Não conheço muitos detalhes acerca de tia Laura, idosa mascadeira de fumo de rolo. Apenas íamos visitá-la ocasionalmente na fase criança, quando meu padrinho José Nahur levava suprimentos alimentares e outras coisas pra ela. Já idosa, única moradora do lugar ermo, a tia materna não tinha forças nem ânimo pra plantar nada, tampouco cuidar do quintal e da casa, a cada dia mais suja e com raízes tomando conta das portas e janelas. Era um pequeno castelo mal-assombrado, por assim dizer, dotado de compartimentos escuros e úmidos pela falta de exposição solar.
Eu gostava mais de ir lá pela viagem, em si, não propriamente para visitar aquela mulher tão estranha, de fala curta e olhares desconfiados. Tia Laura mal nos cumprimentava ao chegarmos, e da mesma maneira, ao sairmos, ela sumia rápido porta adentro, antes mesmo de a picape do tio deixar a área frontal do quase casebre, educadamente buzinando em despedida…
Meu pai dizia que tia Laura precisava era ter casado, para não curtir uma velhice tão solitária. Ele e o padrinho sempre trocavam ideias sobre no trajeto de volta à cidade sobre a vida esquisita que ela levava, de genuína ermitã voluntária. Tia Laura também se esquivava de conversar com os poucos vizinhos da área rural, mantendo-se arredia o tempo todo. Daí o sumiço das esparsas visitas que então recebia após o falecimento dos pais há muitos anos atrás, quando ainda era apenas uma “moça velha”, não uma anciã meio bruxada.
Deve ser ainda salientado que a única estradinha de acesso {do que foi um sítio} apresentava buraqueira sem fim, dificultando a locomoção até da robusta picape Willians do padrinho. O tio Joaquinzinho Santos também a visitava vez ou outra, pilotando a “centenária” caminhonete GM, igualmente desbravadora de caminhos silvestres. Eu gostava mais dos assentos da veterana pick-up, bem macios e aconchegantes, e me deliciava ao ouvir o ronronar decidido do motorzão dessa vence-obstáculos nas rampas cascalhadas de acesso aos recantos daquela região esquecida por Deus…
Na verdade, a proximidade do Rio Verde ornamentava de valor o cenário seco de travessia rumo ao sítio de tia Laura. Mas o rio ficava lá atrás, do lado oposto, ladeando a área que se tornara popular pelo aguaceiro geral nas barrancas. As precárias estradas ficavam intransitáveis no período chuvoso, situação atribuída sempre ao excesso de águas desse manancial.
Por vezes, na ida ou volta, sempre parávamos para catar “marmelada de cachorro”, frutinha de cor preta, muito doce, algo enjoativa. Nome de associação direta às fezes caninas, em decorrência da semelhança incrível entre uma e outra. Não sei bem o motivo, essa frutinha pequena, de aspecto inegável de cocô, fazia um sucesso danado entre a meninada da nossa família; eu sempre entrava nessa onda de cata-marmelada-que-quero-comer. O alvoroço da criançada – em desatinado corre-corre sob a árvore de “marmelada de cachorro” – transbordava alegria festiva…
E quanto ao fumo de rolo que a tia insistia tanto em mascar? Isso aí, eco!, já se tornara mania esquisita dela, e percebi, enojado, que há muito tempo vinha mastigando fumo. Antes, nas primeiras visitas, pensei que fosse chiclete, ou até alguma fruta, em processo de degustação saborosa. Depois, perplexo, eu a presenciei cuspindo coisas gosmentas naquele chão de terra batida da casa.
A tia, outro detalhezinho, nem se abalava em saber que a observávamos enquanto mandava cusparadas seguidas de fumo pra tudo quanto é lado. Uma vez, um dos nacos de fumo grudou na camisa do padrinho, e ele fingiu não perceber, para ser educado.
Já seu gato preto, que nem imagino como conseguia viver ali com aquela tia embruxada, mantinha olhar atento aos seus movimentos, talvez esperançoso de, no ato da cusparada, ela ofertar alguma alimento. O pobre bichano corria ágil para verificar o conteúdo da coisa gosmenta que a tia cuspira longe, e geralmente já soltava o pedaço de fumo, desapontado. Depois de idas e vindas, o gato saía da sala com carinha enojada. Dee pensar com seus botões: “Essa aí não come nada que presta, só fumo de rolo!”
Meu padrinho e meu pai jamais fizeram qualquer recriminação a essa mania nojenta da tia, tentando entabular conversas triviais nos momentos de visita. Ela, como sempre, mais ouvia do que respondia, ou quando muito balançava a cabeça, em grunhidos pensativos.
Aquela mulher tinha pacto com bruxaria, tive convicção ao observá-la em tais ocasiões. E aquela saiona imensa, de cores ciganas, aliada aos cabelos desgrenhados, reforçava a suspeita de que a tia pertencer à “balada das trevas”.
Mas, como tudo na vida é transitório, também a vida enigmática de tia Laura passou de forma imperceptível aos olhos gerais da criançada afoita.
Não sei também dizer quando foi nossa última visita ao sítio alquebrado de tia Laura, quando a vimos pela última vez. Aos poucos, no transcorrer célere dos anos, deixei de me interessar em ir visitá-la com o padrinho, apesar de saber que, ocasionalmente, ele e meu pai continuavam a bater bota até o setor rural, certamente preocupados em levar suprimentos à tia reclusa em solidão de confinamento.
Muitos e muitos anos depois, quando programamos um passeio ao Rio Verde, alguém se lembrou de passar pelo antigo caminho da casa da tia mascadeira de fumo. Nas minhas lembranças esparsas, ela se localizava numa baixada erma, após um pequeno sobe e desce de morrotes, e assim a comitiva de parentes pôde conhecer, de relance, o local de refúgio da enigmática tia Laura: nada mais havia por lá senão paredes tombadas e árvores que se agigantaram dentro do imóvel, denotando toda a sua estrutura.
Recordo que os dois carros (picapes) nem se detiveram para melhor apreciar os estragos do tempo, seguindo marcha sequencial rumo à variante que levava às margens do Rio Verde, a alguns quilômetros à frente. Mas valeu a pena ter podido relembrar a tia mascadeira de rumo entrando no labirinto de desordem que tinha como lar. Numa última olhadela aos escombros inundados por vegetação rasteira, até pensei vê-la na soleira nos olhando de forma bem esquisita. Exatamente como sempre fez, enquanto o padrinho me levava até lá…
João Carlos de Queiroz