Minha última rosa não podia ser pisoteada…

Montes Claros-MG – Retrocedo, agora, aos meus tempos de idiotice adolescente, época de curtição de amores platônicos, quando perdia horas de sono para distribuir rosas a musas enquadradas no meu foco romântico. Hoje, já acenando simpático para carros funerários, penso que realmente fui um imbecil. Afinal, desperdicei parte de minha existência ao alçar voos românticos insustentáveis. Há coisas que realmente não valem a pena…

O importante, a meu ver, foi a lição de inutilidade que marcou essa maratona noturna pelas ruas desérticas da cidade, por vezes debaixo de chuva fina. Arrisquei-me a levar tombos memoráveis, pois a pequena Yamaha denotava fragilidade de equilíbrio ao efetuar curvas mais sinuosas. Não poucas vezes, fui obrigado a bater um dos pés no asfalto, calço providencial para corrigir derrapagens surpresas.

Afora isso, a normalidade imperou na distribuição de botões de rosa furtados descaradamente na Praça da Matriz, ponto de partida para a saraivada de flertes. Nunca nenhuma das belas adormecidas cobiçadas aflorou na janela do quarto para agradecer esse esforçado mimo…

O esquisito, para não dizer prazeroso, era aquele sentimento de missão realizada ao entregar a última rosa, igualmente acrescida de ridículos bilhetes poéticos. Geralmente, um novo dia já se avizinhava a poucas horas quando a pequena valente motorizada marchava serena rumo ao descanso…

Não sei dizer, sinceramente, qual foi a duração exata de tamanha babaquice, mas prevaleceu por meses, anos, acho… Transformei-me num entregador contumaz de rosas, incluindo serenatas comandadas pelo primo Luizinho e o mestre musical Gaspar Durães, um dos grandes artistas de Minas.

Para quem conseguiu ler tanta babaquice até agora, vou encerrar contando um episódio inédito nessa missão de motoqueiro do amor: um dos botões entregues foi devolvido juntamente com meu bilhetinho. E era justamente de uma das minhas musas prediletas, garota que pensava ter alguma chance de conquista.

– Mandaram entregar pra você – disse Abelardo, segurança da Reitoria da antiga Fundação Norte Mineira de Ensino Superior, onde trabalhei como office-boy. O velho prédio sediou, posteriormente, a sede do Jornal do Norte.

Olhei sem entender para o amigo Abelardo, sujeito com jeitão indígena, que ostentava coleção de medalhões.

Aquela pequena caixa comportava um segredo, pelo visto. Aberlado explicou que foi um garoto que deixou no portão lateral do prédio.

– Bateram e, quando abri, ele havia deixado a caixa no chão. O guri saiu correndo… Aí vi seu nome afixado em cima, em letras maiúsculas. Só não tem remetente; isso me deixou encafifado…

Percebi que o vigia estava bem curioso para saber o conteúdo da misteriosa caixa, uma vez que não arredou pé de perto de mim. Forçando desinteresse pela caixa, saí andando rumo à escada. Nem olhei pra trás, cônscio de que encontraria os olhos esbugalhados de Abelardo resplandecendo desapontamento por não compartilhar com ele tal segredo.

Quase correndo, alojei-me no sanitário da Reitoria para abrir a caixa. Lugar esquisito, pra ser sincero. Sempre sentia arrepios ao ver uma imensa banheira amarelada adornando o impessoal recinto. Imaginava quantas pessoas não mergulharam ali, tornando-se moradores da Cidade dos Pés-Juntos anos após…

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O lacre da caixa foi rompido facilmente, e fiquei quedado ao ver seu conteúdo: minha rosa havia sido esmigalhada raivosamente, e jazia feito uma defuntinha entre os pedaços do pretenso poema que dediquei à musa mal-agradecida.

Ao reunir os cacos do flerte, reconheci quem remetera aquela caixinha de desencanto do amor. Uma pena que fosse ela, logo a mais cobiçada entre todas que conhecia na cidade. Talvez tivesse se cansado de tantos botões e bilhetinhos deixados na soleira da porta. Enfim, foi ducha de água fria…

DESSE DIA em diante não cumpri mais a cansativa agenda noturna de distribuição de rosas e poemas. A drástica devolução do mimo acarretou profundo baque emocional, e preferi, precavidamente, não arriscar mais. Ver a tão dedicada rosa pisoteada e meu bilhete picotado sem piedade implodiu a alma sonhadora…

João Carlos de Queiroz, jornalista