
O artigo The evolutionary context of the first hominins (O contexto evolutivo dos primeiros hominídeos) reconsidera a relação evolutiva de fósseis batizados de Orrorin, Saelantropus e Ardipithecus, que datam de sete milhões de anos atrás e foram aclamados como os mais antigos ancestrais do homem moderno. O Ardipitecus, mais conhecido como Ardi, foi descoberto na Etiópia e, segundo os autores, é radicalmente diferente do que muitos pesquisadores esperavam de um primeiro ancestral humano. Ainda assim, os cientistas que acharam o fóssil insistiram que Ardi era uma espécie de Adão.
“Não estamos dizendo que os fósseis não são ancestrais humanos. Mas temos de levar em conta interpretações alternativas. Acreditamos que esses fósseis são mais provavelmente de primatas que, na árvore da vida, estão situados muito próximos ao ancestral comum dos grandes símios e dos humanos”, explicou outro autor do artigo, Terry Harrison, professor do Departamento de Antropologia e diretor do Centro para Estudo de Origens Humanas da Universidade de Nova York. Os autores confessam que são céticos quanto às interpretações e descobertas da última década e defendem uma nova abordagem para a classificação dos fósseis. Harrison e Wood argumentam ser precoce assumir que todos os ossos escavados são ancestrais de criaturas que vivem no mundo moderno.
A comunidade científica concluiu, há tempos, que a linhagem humana divergiu daquela que deu origem aos chimpanzés entre 6 e 8 milhões de anos atrás. É fácil diferenciar, hoje, o fóssil de um chimpanzé moderno dos ossos de um homem moderno. Porém, a tarefa fica mais árdua quando as espécies em questão são muito antigas. Quanto mais próximas do ancestral comum, mais difícil é diferenciá-las. Em seu artigo, os antropólogos dizem que os cientistas têm sido pouco críticos nesse quesito, o que pode levar a conclusões erradas sobre as relações evolutivas.” (PO – jornal “Estado de Minas”, 17/02/2011).
Ou seja, o processo de hominização, através do qual o homem evoluiu física e intelectualmente desde sua origem primata ao que representa hoje, com sua diferenciação dos antropoides pelo andar perfeitamente ereto, cérebro e arcadas dentárias maiores, crescimento craniano paralelamente com a remodelagem da pelve, permitindo o nascimento de crias de cérebros avantajados, seu modus vivendi com relações sociais complexas, etc., com certeza, foi muito mais rápido do que se pensa. Creio mesmo que esse elo perdido, digamos assim, nosso verdadeiro ancestral, surgiu não entre 6 e 8 milhões de anos atrás, mas em época mais próxima do Homo habilis com seus aproximadamente 3 milhões de anos. Não se conhece muita coisa no período compreendido entre 4 milhões de 12 milhões de anos atrás.
Dissemos que mudanças climáticas vinham destruindo as florestas habitadas pelos grandes símios. Uma drástica redução nas precipitações pluviais naquela vasta extensão de terreno coberta de grandes árvores com suas copas se tocando acabou por retraí-las. Inúmeros primatas arbóreos se extinguiram, dando lugar a outras criaturas, entre elas diversas que se arriscavam pelo chão, pelo menos em parte, porque sua evolução compreendeu também uma convivência em campos abertos.
Alfred Russel Wallace (1823 – 1913) concluiu que “as espécies são compostas por diversas variedades e que mudanças ambientais podem levar à perda de variedades pior adaptadas e ao sucesso e sobrevivência das mais favorecidas. Em outras palavras, ele chegou, em paralelo, às mesmas conclusões de Darwin sobre um aspecto-chave da teoria evolucionista” (“Evolução – A História da Vida”, de Douglas Palmer, Larousse, edição brasileira de 2009).
Os seres readaptados deparavam-se frequentemente com predadores como tigres e hienas, numa evidente pressão seletiva rumo a criaturas mais parecidas com a espécie humana. A alteração do clima no berço da humanidade – Quênia, Tanzânia e Etiópia – constituiu-se, pois, na mola propulsora rumo à hominização. Foi ela, com certeza, fator preponderante, como pressão seletiva, para o surgimento do elemento inteligente para, por exemplo, produzir artefatos de defesa e de caça de sobrevivência.
Etiópia, Quênia e Tanzânia, berço da humanidade, e seus pontos marcantes.
Ante deduções precipitadas acerca da diferenciação de uma espécie de outra, ademais quando tratamos de seres próximos nesta escala de tempo, é indubitável que conclusões errôneas se multipliquem entre os afobados na remontagem do início da história humana. Isto é, qualquer fóssil, mesmo o mais insignificante, é abraçado pela corrente dos apressados na descoberta do ser que efetivamente redundou na nossa família. Grosso modo, interpretações alternativas vêm sendo deixadas de lado, esquecendo-se do que realmente temos hoje: fósseis, muitos dos quais evidentemente mais próximos dos grandes símios, sendo avocados como pré-humanos.
Por exemplo, foi descoberto em 2001, no Chade, no deserto do Saara, um pedaço de crânio, nada mais, o qual combinaria traços entre chimpanzés e hominídeos. Com idade de 7 milhões de anos, foi batizado de Saheanthropus tchadensis, portanto seria o mais primitivo hominídeo. Mas diante da ausência de outros ossos, a não ser o pedaço de crânio, sequer foi possível saber qual a postura desse indivíduo, hoje sem grande importância.
Ora, os novos campos abertos, como as savanas, surgidos pelos novos tempos de aridez, em grande parte, eram inapropriados à fossilização, principalmente quando tratamos dos homens, originariamente pouco numerosos e tardios na escala do tempo biológico. Como já registramos, na nossa aurora, vivemos em solo firme, evitando charcos, proximidades de areias movediças, atoleiros, lugares pantanosos e barreiros, cuja lama, ou aluvião, deles oriunda, uma vez revestindo um animal morto, assegurava a sua fossilização e uma descoberta arqueológica posterior relativamente fácil.
É o que ficou frequentemente registrado nas cavernas geralmente úmidas, muitas invadidas por águas de enxurrada, sendo comuns nessas cavidades, que serviram de moradia ao nosso troglodita, o encontro de restos humanos.
Os cientistas são de opinião que a origem dos hominídeos ocorreu há 10 milhões de anos. Foi quando eles se afastaram dos demais primatas. O chimpanzé, o primata mais próximo geneticamente do homem, não passa de nosso primo, e não de nosso avô. O ancestral comum e de tronco único é o fóssil ainda não encontrado, sendo bastante incerta a sua descoberta.
As regiões úmidas de determinadas coberturas vegetais africanas anteriores às mudanças climáticas seriam propícias à fossilização das espécies. Mas nada temos de concreto ou de palpável oriundo dessas extintas florestas. O mais certo seria achar o elo perdido naquelas áreas que substituíram as grandes coberturas florestais, apesar dos seus predadores e também outros fatores adversos. Todavia, esta sorte não foi dada a ninguém até este momento, e um achado de tamanha importância só se daria em caso extremamente fortuito. Se a evolução é descendência com modificação, segundo Charles Darwin, a descendência está atrelada às antigas florestas africanas, sendo que as modificações levando ao Homo habilis aconteceram mercê da nossa adaptação às savanas.
Em nosso referido livro, “O Homem na Pré-História do Norte de Minas”, que é de 1983, na página 18/19, quando se encontrava estabelecida uma idade de 2 milhões de anos para o crânio 1470, depois de novas avaliações, e não entre 2 milhões e 2,5 milhões de anos atrás, como queria Richard Leakey, já deixávamos consignado que, com o prosseguimento do estudo da Pré-História humana, o mais certo é ser aumentada a sua antiguidade, que poderia ficar situada em torno de 4 a 5 milhões de anos, desaparecendo, evidentemente, a polêmica advinda de Lucy e ganhando o Homo habilis.
Observamos mais que, em qualquer circunstância, é pretensão demais alguém anunciar ter descoberto o primeiro representante de uma espécie. De mais a mais, é relativamente inexpressiva a diferença de idade entre o Australopithecus afarensis e o Homo habilis, este contemporâneo de uma infinidade de seres afins com aquele, quando sabemos que o grande e belo livro da evolução trata fatos e evidências em milhões de anos.
E acertamos, pois, exatos 30 anos depois da edição do nosso livro, os fragmentos de uma mandíbula da árida região de Ledi-Geraru, no Estado etíope de Afar, em 2013, receberam uma datação de 2,8 milhões de anos passados, o que deixa o primeiro homem com uma idade bem próxima do afarensis do mesmo sítio de Afar, que existiu há pouco mais de 3 milhões de anos. A precipitação da nossa parte foi achar que a idade primeva da real transição de um verdadeiro pré-homem para um homem poderia ficar situada em torno de 4 a 5 milhões de anos atrás. Hoje já pensamos que a nossa história na Terra, quando muito, poderia se estender a 4 milhões de anos atrás, se tanto.
Um fóssil de representante humano com aquela idade provavelmente não será encontrado. E muito menos do nosso ancestral direto, o verdadeiro pré-homem, que ocupou seu espaço evolutivo em área de preservação fossilífera extremamente difícil, quando muito há 4 milhões, 4,5 milhões de anos. Então, como dúvidas não restam sobre a extrema pobreza de fósseis da própria linhagem do homem, este fato recomenda uma cautela extremada diante de ossos que sequer dizem respeito aos nossos primórdios.
E, basicamente por sabermos que se nada se compara à inteligência humana, descortinando-se no palco da vida há poucos milhões de anos, tal maravilha corresponde a uns poucos décimos de um por cento da idade do planeta, o que nos remonta ao fim de dezembro, pelo calendário cósmico, conforme cálculo de Carl Sagan.
Também Francis S. Collins (obra citada, pág. 154/155) chama a atenção para os espaços de tempo da evolução colocando o homem nos últimos segundos da vida na Terra:
“Uma parte essencial do problema de aceitar a teoria da evolução é que esta exige que se compreenda a importância de espaços de tempo extremamente extensos envolvidos no processo. Tais períodos acham-se além da experiência individual de uma maneira inimaginável. Um modo de reduzir os éons” (espaço de tempo muito grande, como uma era ou a eternidade, conforme nota de tradução da editora) “num formato mais compreensível é imaginar o que aconteceria se os 4,5 bilhões de existência do planeta, desde sua formação inicial até hoje, fossem comprimidos num dia de 24 horas. (…). A diferenciação de ramificações que levariam a chimpanzés e humanos ocorreria em apenas um minuto e dezessete segundos restantes do dia e os humanos anatomicamente modernos apareceriam três segundos depois. A vida de um ser humano de meia-idade na Terra hoje tomaria somente o último milissegundo (um milésimo de segundo). Não é de se admirar que muitos de nós tenhamos tanta dificuldade em considerar o tempo evolucionário.”
Enfim, podemos asseverar que, em nossa tão decantada sapiência, sabemos quase o ínfimo do nada. O verdadeiro indivíduo pensante é, invariavelmente, humilde e sabedor que o livro da vida nunca foi nem é inteiramente aprendido, inclusive por nossa exiguidade de tempo, e, quando muito, conseguimos preencher algumas das imensuráveis lacunas que carregamos vida afora também no acréscimo do aprendizado e experiência de terceiros.
(Março/dezembro de 2020).